Nº 2603 - Dezembro de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O 1º de Dezembro e o poder nacional
General
José Alberto Loureiro dos Santos

1. O primeiro de Dezembro de 1640 mostrou que o poder nacional se trata de um domínio mais dependente de factores imateriais ou intangíveis do que dos factores materiais.*

O poder nacional é a capacidade de um país conseguir ou readquirir os seus objectivos básicos ou essenciais que o caracterizam como Estado, ou seja, dispor de massa crítica própria para alcançar, manter ou retomar a sua soberania e de conseguir o bem-estar desejável para os seus cidadãos, assim como a sua segurança. Além de um potencial estratégico confortável do Estado, o poder nacional envolve também a inteligência com que ele é utilizado, tanto na concepção da estratégia a desenvolver como na eficiência da sua materialização. O que corresponde a um emprego suficientemente articulado e útil do respectivo potencial estratégico, tendo em vista os fins perseguidos – soberania com bem-estar e segurança.

Em conclusão, poderemos afirmar que o poder nacional consiste em dois componentes: o potencial estratégico e a inteligência estratégica do país para que esse potencial seja accionado da forma mais rendível.

Por sua vez, o potencial estratégico é o conjunto de factores materiais e não materiais de um Estado e dos contributos da nação, bem como a sua qualidade específica, dependente de aspectos relacionados com a sua maior ou menor qualidade e/ou quantidade e da eficiência da organização que os produz e sustenta.

 

2. Os factores tangíveis ou materiais deste potencial estratégico abrangem desde o factor geográfico ao factor demográfico, passando por muitos outros, como a capacidade industrial, a natureza e qualidade dos seus transportes, o ordenamento do seu território, a sua capacidade económica e financeira, a sagacidade e inteligência da sua diplomacia, o ajustamento dos seus sistemas militar e de segurança interna, entre outros.

 

3. Mas não podem ser esquecidos os factores intangíveis do potencial estratégico: são eles, por um lado, o factor conhecimento, em termos de existirem as bases científicas e tecnológicas necessárias ao levantamento, desenvolvimento e aplicação dos factores materiais do potencial, e também de uma elevada inteligência de actuação estratégica, para empregar os diferentes factores de uma forma articulada e eficiente.

Por outro lado, é indispensável existir um grau elevado de uma verdadeira consciência nacional. Ou seja, há necessidade de que a população tenha vontade de se autogovernar, portanto, de não querer sujeitar-se a outro poder político que não o seu, portanto, de um poder que actue em função dos seus interesses e não dos objectivos e interesses dos outros.

Enquanto o Potencial Estratégico é constituído pelo conjunto de recursos materiais e imateriais devidamente organizados, à disposição da sociedade nacional (Estado e sociedade civil), pode afirmar-se que o Poder Nacional é a capacidade de alcançar estes objectivos, que se traduzem, afinal, na independência nos termos que nos satisfazem.

Portanto o Poder Nacional é o conjunto dos recursos e da sua organização mais a inteligência estratégica da sua aplicação para os fins que se propõe.

 

4. Os acontecimentos do dia 1 de Dezembro de 1640 e aqueles que foram desenvolvidos ao longo dos 28 de anos de guerra que se seguiram, para garantir que Madrid reconhecesse a nossa independ?ncia, revelam bem a import?ncia relativa dos diversos factores do potencial que integram um Poder Nacional.

Quando baqueámos face ao poder espanhol, em 1580, o poder nacional português encontrava-se de rastos.

O exército destruído em Alcácer-Quibir e a estrutura de poder, em Portugal, desmantelada, a começar pelo rei e a continuar na hierarquia constituída pela nobreza. Portanto, o nosso factor militar do potencial estratégico ficou completamente desfeito. Pelo seu lado, a Espanha dispunha do melhor exército do mundo, o mais bem preparado e armado, e os mais competentes generais.

A economia nacional dependia completamente dos centros económicos e financeiros espanhóis. Os meios de pagamento - as especiarias vindas do Oriente - que nos haviam garantido a prosperidade da nossa época áurea tinham perdido valor. Agora, os meios de pagamento que davam riqueza estavam em mãos espanholas e vinham das minas de prata da América do Sul. Embora os tivéssemos procurado na América portuguesa, só mais tarde, no século XVIII, os iriamos encontrar.

Sevilha era a principal base económico-financeira europeia e os capitalistas portugueses ambicionavam ter-lhe acesso. Portanto, o factor económico e financeiro do potencial estratégico era claramente insuficiente, contrariamente ao crescente factor do potencial homónimo da Espanha.

A conjuntura internacional colocara a Espanha no centro do mundo. Como a maior potência europeia, quiçá mundial. Seria difícil conseguir equilibrar a relação de forças entre potências, em termos de alianças que nos apoiassem e reforçassem o nosso poder face a Madrid. Este factor também nos enfraquecia face à poderosa diplomacia espanhola. A pressão da dinastia filipina tornou-se impossível de contrariar. A legitimidade invocada para herdar a coroa portuguesa era dificilmente rebatível, à luz da que na época prevalecia.

A população estava desmoralizada e sem vontade de se afirmar na defesa da independência de Portugal. Os valores patrióticos, embora presentes, estavam aparentemente esmorecidos tendo em vista o enquadramento completamente desmoralizador dos outros factores. Eram a continuação dos tempos descritos por Diogo do Couto em "O Soldado Prático", onde relata os vícios, a corrupção e a troca de favores que corroíam o país, mostrando a outra face (a face negra) do período cuja face brilhante Camões cantara nos Lusíadas. O dinheiro já então comprava muitas consciências e sossegava outras tantas.

Um exército reduzido, mal armado, sem oficiais competentes e desmoralizado, organizado à pressa por D. António, Prior do Crato, foi facilmente derrotado na Ribeira de Alcântara pelo poderoso exército espanhol comandado por um dos melhores comandantes militares da altura - o Duque de Alba -, e apoiado pela artilharia de uma também poderosa armada espanhola no Tejo.

A fuga dos portugueses foi o resultado. Embora se tivesse conseguido dirigir à ilha Terceira, nos Açores, para daí manter a resistência e regressar a Portugal com o apoio de Isabel I de Inglaterra, foi fragorosamente vencido pela armada espanhola comandada por D. Álvaro de Bazán, sendo obrigado a fugir para as Europas, sem conseguir o apoio que desejava.

O desembarque em Peniche de um forte apoio inglês, em 1589, que deu origem à classificação de "amigos de Peniche", não teve qualquer êxito. Nem as posteriores incursões de Francis Drake, que arrasou vários pontos da costa marítima portuguesa. Uma política sábia de Filipe II para com Portugal e os portugueses silenciaria os possíveis resistentes.

 

5. Sessenta anos depois, em 1640, a situação tinha-se alterado completamente. Com a Espanha decadente, em resultado do esgotamento das minas de prata da América, os meios de pagamento da altura estavam nas mãos dos portugueses. Era a cana do açúcar que, primeiro a partir da Madeira e depois do Brasil, enriquecia o país. Portanto, o factor económico-financeiro era-nos favorável.

O poder espanhol, já desgastado na Flandres, estava a ser desafiado pela França, potência em ascensão, durante o chamado Período francês (1635-1648) da guerra dos trinta anos. Agora, era a França que tinha os melhores exércitos e generais. Para minar as capacidades espanholas, Paris incita e apoia a revolta da Catalunha e envia emissários a Portugal para abrir outra frente contra Madrid.

Muitos nobres portugueses, conscientes da necessidade de se libertarem de Espanha, dadas as condições agora propícias, lançaram a revolta do 1º de Dezembro de 1640. Foram apoiados pelo povo, já causticado pela cobrança de impostos lançada por Olivares, primeiro-ministro em Madrid, que já havia provocado as chamadas Alterações de Évora.

A vitória dos conjurados faz despertar os valores patrióticos dos portugueses, entretanto adormecidos, que aderem à revolta.

Começou a organizar-se a nação para a guerra. Apoios militares franceses, alguns generais portugueses competentes que haviam combatido na Flandres ao lado da Espanha (muitos foram presos pelos espanhóis, outros não aderiram à causa) e a aceitação da coroa portuguesa pelo Duque de Bragança, foram criando condições para resistir.

A proclamação, por D. João IV, de Nossa Senhora da Conceição como padroeira e rainha de Portugal pretendeu enfrentar a posição da Sé Romana, que apoiava Espanha.

Contra a opinião de muitos que incitavam o rei à guerra ofensiva, mesmo ainda com fracos meios, enquanto o esforço espanhol fosse na Catalunha, a inteligência de actuação estratégica do padre António Vieira aconselhou a guerra defensiva. O que permitiu tempo para preparar o exército que enfrentaria as forças espanholas quando se voltassem contra nós, depois de resolverem a questão catalã, portanto, para conseguir desenvolver e aperfeiçoar o factor militar para as batalhas que viriam, quando Madrid nos atacasse com todo o seu poder.

Mas o factor essencial em jogo foi a determinação dos portugueses. A sua vontade de voltarem a ser independentes, a persistência nos sacrifícios para o conseguirem, o desejo de porem no trono um rei português, mesmo correndo os riscos máximos. Foi esta gana que permitiu termos aguentado uma guerra de 28 anos. Contra um dos ainda melhores exércitos do mundo. Em batalhas convencionais, de que destaco Montes Claros. Em articulação com um bem desenvolvido factor diplomático do potencial estratégico, em que também Afonso Vieira se distinguiu.

 

6. Embora o Poder Nacional se fosse robustecendo através da progressivo aperfeiçoamento e aumento de eficiência do factor militar, os factores dominantes do potencial foram, sem dúvida, os factores intangíveis: a vontade de ser independente e a aceitação dos sacrifícios consequentes durante 28 longos anos – logo, os valores patrióticos. E o conhecimento que se traduziu no aperfeiçoamento progressivo do exército e da sua eficiência, assim como a inteligência de actuação estratégica, principalmente no domínio diplomático e estratégico-militar.

Pode deduzir-se que, com vontade de um povo se sacrificar pela independência do país e com o emprego inteligente e eficiente dos recursos, portanto com características do âmbito do imaterial e não do tangível, é possível garantir a independência. Pelo contrário, sem qualquer deles, isso será impossível, se um poder exterior estiver determinado a dominar-nos. Mesmo com os restantes factores a funcionarem.

Esta é a grande lição estratégica do 1º de Dezembro.

 


*  Revista Militar, Volume 167, nº 2-3, fevereiro/março de 2015, pp 133-137.

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General

José Alberto Loureiro dos Santos

Natural de Vilela do Douro, freguesia de Paços, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, assentou praça na Escola do Exército em 1953, e passou à reserva em 1993. Oficial de Artilharia, habilitado com o Curso de Estado-Maior e o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (doutoramento em Ciências Militares).

Cumpriu duas comissões de serviço em África. Como oficial general, desempenhou várias funções, entre as quais, Diretor do IAEM, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Madeira, Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (Tenente-coronel graduado em General de quatro estrelas) e Chefe do Estado-Maior do Exército.

Foi ainda: Encarregado do Governo e Comandante-Chefe de Cabo Verde, Secretário Permanente do Conselho da Revolução, membro do Conselho da Revolução (por inerência, nas funções de Vice-CEMGFA), Ministro da Defesa Nacional (nos IV e V Governos Constituciona

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