A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, chegou como um abalo telúrico, fundamentalmente pela escala e pelo seu comportamento desafiante das leis internacionais. O espírito revanchista do presidente russo Vladimir Putin era bem conhecido, contudo, o seu desejo de lançar uma guerra de conquista em larga escala foi um novo e grave desafio, não só para o seu vizinho como para a estabilidade regional e, em última instância, para a própria ordem liberal global.
Ao contrário do afirmado pelos especialistas ocidentais, de que a invasão seria um “passeio no parque” e a conquista da Ucrânia era uma questão de dias ou semanas, nada aconteceu como planeado. Três anos estão decorridos, a guerra continua num impasse, como alguns ganhos táticos da Rússia, a custos elevadíssimos em homens e material.
Se a Rússia fosse a formidável e temível força militar que os analistas militares e civis ocidentais, particularmente da NATO, pretendiam ou julgavam que fosse, se os efetivos militares fossem inesgotáveis, a guerra teria acabado rapidamente com a conquista de Kiev e a instalação de um governo fantoche por Vladimir Putin. Contudo, a guerra dura há 36 meses, a Ucrânia perdeu território, mas tem dado uma incrível demonstração de vontade, coragem e determinação na defesa do seu país e da sua liberdade.
As origens da guerra na Ucrânia, “Operação Militar Especial” nas palavras de Vladimir Putin, são múltiplas, podendo ser analisadas em termos de causas remotas e causas próximas. As causas remotas são aquelas profundamente ligadas com a narrativa histórica da secular nação russa e a vontade da reconstrução do império perdido, enquanto as causas próximas são aquelas diretamente relacionadas com a queda do império soviético, a independência da Ucrânia, a expansão da NATO para Leste e ainda a mais recente invasão ilegal da Crimeia, em 2014.
O objetivo estratégico da invasão russa era o de conquistar Kiev e depor o seu governo, eleito democraticamente, e acabar em definitivo com o desejo da Ucrânia em aderir à NATO. Contudo, após cerca de um mês de sucessivas derrotas no terreno, com as forças militares russas incapazes de avançar, Putin abandonou o seu principal objetivo de tomar Kiev e mudou para um objetivo mais limitado e menos ambicioso, conquistar o Leste e o Sul da Ucrânia. Esta foi a primeira grande derrota da Rússia.
O que conduziu a Rússia de volta à guerra não foi a tão propalada ameaça de Putin pela expansão da NATO para Leste, mas sim o rumo da Ucrânia em direção ao Ocidente e tornar-se um estado democrático. A guerra aconteceu, primeiro, para parar este movimento, em segundo, o desejo de Putin em reconstruir o antigo império, por último, trazer de novo a Ucrânia ao seu velho estatuto vassalo ou, no mínimo, um estado independente com um governo fantoche comandado a partir do Kremlin.
A Rússia não é uma nação forjada em valores partilhados, crenças comuns e propósitos unificadores – foi um império construído pela força, vinculado por mentiras e mantido através do roubo das culturas e da história de outros povos. Em 2021, Vladimir Putin, afirmou que “... a Ucrânia não existe – não como uma entidade cultural e certamente não como uma nação...” reafirmou que “... russos e ucranianos são um só povo...”, no fundo, palavras não muito diferentes daquelas que czares e comissários afirmaram antes dele. A luta da Ucrânia é uma batalha, não apenas pelo território, mas pela a justiça e pela verdade histórica.
A campanha russa na Ucrânia tem sido, ao longo destes três anos, um enorme fracasso político e militar. Capturar Kiev, o principal prémio para Putin e o seu principal objetivo, foi uma derrota e uma demonstração total da incapacidade e incompetência das suas chefias militares. O desenrolar da invasão da Ucrânia para Vladimir Putin e para as forças militares russas tem sido uma verdadeira catástrofe. Uma desastrosa decisão política, baseada em narrativas históricas pouco credíveis e não baseadas no conhecimento da realidade da Ucrânia, nomeadamente depois da invasão russa da Crimeia em 2014, um planeamento militar estratégico, operacional e mesmo tático, calamitoso, uma logística totalmente incapaz de apoiar as suas forças militares, comunicações ineficazes, graves problemas de comando e controlo, liderança pobre e um quase inexistente apoio aéreo.
Pelo contrário, as forças militares ucranianas, mesmo em inferioridade numérica, com equipamentos e recursos muito inferiores, mostraram-se muito mais eficientes, flexíveis e com uma coragem notável, ao contrário do que era esperado pelos russos. Logicamente, ao fim de três anos de guerra, a contenção das forças russas, em muito maior número, só foi possível pelo apoio militar do Ocidente, particularmente dos Estados Unidos da América (EUA).
Para o Kremlin, o prolongar da guerra, que não era expectável no início do conflito, veio obrigar Putin a grandes mudanças na economia, no planeamento militar, nomeadamente na sua indústria de defesa e na necessidade da mobilização de efetivos militares em larga escala. Uma das primeiras decisões do Kremlin perante a guerra prolongada foi a transformação da economia russa numa economia de guerra. O orçamento de defesa russo para 2025 é de 145 mil milhões de US$, um aumento de 22,2% em relação a 2024, este orçamento representa 33% do orçamento total do estado. A grande fatia deste orçamento de defesa vai para o esforço de guerra, para a indústria de defesa, para reposição de equipamento militar perdido em combate e para pagamento de salários.
Ao longo destes três anos muitas fraquezas e vulnerabilidades foram constatadas nas forças militares russas, nomeadamente:
– Corrupção generalizada na defesa e na economia da Rússia. Indústria de defesa militar da Rússia sem capacidade de produção para repor os stocks despendidos nos combates. Contudo, com os fortes investimentos no setor da indústria de defesa, a capacidade e a produtividade melhoraram substancialmente;
– Completa ineficácia da Força Aérea Russa, incapaz de obter uma situação aérea favorável, nem de desenvolver operações complexas, como consequência, não tem desenvolvido operações de apoio às suas forças terrestres;
– Total degradação das forças militares russas, problemas graves de disciplina, desmoralização, falta de monitorização da eficácia do combate e dos combatentes;
– A campanha russa contra alvos civis, nomeadamente as populações e infraestruturas críticas continua. Os líderes militares russos não aprenderam com os conflitos passados, que mostraram à evidência, que este tipo de ataques em detrimento de alvos militares não são rentáveis em termos de sucesso no combate. As intenções são causar o terror, o horror, tornar a vida num inferno e retirar a vontade de combate pela exaustão.
Os comandantes militares ucranianos tem, ao longo de três anos de combates, revelado uma notável inteligência estratégica, operacional e tática, enorme flexibilidade e iniciativa. Têm revelado uma enorme capacidade de inovação, nomeadamente na utilização das mais evoluídas tecnologias no campo de batalha, nas áreas da Guerra Eletrónica, Cyberwar e Drones.
Ao fim de três anos de combate não se vislumbra quem possa sair vencedor, as vitórias de ambos os lados são meramente táticas, os avanços e o ganhos de território são mínimos. As forças militares de ambos os lados estão enfraquecidas, do lado russo, as perdas em homens e material são enormes, quase proibitivas.
A guerra no Teatro de Operações da Ucrânia tem sido basicamente uma guerra convencional terrestre, contudo, o espaço aéreo tem vindo a ser palco de utilização intensiva, não pelos aviões e helicópteros, como seria de esperar, mas sim com artilharia, foguetes, mísseis e drones. O cenário do campo de batalha na Ucrânia parece como uma reversão da I Guerra Mundial, com trincheiras lamacentas e paisagem destruídas por bombardeamentos, mas é também e simultaneamente um campo de testes para o futuro da guerra, através da utilização intensiva de sistemas de Guerra Eletrónica, Cyberwar e Drones, áreas onde as forças russas têm demonstrado excelsas qualidades.
A tecnologia mudou a guerra mais do que qualquer outra variável, a política, a economia, a ideologia, a cultura, a estratégia, as táticas, a liderança, a filosofia e a psicologia, e outros fatores, todos influenciaram a guerra. Esta guerra não está a ser exceção, ambos os contendores utilizam intensivamente sistemas das novas gerações tecnológicas. Talvez uma das maiores revoluções na guerra tenha sido a proliferação da utilização de Drones no campo de batalha e pela primeira vez numa guerra convencional.
A 4.ª Revolução Industrial é uma das maiores revoluções do século XXI, esta revolução digital é caraterizada pela fusão de diversas tecnologias que desfocam as linhas de fronteira entre aquilo que é físico (mecânico), o digital e as áreas da biologia, da biotecnologia, nanotecnologias e a da inteligência artificial. Esta mudança radical irá alterar profundamente a maneira como vivemos, trabalhamos, nos relacionamos em comunidade e particularmente como iremos combater.
Desde o início do conflito, o presidente Putin tem pautado o seu comportamento pela intransigência em modificar os seus objetivos iniciais, que incluíam, e é importante recordar, a neutralidade da Ucrânia e a sua desmilitarização, assim como a mudança de regime em Kiev. Todos esses objetivos, mesmo numa paz negociada, serão dificilmente atingíveis. Mesmo que o presidente russo saia da guerra com uma vitória militar, mesmo que mitigada, ele sabe que falhou nos seus objetivos estratégicos.
As baixas no campo de batalha para ambos os lados são enormes. Informações americanas estimam que cerca de 57 mil militares ucranianos já foram mortos e cerca de 250 mil feridos, desde o início da guerra. Por seu lado, a BBC estima que entre 150 a 200 mil russos tenham morrido e cerca de 600 mil tenham ficado feridos. Reportes indicam que o número de militares russos envolvidos na “Operação Militar Especial”, no fim de 2024, era de cerca de 500 mil. Será importante recordar que a Rússia iniciou a invasão da Ucrânia com cerca de 190 mil militares.
Em 2024, os promotores ucranianos abriram mais de 70 mil processos relacionados com deserção e ausências não autorizadas de militares, um número muito superior a anos anteriores. Entre a população ucraniana, o apoio para acabar a guerra é crescente. A proporção daqueles que deseja conceder território em troca da paz subiu de 10% em 2002 para os atuais 32%, conquanto 58% da população rejeita esta ideia. É evidente o cansaço da guerra. O problema é o de encontrar um caminho viável para uma paz justa e durável.
Para a Ucrânia, 2024 foi um ano de grandes dificuldades, incapaz de deter as forças russas de avançar, embora esses avanços sejam menores e a custos de dezenas de milhares de mortos para a Rússia. O apoio financeiro da União Europeia continua a fluir em grandes quantidades, contudo, o apoio militar em equipamentos e munições não tem sido o desejado pela Ucrânia, nomeadamente por parte dos americanos. O presidente ucraniano Vladimir Zelensky já admitiu que recuperar o território ocupado só será viável através da diplomacia e não pela força militar.
Com a eleição de um novo presidente americano, com o cansaço da guerra das potências europeias ocidentais, com a Ucrânia a demonstrar dificuldades militares na contenção das forças militares russas e dificuldades de mobilização, há sinais evidentes na procura de uma paz negociada.
A Ucrânia tem todo o direito à sua independência e a um lugar na comunidade euro-atlântica. Muitos aconselham que os EUA, na procura de uma paz negociada, adotem uma aproximação similar ao modelo encontrado para a Alemanha Ocidental, nos anos de 1990, estendendo o convite para aderir à NATO, nomeadamente os territórios das áreas ocidentais da Ucrânia. Isto envolveria o reconhecimento de facto da linha de contacto, como uma fronteira “interim” e a consolidação do resto do território sobre uma garantia de segurança provisional.
Por outro lado, a não integração da Ucrânia no espaço euro-atlântico encorajará os poderes autoritários, assinalando que a força das armas pode redesenhar as fronteiras internacionais. Situação que poderá influenciar aspirantes à expansão territoriais e imperialismos, muitos mantidos dormentes desde o fim da II Guerra Mundial. Os americanos estão cientes desses riscos, mesmo que alguns na nova administração da Casa Branca aplaudam estes desenvolvimentos. Qualquer acordo imposto à Ucrânia e com objeções dos países europeus da Aliança, irá fraturar a união transatlântica e enfraquecer a coesão da segurança europeia.
Donald Trump não deseja, nem apoia a NATO, para ele é um fardo, não compreende que na futura ordem internacional a Europa pode ser um importante aliado da América. Esta situação pode encorajar os movimentos ideológicos na direita radical americana com os seus aliados europeus, ampliando as divisões e alimentando as forças antidemocráticas no continente europeu. Esta situação, a acontecer, irá desmantelar as políticas de segurança do pós II Guerra Mundial, conduzindo a um período de grande instabilidade e realinhamento, não visto desde a guerra-fria. Esta será uma consequência desejável para Putin e de alguma forma perigosa para a segurança nacional dos EUA.
Na primavera de 2023, representantes oficiais da Alemanha, da França e do Reino Unido estariam a preparar um pacto entre a NATO e a Ucrânia, contudo, sem receber a proteção que poderia receber como membro da Aliança, levando a crer que esta proposta seria a de levar a Ucrânia à mesa das negociações e aceitar um acordo, embora sem refletir a totalidade das exigências da Ucrânia. Tanto quanto se conhece, os países aliados poderiam fornecer à Ucrânia, no futuro, equipamento militar, armas e munições, mas não a proteção do Artigo V do Tratado de Washington, ou qualquer compromisso de posicionar forças aliadas na Ucrânia.
Henry Kissinger, um ano antes de falecer, apresentou uma proposta de paz nos seguintes termos: “… deve estabelecer-se um cessar-fogo ao longo das fronteiras onde a guerra começou. A Rússia descartará as conquistas daí. Mas não território que ocupou aproximadamente há uma década, incluindo a Crimeia. Aquele território poderia ser sujeito a negociações depois do cessar-fogo…”. Kissinger acrescentou também uma recomendação para ao caso de um não acordo na mesa das negociações “… se a linha divisória entre a Ucrânia e a Rússia não puder ser atingida por combate ou por negociação, poderia ser explorado o princípio da autodeterminação através de um referendo com supervisão internacional…”. O objetivo da recomendação era duplo, por um lado, garantir a independência e a liberdade da Ucrânia e, por outro lado, definir uma nova ordem internacional, especialmente para a Europa Central e Leste, onde a Rússia deveria ter um lugar.
Cada vez se torna mais evidente que o mundo como o conhecemos vai mudar como resultado da Rússia ter soltado os diabos da violência e da guerra. A eleição de um novo presidente nos EUA e de uma nova administração na Casa Branca, assente num isolacionismo, num projeto político conservador e radical, um novo capitalismo inovador, onde se privilegia a economia e a desregulação, um ataque às instituições democráticas e uma enorme “sede” de criar um imperialismo, sem respeito das leis internacionais, causam grandes incertezas. Todas estas propostas, ainda não totalmente conhecidas, apenas explicitadas, vêm causar enorme imprevisibilidade na postura e no comportamento futuro da política externa americana. A Geopolítica assim como a Geoestratégia vão mudar, todas estas mudanças vão exercer forte pressão para uma nova realidade de segurança e defesa na Europa.
A União Europeia atravessa um período de alguma erosão, política, social e securitária, resultado da guerra na Ucrânia e agravada com a eleição do novo presidente americano, será que caminhamos para uma transição para um diferente modelo de relacionamento euro-atlântico, onde o poder militar, a base industrial de inovação e capacidade financeira será decisiva? Provavelmente, sim.
O mundo ocidental assentou desde o fim da II Guerra Mundial no direito internacional, reforçado nos acordos de Helsínquia (1975) e no fim da guerra-fria. Com a nova administração em Washington, assente no isolacionismo americano, no conceito do “America First”, no imperialismo americano, que não tem pejo em humilhar e alienar os aliados, fica a sensação da intenção de reinventar a “Monroe Doctrine”, agora extensível ao Canadá, à Gronelândia e ao Ártico, no pior dos cenários, o relacionamento euro-atlântico pode entrar em rutura. É provável que esta nova administração continue as intenções de se restringir aos interesses americanos em detrimento da cooperação internacional, através da redução do apoio e do envolvimento com as instituições internacionais, primariamente à NATO e às Nações Unidas.
A leitura da história ensina que o inexpectável está sempre a acontecer e responder às novas mudanças circunstanciais com ideias e ferramentas do passado conduz facilmente ao desastre. A admoestação que devemos lembrar o passado para evitar repetir os erros cometidos antes é uma verdade insofismável. A Europa, no futuro da nova ordem global, vai ser confrontada com diferentes tipos de ameaças, ameaças cinéticas e híbridas, sociais, migrações, económicas e ideológicas, nomeadamente das direitas radicais, apoiadas pelas direitas extremistas americanas. As forças militares e a economia da Rússia estão enfraquecidas em resultado da guerra, não sendo previsível que nos próximos dez anos constitua uma ameaça aos seus vizinhos da Europa Central e Leste e muito menos aos países da Europa Ocidental.
No médio/longo prazo, a maior ameaça à Europa poderá vir da América, particularmente em termos económicos e comerciais. Esta afirmação pode ser polémica, mas basta ler o “Project 2025” da “Heritage Foundation”, as bases programáticas da nova administração na Casa Branca, para compreender os reais objetivos americanos, dividir e enfraquecer a União Europeia. Nada de novo, as guerras comerciais sempre foram uma realidade entre a América e a União Europeia no passado. A Rússia está a desenvolver um enorme esforço financeiro na reconstrução e reequipamento das suas forças militares, contudo, isso leva o seu tempo. Logicamente, a ameaça russa, particularmente a ameaça militar, nunca poderá ser descartada.
A Europa tem de finalmente acordar, investir numa capacidade de defesa autónoma, desenvolver uma base industrial de defesa e, muito importante, investir e desenvolver as indústrias europeias capazes de competir com a América e com a China, como bem explicitado no relatório de Mário Draghi. A Europa precisa de voltar a ter voz ativa no concerto das nações, e fundamentalmente desenvolver uma capacidade de dissuasão que evite futuras aventuras agressivas, nomeadamente por parte da Rússia.
A aliança tripartida entre a NATO, a União Europeia e os EUA, pode começar a ter fraturas no seu interior, são conhecidas as fragilidades evidentes. Os EUA, embora a potência hegemónica militar, tem fragilidades internas complexas. A União Europeia, embora parecendo unida, encerra divisões no seu interior, que quando acabar a guerra voltarão. Não existe um consenso alargado na União Europeia de como lidar com a China e com a Rússia, e no futuro com a própria América. Muitas são as vozes que, na Europa e nos EUA, apresentam mil razões para a invasão da Ucrânia pela Rússia, algumas mesmo desculpabilizando, com falsas narrativas, as suas ações ilegais.
O presidente Trump não é um profundo conhecedor das realidades da política e da geoestratégia internacional, não compreende que uma vitória da Rússia na Ucrânia, mesmo que mitigada, causará enormes danos à Europa. Os vinte e cinco anos de poder de Putin na Rússia mostram que sempre que lhe é permitido sair impune de qualquer ultraje ou aventura internacional tenta, metafórica e literalmente, avançar para novas fronteiras.
A agressão da Rússia, em fevereiro de 2022, e os três anos de guerra, são injustos, ilegais e indesculpáveis. Esta deverá ser uma mensagem para os negociadores da paz, nomeadamente para os americanos e europeus, compreenderem que, construir a paz e levantar a “bandeira branca”, são raramente a mesma coisa. Só um louco pretenderá a continuação da guerra na Ucrânia. Mas, só um idiota pretenderá acabá-la através da coerção à Ucrânia de cair de joelhos perante Vladimir Putin.
A Rússia, mesmo numa paz negociada, não poderá sair impune perante a comunidade internacional, houve graves violações das leis internacionais e dos tratados internacionais assinados pela Rússia, existiram crimes de guerra cometidos e pelas suas responsabilidades nesses mesmo crimes terá que haver punições. As discussões populares sobre a guerra seguem normalmente ou são vistas através de perspetivas da moralidade, da ética e da justiça, contudo, sob todos estes pontos de vista restam os interesses e o poder. Como afirmou Lord Palmerston, antigo primeiro-ministro inglês (1784-1865), “… não temos aliados eternos, e não temos inimigos perpétuos. Os nossos interesses são eternos e perpétuos, e são aqueles interesses que é nosso dever seguir...”.
A invasão da Rússia na Ucrânia resultou de fatores da história, da religião, do desejo do novo Czar Putin da reconstituição do antigo império e sem dúvida os seus receios de ter uma democracia à porta de casa. A Rússia, mesmo numa paz negociada, enfrenta vários desafios. Ao longo destes três anos de guerra verificou-se que não estava preparada para um conflito prolongado, tendo necessidade de recorrer a apoio externo, nomeadamente da Coreia do Norte e do Irão e, no último ano, teve mesmo a necessidade de recorrer a tropas norte coreanas, o que era impensável para um país que se julgava uma grande potência.
Como resultado da Guerra, as relações diplomáticas com o Ocidente estão completamente interrompidas ou inexistentes, o seu capital moral absolutamente delapidado, tornando-se um estado fortaleza e um satélite da China – a história irá considerar isto não como um triunfo, mas sim como uma derrota. Para a Rússia, os custos desta guerra são enormes. As suas forças militares governam a zona ocupada da Ucrânia com mão de ferro, envolvendo atos de tortura, raptos, violência e mortes arbitrárias.
O futuro da Europa é complexo, sujeito a muitas incógnitas e poucas certezas. O mundo está a evoluir para sistemas antidemocráticos, onde as liberdades e os direitos humanos não são a primeira prioridade. A América, um farol de liberdades, de livre comércio e um aliado fiel da Europa, desde os anos 40 do século passado, pode deixar de ser o parceiro leal e caminhar para um isolacionismo, tornando-se um adversário económico e comercial, numa evolução para um sistema iliberal, governado por uma teia de tecno-oligarcas.
O “trumpismo” é apenas uma variante do transnacionalismo, que é o leitmotiv desta nova desordem. As democracias liberais, sobretudo as da Europa, precisam de acordar e dar-se conta da gravidade da situação. A Europa precisa de investir fortemente na criação de uma capacidade de dissuasão autónoma capaz de enfrentar e evitar aventuras de adversários e inimigos.
Os EUA, num novo tempo de “Power Competition”, particularmente com a China, mesmo com um orçamento militar “estratosférico” (com o reforço apresentado no Senado pode atingir, em 2025, 1 trilião de US$) não tem capacidade de lidar simultaneamente com as ameaças na Ásia, na Europa e no Médio Oriente, vai certamente precisar do apoio da Europa na contenção dessas ameaças. É muito provável que os EUA não venham a abandonar a NATO, nem na forma nem de facto, podem, contudo, por diretivas presidenciais reduzir a operacionalidade do seu apoio. Recentemente, conservadores americanos, em forma de aviso, afirmaram que abandonar a Europa seria um erro histórico e prejudicial aos interesses americanos.
Todos caminhamos em gelo fino sem sabermos claramente qual o futuro que nos está reservado, apenas sabemos que é complexo e que pode ser perigoso. A Europa tem de se preparar.
A Europa atravessa uma grave crise securitária, todavia, os governantes e os políticos nacionais ainda não interiorizaram essa realidade. Fica a sensação de que a crise é secundária, a defesa não é prioridade e a guerra é algo longínquo que dificilmente nos afetará. Enorme erro. Os assuntos militares continuam completamente ausentes do discurso político nacional. A cultura estratégica em Portugal é fraca ou inexistente, esquecemos a nossa geografia marítima. Bradamos ser parte integrante da Europa, mas esquecemos a contribuição devida para a defesa cooperativa dessa mesma Europa. Um dia vamos pagar um elevado preço.
Foi professor no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea, chefiou a Divisão de Planeamento Estratégico Militar no Estado-Maior General das Forças Armadas.