Nº 2436 - Janeiro de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Em Memória do General Adalberto Gastão de Sousa Dias
Major-general
Augusto José Monteiro Valente

Introdução

 
A figura do General Sousa Dias foi-me revelada quando, logo após o «25 de Abril», servi no, então, Regimento de Infantaria nº 12, na cidade da Guarda, em cujo cemitério se encontram os seus restos mortais. Comecei, a partir de então, a aprofundar o conhecimento daquela personalidade militar de que nunca antes ouvira falar, mas que depressa concluí gozar de um enorme prestígio entre os democratas da cidade, junto de cuja urna evocavam anualmente o «5 de Outubro», durante a longa noite da ditadura, como hoje o continuam a fazer. Trazido em segredo de Cabo Verde, em 1936, dois anos depois de haver falecido deportado em S. Vicente, o seu corpo foi depositado às escondidas, pela calada da noite, no cemitério da Guarda, num jazigo cedido pela família de José Maria Proença, onde permanece dentro do «caixotão» de madeira enegrecida e com os pregos ferrugentos, à espera do funeral a que não teve direito e apenas lembrado pela família e por alguns democratas.
 
Através do estudo da sua figura e da sua acção política e militar, comecei a mergulhar na descoberta desses numerosos democratas republicanos - um número elevado deles militares - que, embora sem êxito, lutaram corajo­samente pela reposição da legalidade constitucional e das liberdades fundamentais dos portugueses, violentamente interrompidas em 28 de Maio de 1926, mas cujo combate foi decisivo para que a liberdade pudesse triunfar em 25 de Abril de 1974. Entre essa plêiade de corajosos democratas ocupa lugar de destaque o General Sousa Dias, pelo seu importante papel tanto na defesa da República quando esta esteve em perigo, como na resistência à ditadura que lhe pôs termo. A constância na fidelidade aos ideais republicanos, civilistas, democráticos e constitucionais marca toda a sua vida, desde a juventude à morte: apoiou o «5 de Outubro», recusou o «pimentismo» e o «sidonismo», combateu Paiva Couceiro e a «Monarquia do Norte», resistiu ao «28 de Maio» e chefiou as revoltas militares de 3 de Fevereiro de 1927 e de 4 de Abril de 1931, o “primeiro «25 de Abril» falhado” após o 28 de Maio de 1926, segundo José Freire Antunes (1), e o “grande e derradeiro susto da ditadura” antes do advento do Estado Novo, na perspectiva de Fernando Rosas (2). Ao Estado Novo sempre interessou o silêncio sobre essa luta e os seus protago­nistas, mas o regime democrático ainda não fez tudo para recuperar, honrar e perpetuar essa memória colectiva a que queremos continuar fiéis.
 
 

Sousa Dias: A coerência e a firmeza republicana

 
Adalberto Gastão de Sousa Dias, nasceu em Chaves, a 31 de Dezembro de 1865. Descendente de uma família de militares, era filho de José Maria de Sousa Dias (Oficial do Exército) e de Ana Albina Sampaio de Sousa Dias, sendo o pai natural de Lisboa e a mãe do concelho de Chaves. Dois seus irmãos foram também militares. Entre 1875 e 1880 estudou no Liceu de Vila Real, onde concluiu o ensino secundário, após o que se matriculou na Universidade de Coimbra, frequentando os preparatórios para admissão à Escola do Exército de 1881 a 1883. Simultaneamente, assentou praça como voluntário em 13 de Janeiro de 1881. Em 1888 concluiu o Curso de Infantaria da Escola do Exército, com a melhor classificação, sendo promovido a Aspirante-a-Oficial em Janeiro do ano seguinte (3) e colocado no Regimento de Infantaria n º 12, na Guarda, onde prestava serviço o seu pai. Casou na igreja paroquial da Sé desta cidade, em 30 de Abril de 1891, com Ana Augusta Abrantes, natural de Manteigas.
 
Como subalterno esteve ainda colocado nos Regimentos de Infantaria n º 21, na Covilhã, e no Regimento de Infantaria n º 34, em Pinhel, tendo sido promovido a Capitão em 1902.
 
A juventude, a adolescência e os primeiros anos de carreira militar de Sousa Dias coincidiram, pois, com a crise final da monarquia e com o período de maior fervor revolucionário do republicanismo. Vivia-se então na Europa um período de crise do liberalismo. A livre concorrência individualista cedia terreno perante a ofensiva do proteccionismo imperialista, que levaria à corrida pela disputa dos territórios coloniais africanos, à partilha da África, à constituição dos grandes impérios coloniais e ao acentuar das rivalidades entre as principais potências europeias. Neste contexto internacional e numa situação de crise interna agravada, pela concorrência da crise final do essencial do antigo regime económico com a crise da monarquia, Portugal sofreria afrontas diplomáticas em série que culminariam no ultimato inglês de 1890 e no projecto de partilha das colónias portuguesas pelas potências europeias. A fraqueza revelada pela monarquia perante as humilhantes afrontas externas apressaria o seu fim e, por outro lado, impulsionaria o movimento republi­cano que, desde então, assumiria o carácter de uma tomada de consciência nacional da necessidade de modernizar o ideário liberal. No plano militar as reformas no sentido da criação de um exército nacional que traduzisse o conceito de «nação em armas», em voga desde a Revolução Francesa, baseado no recrutamento obrigatório de todos os cidadãos em igualdade de deveres, esbarrava com a oposição da nobreza, receosa de perder as prerrogativas que gozava, perante a oposição dos militares profissionais. Sem rumo certo em matéria de reformas, envolvido, desde a Revolução Liberal, em guerras civis, revoltas e conflitos entre liberais e absolutistas, constitucionalistas e cartistas, o Exército encontrava-se em acelerada decadência, remetido para funções desprestigiantes de polícia e ordem pública e com os soldados e sargentos vivendo miseravelmente da caridade pública.
 
Foi neste ambiente de crise geral do regime monárquico, da sociedade e do exército, de constante instabilidade política e militar, que Sousa Dias viveu os seus primeiros anos de carreira militar, como subalterno e Capitão. Neste posto assistiria ao fim da monarquia. Na esteira de seu pai, Sousa Dias era já um apoiante da causa republicana desde a revolta militar de 31 de Janeiro de 1891 e, após a proclamação da República, filiou-se no Partido Democrático, a cujo ideário se manteria fiel até à morte. O carácter nacional da aspiração republicana fizera convergir nela, a partir de 1890, elementos de todas as classes da sociedade - grandes proprietários agrícolas, professores univer­sitários, advogados, médicos, professores de todos os graus do ensino, altas patentes do Exército e da Marinha, funcionários públicos, operários e outros.
 
A proclamação da República e a consequente mudança política acelerou a viragem nas estruturas económicas, sociais e culturais para a plena contemporaneidade, coincidindo, por outro lado com um momento culminante da expansão ultramarina africana; no âmbito do Exército institucionalizou-se, de imediato, o serviço militar obrigatório, geral e pessoal. Contudo, o optimismo inicial depressa deu lugar à desilusão, perante as divisões no Partido Republicano, as divergências e a falta de realizações em domínios fundamentais, o radicalismo ideológico e religioso e a agitação social. As tentativas de incursão monárquica, as campanhas africanas e a iminência da deflagração da Primeira Guerra Mundial agravaram a situação, atrasando a implementação das reformas militares aprovadas e favorecendo a manutenção de um corpo militar permanente onde pontificavam numerosos Oficiais ideologicamente monárquicos. O resultado foi um ambiente de constante instabilidade política, de conflitualidade social e de revoltas militares.
 
Em 1912 Sousa Dias foi promovido a Major, participando em Julho desse ano, com o seu Batalhão, no combate aos monárquicos em Chaves, durante a segunda incursão de Paiva Couceiro. Colocado, posteriormente, no Regimento de Infantaria 35, em Coimbra, durante uma grave insubordinação ocorrida naquela Unidade, defendeu o Comandante, que os soldados pretendiam alvejar, cobrindo-o com o seu próprio corpo. Encontrava-se a prestar serviço ainda nesta unidade quando, em 21 de Janeiro de 1915, ocorreu o chamado «movimento das espadas», que deu origem ao primeiro Governo em ditadura durante a República, chefiado pelo Major de Pimenta de Castro, movimento a que recusou colaboração. Foi promovido a Tenente-Coronel em 1 de Dezembro de 1915.
 
Entretanto, as potências europeias haviam-se envolvido na I Grande Guerra, e Portugal acabaria também por nela participar, a partir de Janeiro de 1917. A guerra fez agravar as divisões políticas internas e a agitação social que desde o 5 de Outubro minavam a estabilidade da República, tornando irreconciliáveis os vários sectores da sociedade e impedindo que ela funcionasse como um factor de reforço da coesão nacional e de recomposição do sistema político, ao contrário do que sucedeu com os outros países belige­rantes. Uma ampla frente reaccionária - monárquicos, nacionalistas, integralistas, católicos, militaristas e outros desencantados da República - aproveitaram a situação para conspirarem contra o regime constitucional, o que culminaria no golpe militar de Sidónio Pais, em 5 de Dezembro desse ano. Tendo-se oposto a este pronunciamento, Sousa Dias foi preso e deixado sem colocação durante algum tempo.
 
Promovido a Coronel em 1918, Sousa Dias comandava o Regimento de Infantaria de Reserva n º 18, no Porto, quando da proclamação da «Monarquia do Norte», em 19 Janeiro de 1919. Intimado a aderir ao movimento revoltoso e a jurar fidelidade ao Rei pela então constituída «Junta Governativa do Reino de Portugal», recusou-se categoricamente a fazê-lo, declarando não lhe reconhecer poderes legítimos. Com o seu Regimento colaborou activamente com as forças republicanas nos combates que levariam à derrota daquela nova tentativa de restauração do regime monárquico, em 13 de Fevereiro seguinte, assumindo, depois, o comando do Regimento de Infantaria n º 6, no Porto. Em 1920 foi condecorado com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Avis, seguramente devido à sua lealdade à República naquele e nos anteriores momentos em que ela esteve em perigo.
 
Os acontecimentos relativos à fracassada tentativa de proclamação da monarquia no Porto e em Lisboa, a 19 de Janeiro de 1919, haviam mostrado existir um grupo militar representante da herança sidonista que, embora minoritário, estava organizado para combater a República. A situação acabou por ser controlada mas, a partir dos anos vinte, as sequelas do desastre do Corpo Expedicionário Português na Flandres, a revolta contra os partidos intervencionistas, o agravamento da crise social, económica e financeira, o aumento da agitação social e a instabilidade governativa, conduziram à decomposição partidária, à dissolução do poder e ao reforço das tendências conservadoras, nacionalistas e integralistas, com apoios crescentes no sector militar. O primeiro sinal do perigo que começava a espreitar a República foi dado com a revolta abortada de 19 de Outubro de 1921, o primeiro levantamento “radical” que se saldou pelo assassinato de vários políticos e militares republicanos, entre os quais o próprio presidente do ministério, António Granjo, durante a designada «noite sangrenta».
 
Na década de vinte, os militares foram chamados cada vez mais frequentemente a desempenhar cargos públicos, até porque vários políticos que haviam estado à frente dos destinos da República, se afastaram ou desinteressaram da política ou foram em missões oficiais para o estrangeiro. E não foi por simples coincidência que, desde então, se começou a falar do Exército como «mandatário nacional» e garante do «interesse nacional», enquanto em sectores cada vez mais amplos da opinião pública aumentava o apelo à intervenção política dos militares, vistos como os «salvadores da Pátria».
 
Republicano e constitucionalista prestigiado, Sousa Dias, foi nesse período, eleito Deputado pelo Círculo do Porto nas eleições de 1921 (Legislatura de 1921), tendo desenvolvido um notável actividade nas comissões militares parlamentares, principalmente em estudos sobre a reorganização do Exército. Oficial muito prestigiado e firme republicano, foi por diversas vezes indigitado para o Governo, na qualidade de Ministro da Guerra, cargo que sempre recusou ocupar porque, como civilista convicto, rejeitava a participação dos militares na área governativa. Em 1923 foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Cristo e, no ano seguinte, com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant’ Iago de Espada. Foram-lhe também atribuídas as medalhas militares de Ouro de Comportamento Exemplar, a medalha de Ouro de Bons Serviços e a medalha da Cruz Vermelha. Em 1925 foi promovido a General e nomeado comandante da 3 ª Divisão do Exército, no Porto.
 
No ano anterior, quatro tentativas limitadas de revolta militar haviam testado, de novo, a solidez do regime. Antes de 28 de Maio de 1926, quatro novas revoltas, mais amplas, prepararam o assalto final à República, com os vários grupos conspirativos a disputar a liderança do pronunciamento definitivo: primeiro as do grupo sidonista-monárquico de Sinel de Cordes, em 5 de Março e 18 de Abril de 1925; depois a do grupo republicano conservador de Mendes Cabeçadas, em 19 de Julho seguinte; e, em 2 de Fevereiro do ano seguinte, foi a vez do grupo radical de Martins Júnior. Sentindo o poder cada vez mais ameaçado, o Governo de António Maria da Silva fez várias tentativas, sem êxito, para chegar a um acordo com o grupo de Mendes Cabeçadas e Cunha Leal. O golpe acabou finalmente por eclodir em Braga, com a sublevação inicial do Regimento de Infantaria 8, em nome de «um governo nacional militar, rodeado das melhores competências para instituir, na administração do Estado a disciplina e a honradez que há muito perdeu», de acordo com a proclamação ao país assinada por Gomes da Costa. A partir de Braga, o movimento estendeu-se rapidamente às Divisões Militares de Vila Real, Coimbra, Viseu, Tomar e Évora.
 
Firme republicano, o General Sousa Dias conseguiu manter a lealdade das suas unidades ao Governo durante o conturbado ano de 1925. E, quando em 28 de Maio estalou a revolta, foi “um dos poucos oponentes militares ao 28 de Maio”, como escreve Fernando Rosas (4), recusando o convite que lhe foi dirigido por Gomes da Costa. Os termos dos telegramas trocados entre ambos são bem elucidativos a esse respeito (5):
 
Telegrama dirigido ao General Sousa Dias (no Porto) pelo General Gomes da Costa (Penafiel).
  
«Estou Penafiel. Toda a Guarnição Militar ao meu lado, como de resto está quasi todo o exército.
 
Nestas condições eu peço a V. Excia sua leal cooperação comigo para bem da patria e do exercito.
(a) Gomes da Costa»
 
- Telegrama de resposta do General Sousa Dias.
«V. Ex. ª quem sempre prestei sinceras homenagens pelos valiosos serviços Pátria e Exercito, - que desempenhando cargos confiança honrou compromissos tomados, compreende minha situação lugar ocupo. Conti­nuarei mantendo sempre atitude obediência devida Ministros da Guerra em exercício que me distingam sua confiança.
(a) Sousa Dias Gen. al»
 
Sousa Dias assumiu, então, o comando das operações de resistência ao levantamento militar, organizando um Grupo de Destacamentos para contra-atacar os revoltosos, que nesse mesmo dia marchou em direcção a Braga, ocupando posições em Famalicão e Nine. Porém, dois dias depois, confrontado com a extensão e clara superioridade da insurreição militar, com a intercepção e neutralização dos reforços enviados de Lisboa pelo Governo, a demissão posterior deste e do Presidente da República, Bernardino Machado, e com a aderência à revolta de várias das unidades sob o seu comando, Sousa Dias acabaria por, em nome da 3 ª Divisão do Exército e após reunião no Quartel-General com os comandantes dos corpos militares aquartelados na cidade do Porto, dar adesão ao movimento nacional e militar, pedindo ao mesmo tempo a exoneração do cargo que exercia.
 
Tenho a consciência tranquila - escreveria mais tarde - de que nas conjunturas dadas, cumpri honestamente o meu dever, indo até onde pude e como pude. E, mais, como reforço de ter ido até onde foi possível ir: - a adesão da unidade do meu comando - «malgré tout» - só foi um facto e «só a permiti» - quando o Ministério pediu a sua demissão, que foi aceite, e a Presidência da Republica chamou à Governação Publica, as individualidades da revolta!... Julgo que ninguém podia ir mais longe do que eu fui!...” (6).
 
Uma longa noite de trevas caiu então sobre a República e a Liberdade. Mas a maioria dos republicanos estavam ainda nessa altura muito longe de o prever. Os sectores políticos republicanos da família liberal e nacionalista e os militares republicanos moderados e conservadores haviam mesmo apoiado o movimento militar, uns e outros acreditando que a ditadura seria um regime transitório para regenerar a República. Não era esse o caso do General Sousa Dias e não tardaria a demonstrá-lo.
 
 

Sousa Dias: O resistente que fez tremer a ditadura.

 
Exonerado de Comandante da 3 ª Divisão, Sousa Dias foi nomeado Director da Arma de Infantaria, cargo do qual se demitiu dois meses depois, passando a desempenhar as funções de Presidente do Júri de Exames para General e, desde 28 de Janeiro de 1927, as de Vogal do Conselho Superior de Promoções, todos cargos que a gíria militar designa por «lugares de prateleira».
 
Suportada, fundamentalmente, pelos sectores monárquicos, conserva­­dores, integralistas e católicos, a ditadura tinha, contudo, à sua esquerda, o esteio dos republicanos das famílias liberal e nacionalista e, mesmo, de alguns democráticos que, equivocados quanto aos seus reais propósitos do pronunciamento militar, haviam aberto a porta à direita antidemocrática, conven­cidos, ingen­ua­mente, dos propósitos reformadores do movimento militar, no respeito pela natureza republicana e constitucional do regime. Com excepção do Partido Comunista, mesmo os outros partidos de esquerda mantiveram durante algum tempo uma atitude despreocupada e de expectativa perante o golpe militar. A ditadura era obviamente apoiada por uma grande parte da população, pelo menos nos seus primeiros tempos, cansada da instabilidade política, da agitação social e da crise económica e financeira. O sector republicano-conservador tinha uma larga e predominante componente militar, sobretudo ao nível das chefias, mas entre a oficialidade subalterna fazia-se sentir a forte influência da direita radical. Mas, após o golpe que afastou o Comandante Mendes Cabeçadas, a 17 de Junho, e à medida que os elementos direitistas começaram a prevalecer e as tendências monárquica e fascista a afirmar-se, um bloco claramente antiditatorial começou a constituir-se no país.
 
O General Sousa Dias encontrava-se no Porto, sob prisão e com baixa no Hospital Militar, quando eclodiu naquela cidade a revolta militar de 3 de Fevereiro de 1927, iniciada com a saída, pelas 04h30, do Regimento de Caçadores 9, seguido por uma Companhia da Cavalaria 6 e outra de Infantaria 18, por forças de Sapadores Mineiros e da GNR da Bela Vista, parte da Polícia Civil do Porto e muitos civis armados. Não considerando as prematuras e pontuais tentativas de revolta militar de 11 de Setembro, em Chaves, e de 21 do mesmo mês, em Lisboa, pode considerar-se que o movimento de 3 de Fevereiro foi o primeiro, e o único, a constituir uma verdadeira ameaça para o novo regime emergente. Sendo um dos mais prestigiados generais opositores ao novo regime, Sousa Dias foi convidado pelos revoltosos a assumir a chefia da revolta, comando que de imediato aceitou.
 
O Comité Militar Revolucionário então formado integrava outras figuras de republicanos ilustres, como o Coronel Fernando Freiria, José Domingues dos Santos, o Comandante Jaime Morais, o Capitão-médico Jaime Cortesão e o Capitão Sarmento Pimentel. Os propósitos da revolta são claramente expressos no manifesto «Ao Povo Português», assinado e divulgado por aquele comité:
 
Os oficiais revoltosos decidiram reintegrar o País dentro do regimen democrático constitucional, com a formação de um Governo Nacional que afirmasse a supremacia do poder civil, guardado e defendido pela força armada, que assim teria restituído as funções de que a desviaram.” (7)
 
Reforços de outras unidades militares ou da GNR, vindos de Amarante, Valença, Lamego, Penafiel, Póvoa do Varzim, Famalicão, Vila Real, Régua, Santo Tirso e Guimarães, juntaram-se no Porto aos revoltosos. Aderindo à sublevação, amotinaram-se as guarnições de Viana do Castelo, da Figueira da Foz, de Vila de Santo António, Tavira e Faro. Mas, apesar do volume de forças do Exército e da Guarda Nacional Republicana que aderiram à revolta e do apoio de centenas de civis armados, a revolta acabaria por fracassar. Foi decisiva a não adesão dos Regimentos de Artilharia 5, da Serra do Pilar, de Cavalaria 9 e Infantaria 18, do Porto, da GNR do quartel do Carmo e de outras unidades do centro e norte do país. Mas o golpe fatal na revolta foi o atraso no desencadeamento da insurreição em Lisboa, iniciada apenas em 7 de Fevereiro, precisamente no dia da rendição das forças revoltosas no Porto - a “revolução do remorso”, como lhe chamaria ironicamente Sarmento Pimentel.
 
Entretanto, as centenas de baixas entre a população, causadas sobretudo pela artilharia governamental, apesar dos protestos do General Sousa Dias, que entendia ser “do mais elementar princípio do Direito Internacional que se não fizesse fogo sobre uma cidade aberta sem que fosse previamente prevenida a sua população”, e do próprio pedido do Comandante da Região Militar para que se não bombardeassem as casas dos habitantes, abalaram fortemente o moral dos revoltosos. O esgotamento das munições ditou, por fim, a sorte daquela que foi a maior e mais profunda entre as revoltas ocorridas desde a implantação da República, na opinião de vários historia­dores.
 
«Esperava-se a revolta simultânea, em Lisboa e Porto. Mas não. Daí o desastre. Não sai igualmente com toda a força de que dispunha ou que estava comprometida. A organização poderia e deveria ter ido mais longe, arrostando com as dificuldades dos ronceiros; mas o optimismo, contando com adesões que não vieram e outras que demoraram, foi fatal» - sintetizou Raúl Rego (8). Nas suas notas sobre o movimento revolucionário do Porto, também Sousa Dias considerou que o insucesso se deveu essencialmente “à falta de acção de elementos militares mais do que suficientes para garantir o seu êxito em todo o País, e que no momento necessário faltaram” (9).
 
As feridas abertas pelo 28 de Maio no seio da família republicana ainda não haviam sarado e isso seria fatal para a revolta, como o seria para as que se lhe seguiriam. Apesar da orientação cada vez mais claramente fascizante da ditadura, os sectores republicanos mais conservadores ainda não haviam rompido com ela, outros defendiam que não se deveria hostilizá-la e os restantes continuavam profundamente divididos quanto à estratégia para combater a ditadura e quanto ao futuro político imediato, designadamente entre os que defendiam uma acção revolucionária nos moldes tradicionais republicanos e o retorno imediato à normalidade constitucional, e os que preconizavam um movimento essencialmente militar seguido de “um forte governo nacional”. Sousa Dias encontrava-se no primeiro campo. O excerto seguinte de uma carta por si enviada de S. Tomé, em 1927, ao General Norton de Matos é uma clara demonstração disso mesmo:
 
“ (...) Aquando da consulta aos Deportados, feita pela Liga de Paris sobre se mais conviria, após um movimento triunfante, constituir-se um «Governo Provisório» ou entrar-se imediatamente na normalidade consti­tucional - emitimos, eu e o Coronel Freiria, como chefes militares que fomos do movi­mento constitucional de 3 de Fevereiro, no Porto, a seguinte opinião: de que se deveria enveredar por esta última fórmula governativa.
 
Justificávamos este nosso critério, nas circunstâncias especiais que se davam nos que, como nós, de armas na mão, tínhamos combatido a acção ditaturial de 28 de Maio.
Em uma série de «considerandos», enviados à Liga por essa ocasião, manifestávamos, bem claramente, que este nosso critério se fundamentava, apenas e em absoluto, na coherência que se nos impunha manter perante a nossa acção constitucional, no movimento referenciado: isto é, tendo-nos lançado ativamente, e de armas na mão, contra uma situação ditaturial, não seria coherente que enveredássemos, após a sua queda, pela adopção dos mesmos processos governativos. (...).” (10)
 
Mas Sousa Dias não era a pessoa intransigente que já então certos republicanos o acusavam de ser e que alguns autores também fazem crer. Numa outra carta de resposta a Norton de Matos, publicada na obra citada de A.H. de Oliveira Marques, desmente-o claramente, aceitando a proposta de compromisso que lhe é apresentada por aquele, no sentido do apoio a uma solução de substituição da ditadura por um outro regime forte, liderado por um militar, capaz de garantir a transição democrática, uma fórmula com que se pretendia reunir os democráticos e os liberais e muitos dos militares sem filiação:
 
“ (...).Tenho timbrado sempre - escreve - em respeitar as opiniões de todos - para me constituir no direito de que me respeitem, por seu turno, as minhas convicções; e impróprio do meu caracter - a que o meu passado tem completo jus - seria impôr ais demais o meu critério ou o que se me afigura de melhor (...)
 
Como V. Ex.cia, eu considero de integral exigência: Que de vez se termine com as ditaduras - seja qual for o caracter de que ele se revistam!
 
Não desconheço, todavia, que após um acto revolucionário triunfante, se trona mister manter durante algum tempo o estado de coisas inerentes a situações anormais, - e que prevalecem até que possível seja regularizar e normalizar-se a situação.
 
Mas, esse interregno imperioso, deve, a meu ver, ser da mais curta duração e estender-se apenas ao que estritamente for julgado necessário e indispensável estabelecer-se. (...)” (11)
 
Na sequência do fracasso do 3 de Fevereiro, o General Sousa Dias, como muitos outros líderes revolucionários, foi preso e separado do serviço activo, com direito a apenas metade do respectivo vencimento (12), sendo-lhe fixada residência obrigatória em São Tomé e Príncipe, uma situação consi­derada oficialmente como de deportação política que se prolongou por nove meses, sujeito aos caprichos atrabiliários do Governo. Do degredo continuou a manter activa ligação com os exilados políticos da Liga de Paris, sempre coerente com a sua lealdade aos princípios, valores e ideais constitucionais da República e sempre confiante no triunfo final desta contra a ditadura.
 
 Transferido, em Dezembro de 1927, de S. Tomé para o Faial (Açores), foi julgado em 1929, no Forte da Graça, em Elvas, por um tribunal especial e condenado a dois anos de prisão, tendo-lhe sido descontado o tempo passado em São Tomé e nos Açores. Voltou a ser-lhe fixada residência no Faial, sendo em 1930 transferido para o Funchal.
 
O movimento militar de 3 de Fevereiro traduziu-se em centenas de mortos e feridos e em milhares de presos e deportados, marcando o início de uma era de repressão como não havia memória no passado.
 
Os opositores à ditadura não descansaram e, logo após a derrota deste primeiro movimento revolucionário, constituiu-se entre os muitos exilados na capital francesa a «Liga de Defesa da República» (vulgo «Liga de Paris»), com o objectivo de fazer a unidade entre todos os republicanos e coordenar a luta contra a ditadura. Os seus principais dirigentes eram Afonso Costa, Bernardino Machado, Álvaro de Castro (falecido em 1928), José Domingues dos Santos, Jaime Cortesão e António Sérgio. Mas aquele objectivo nunca seria conse­guido e foi, precisamente, com o Partido Republicano Português que a Liga de Paris teve mais problemas, pois no seu directório havia gente com programas políticos e estratégias revolucionárias bastante diferentes. No campo oposto situavam-se os elementos democráticos, mas as relações destes com a Liga também não foram pacíficas. Só a solidariedade republicana os unia. No mais, e sobretudo na acção concreta, a unidade nunca existiu e, à medida que o tempo passava, mais ela se esbatia.
 
 O núcleo de exilados políticos em Paris teve na organização dos posteriores movimentos revolucionários um papel preponderante, mas a falta de direcção efectiva e a descoordenação entre os revoltosos conduziram a novos fracassos a 20 de Junho de 1928 e a 21 de Julho de 1930, de que se aproveitou mais uma vez o regime para fortalecer o seu poder com a prisão, deportação ou exílio de mais umas dezenas de militares e políticos opositores ao regime, entre eles alguns dos apoiantes e organizadores do 28 de Maio.
 
Quando, em 4 de Abril de 1931, na sequência dos movimentos populares de Fevereiro devidos à crise económica com que a ilha se debatia, eclodiu a «revolta da Madeira», de novo foi o General Sousa Dias chamado a chefiar este último grande «cerco à ditadura», como se lhe refere Helena Matos (13). Com ele estavam importantes unidades militares ali estacionadas, vários deportados políticos e alguns dos revolucionários de Fevereiro de 1927, reclamando o restabelecimento das liberdades públicas e da normalidade constitucional.
 
Telegrama dos revolucionários enviado ao Governo:
 
“Exmo. Senhor Presidente da República
 
Em 4 de Abril - Lisboa
.
Tendo-me sido entregue pelos oficiais da Guarnição da Madeira o Governo desta Ilha, informo Vossa Excelência que esta guarnição, conforme finalidade seu movimento e acordo opinião maioria do Exercito e Marinha, levada conhecimento Governo Ditadura em Janeiro ultimo, só obedecerá a um Governo Republicano que restaure liberdades publicas e procurando realizar em curto prazo volta normalidade constitucional sem subterfugios.”
 
a) Governador Militar - Sousa Dias, General.” (14)
 
A revolta ocorreu às primeiras horas da manhã, sem qualquer resistência, dominando rapidamente as forças recém-chegadas do Continente, de Caça­dores 5 e Metralhadoras 1, e a guarnição da ilha, composta por Infantaria 13 e uma Bateria de Artilharia de Costa. As adesões locais ao movimento revolucionário não se fizeram esperar, sobretudo entre os numerosos deportados políticos, alguns dos quais esperavam transferência para as colónias africanas. O rastilho da revolta alastrou no dia 7 aos Açores, depois à Guiné e, na madrugada de 12 de Maio, ocorreram incidentes em S. Tomé.
 
A revolta durou vinte e sete dias. A ideia era forçar o Governo a dividir forças para combater os revoltosos nas ilhas, criando assim melhores condições para o sucesso do levantamento militar decisivo na Metrópole. Este movimento revolucionário poderia muito bem ter representado o fim da ditadura, até porque, entretanto, fora proclamada a República na vizinha Espanha. Depois do 3 de Fevereiro, nenhum outro movimento revolucionário reuniu tantas condições e meios para expressar os seus objectivos políticos como a “Revolta das Ilhas”. Mas, uma vez mais, a ditadura acabaria por vencer. Tal como em Fevereiro de 1927, esperava-se uma ampla adesão à revolta de outras unidades militares do Continente, o que não viria a acontecer, tal como nos casos anteriores por hesitações e atrasos nos preparativos e porque, entretanto, o governo tomara medidas de prevenção, mandando concentrar diversas unidades militares nos entroncamentos ferroviários, fazendo abortar os movimentos insurrecionais previstos para 2 de Maio, numa altura em que os revoltosos da Madeira se haviam já rendido. A réplica, tardia e fraca, da revolta da Madeira no Continente só aconteceria cerca de três meses depois, a 26 de Agosto.
 
Desde a anterior revolta de 20 de Julho, muitos republicanos moderados, civis e militares, anteriores apoiantes do 28 de Maio, haviam-se começado a transferir para o campo revolucionário, descontentes pela marcha da ditadura. Mas mantinham-se ainda abertas algumas divisões políticas do passado e novas se exacerbaram entretanto entre os opositores ao regime no país e os exilados políticos, e o mesmo acontecia entre os militares. O grupo demo­crático de Afonso Costa e José Domingues dos Santos insistia na continuação da estratégia revolucionária militar-civil, seguida da imediata reinstauração do regime constitucional republicano anterior ao 28 de Maio; o grupo ligado à Aliança Republicana Socialista, criada por Norton de Matos e Mendes Cabeçadas, e que Bernardino Machado passara a apoiar, apostava agora tudo na via legal e exclusivamente política do confronto eleitoral, na linha dos velhos partidos republicanos, abandonando definitivamente a sua posição contrária anterior; por sua vez, a maioria dos militares, com o grupo mais liberal de Cunha Leal e Carlos Vilhena, mantinha-se intransigente numa solução essencialmente realizada pelas forças armadas, um novo 28 de Maio ao contrário, que implementasse um programa reformador apoiado transitoriamente num governo com uma forte base militar.
 
Fiel ao ideário democrático, o General Sousa Dias manteve-se sempre firmemente um defensor da primeira modalidade de acção, sem contudo inviabilizar, como se viu, uma alternativa conciliatória com o grupo militar. Mas as divergências na oposição republicana minaram definitivamente a unidade da sua direcção política, impedindo qualquer acção eficaz contra a ditadura e conduzindo aos sucessivos fracassos. A Liga de Paris representou, em determinada altura, uma esperança, mas não foi além disso. Começava, também, a ser demasiado tarde. A implacável repressão exercida sobre os revolucionários e conspiradores, as precárias condições de vida dos exilados e deportados e o regresso e reintegração de muitos deles entretanto amnistiados, reduzia cada vez mais as forças do campo republicano democrático e as suas possibilidades de êxito. Os fracassos das posteriores revoltas de 4 de Abril e de 26 de Agosto de 1931 representaram a prova dramática disso mesmo, marcando o epílogo da primeira fase da resistência contra a ditadura.
 
Derrotado, o General Sousa Dias, com muito outros militares e civis implicados, foi demitido do seu posto e lugar que ocupava no Exército, privado de todas as honras, vencimentos, garantias e direitos que usufruía e colocado à disposição do governo (15). Como consequência directa da demissão, foi abatido aos quadros do Exército, perdeu a dignidade do posto e a qualidade militar, assim como o direito a usar medalhas militares e condecorações e a haver quaisquer recompensas ou pensões por serviços anteriores (16).
 
Mais umas largas centenas de deportados seguiram para as colónias de África e de Timor. Foi então que se criaram, para os internar, os primeiros campos de concentração, prática que só cessaria na década de 1950. Ao mesmo tempo, na metrópole, encheram-se as cadeias de conspiradores ou havidos como tais. O fracasso da posterior revolta de 26 de Agosto desse mesmo ano, fez aumentar o número de presos e deportados políticos a um máximo porventura jamais atingido durante o Estado Novo.
 
Deportado para Cabo Verde, Sousa Dias foi primeiro internado no Campo de Concentração de Presos Políticos de S. Nicolau, instalado num antigo seminário, onde permaneceu até 21 de Agosto desse ano. O Governo da colónia pretendeu, ainda, fazê-lo embarcar para Timor, o que não conseguiu devido à recusa do comandante do transporte de guerra Gil Eanes, que levava deportados para a ilha asiática. Foi depois transferido para a ilha de Santo Antão e, por último, para a de S. Vicente.
 
(...).Vencidos, como fatalmente tínhamos de ser pois não fomos convenientemente secundados, a pesar da nossa resistência durante quase um mez - escreveu Sousa Dias numa carta a seu filho Adalberto, de 21 de Agosto de 1931 - o tratamento que nos tem sido infringido, é dos mais vexatórios, arbitrarios e despóticos que a nossa historia regista! - Incomunicáveis; encerrados em campo de arame farpado, em alojamentos restritos e com as janelas pregadas, numa aglomeração de pessoas nas condições mais anti-higiénicas; guardados por tropas indígenas, com instruções irritantes; sem dispormos dos mais insignificantes cobertura, digo, recursos médico cirúrgicos, para nos acudir caso o nosso estado de saúde assim o reclamasse; com uma alimentação contra-indicada para este clima africano (servindo-nos, amiudadas vezes, carne de porco); sujeitos na Praia como no seminário de S. Nicolau, a vexames de toda a ordem; suportando as violentas medidas repressivas de draconeanas instruções, dadas pelos miseráveis «carcereiros» que, para afronta e vergonha nossa, ainda conservam uns galões nos braços e se dizem oficiais do exercito; mantendo-se uma rigorosa e irritante censura à nossa correspondência, - a maior das vilanias cometidas; chegando, por demais, a infâmia cometida pela violação da vida doméstica, ao ponto de - após a leitura da nossa correspondência, - divulga-la, publicamente, com comentários galhofeiros e vergonhosos - aqui tens, muito sumariamente, e sem que todos os pontos arbitrários sejam realçados ainda, o que se vem cometendo contra nós, há mais de 3 meses, após o nosso movimento constitucional da Madeira.(...).” (17)
 
Todavia, apesar do ostracismo a que foi votado pela ditadura, da violência da repressão sobre ele exercida e das condições degradantes e humilhantes a que foi sujeito, com os restantes deportados, Sousa Dias manteve sempre uma atitude de grande coerência, dignidade e elevação moral, como o reconheceram os próprios companheiros de degredo. Na correspondência trocada com estes, com seu filho e com os exilados políticos da Liga de Paris, a todos surpreendia com as suas qualidades de carácter, firmeza de princípios e solidariedade - a ponto de recusar tratamento diferente ao dos companheiros de desterro que haviam servido sob as suas ordens.
 
Extracto de carta dos núcleos de deportados de Angola ao General Sousa Dias, em 20 de Março de 1928.
 
“ (...) nós já em Angola tínhamos tido conhecimento da nobreza do procedimento de V. Ex.cia e nem ao de leve nos poderia Ter passado pelo espírito que, da parte de V. Ex.cia, tivesse havido qualquer fraqueza ou desânimo, pois que todos que tem a honra de terem tratado com v. Ex.cia e servido debaixo das suas ordens, conhecem bem e prestam a devida e justa homenagem às suas elevadas qualidades de carácter e energia moral. (...)” (18)
 
Mas a precaridade das condições de vida, a insalubridade do clima, a subnutrição e a doença foram minando a sua saúde, o que sempre escondeu porém dos seus familiares. Na carta a seu filho atrás citada, de 21 de Agosto de 1931, escreveria a propósito:
 
“ (...).Continuo gozando óptima saúde; e, como notas, desfrutando a melhor das disposições morais. Oxalá toda a família se encontre da mesma maneira com o mesmo bem-estar. (...)”.
 
Mas, à cautela, contudo, sempre ia prevenindo seu filho:
 
“ (...).Escusado será dizer-te que á família, e principalmente a tua mãe e irmão - nada lhe deverás dizer do assunto desta carta.(...)
 
Sousa Dias acabaria por falecer no Mindelo, em 27 de Abril de 1934. Naquela mesma carta havia ele escrito, então, como que premonitoriamente:
 
“ (...)se não deixo bens de fortuna material deixar-vos-ei um nome, que não vos envergonhará... bem pelo contrário.(...)”.
 
A amargura, desilusão e revolta contra as deslealdades e traições haviam começado a dominá-lo nos últimos dois anos de vida, sem contudo lhe afectar a sua energia e verticalidade. Numa carta a seu filho, datada de 29 de Outubro de 1932 e publicada por A. H. de Oliveira Marques na sua mesma obra já citada por diversas vezes neste artigo, escrevia Sousa Dias:
 
“ (...).De cá e de lá - que estendal de nojeiras e que lamaçal de baixezas e ignominias... Cada vez mais - se é possível - cresce em mim, a onda de nojo e asco por essas castradas creaturas que se tem rebaixado ás mais asquerosas e repugnantes atitudes morais e sociais!... (...).Bandalhos da mais ínfima espécie! Eles, os únicos responsáveis pelo passado que permitiu o presente; eles, que se locupletaram com os mais chorudos e altos cargos do Regime republicano; (...); são eles, a grande massa dos «indefectiveis», que estão apoiando moralmente essa... coisa que pr’aí está, são esses «antigos políticos» da nossa ingénua Republica, que a estão deixando submergir e sufocar, sem que deles parta o mais leve gesto, a mais insignificante atitude, o mais ténue sacrifício em prol do Regime que os acarinhou e que lhes proporcionou a sua «vidinha» de desenfreado regabófe!... Miseráveis!...”(19)
 
Com a morte de Sousa Dias a ditadura respirou de alívio, porque se viu definitivamente livre de um dos seus mais acérrimos opositores e de um dos mais intrépidos lutadores pela República e pela Constituição. A ditadura jamais haveria de perdoar ao mais destacado e graduado dos militares dissidentes; quando, em 5 de Dezembro de 1932, através do Decreto n º 21 943, publicou uma ampla amnistia reintegrando os que contra ele haviam lutado, o governo teve o cuidado de excluir expressamente da sua aplicação cinquenta personalidades - a cabeça político-militar revolucionária republi­cana - consideradas particularmente «perigosas». Sousa Dias era o primeiro da respectiva lista. E só dois anos após a sua morte o Estado Novo autorizaria a transladação do corpo, secretamente transportado para o cemitério da cidade da Guarda.
 
 

Sousa Dias: A memória do patriota e democrata.

 
Três anos após o 25 de Abril de 1974 e a restauração da República e da Democracia, porque lutou sem êxito durante os últimos oito anos de vida, por decreto do Conselho da Revolução, Sousa Dias foi reintegrado no Exército e no seu posto de General, com todas as honras ao mesmo inerentes e o direito às condecorações e graus honoríficos que possuía. O respectivo Decreto Lei n º 232/77, de 2 de Junho, regista de forma lapidar as suas qualidades:
 
“ (...) Vulto destacado na história da época, o general Sousa Dias é bem o exemplo das mais altas virtudes morais que a nobre profissão de soldado exige, com toda a abnegação de alma, verticalidade, aprumo e absoluta intransigência no cumprimento dos princípios que jurara defender, sem olhar a sacrifícios ou perigos. (...)
 
Em 1980 foi condecorado com o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, com vários outros políticos e militares que mais se evidenciaram no combate à Ditadura e ao Estado Novo. Contudo, no turbilhão daqueles anos, não houve a oportunidade de dar a estes actos o relevo público que toda uma vida de coerência, firmeza, coragem, sacrifício e entrega total à causa República bem justificaria e, trinta anos depois do «25 de Abril», Sousa Dias continua à espera de ser sepultado definitivamente com as honras a que tem, agora de novo, legítimo e justo direito. Para a grande maioria dos portugueses, civis e militares, o General Sousa Dias continua a ser um desconhecido e nas listas de antiguidade do Exército mantém-se o seu abate aos quadros em 1931, prova de que nem o próprio Exército ainda o reabilitou. Deixar esquecer a sua memória é cortar a raiz ao Portugal livre e democrático que Abril fez renascer, é esquecer o seu percurso histórico e os valores e ideais que lhe deram força.
 
O General Sousa Dias foi um exemplo raro de indefectível lealdade à República, de tenacidade, firmeza, coragem, coerência, sacrifício e luta na defesa dos ideais de que foi portadora em 1910, mesmo quando começava a não ser já mais que uma lembrança passada. No dizer de Raúl Rego, a sua figura podia «servir de modelo a quantos se bateram contra ditadura e aos processos de repressão do regime que ainda se dizia República» (18). Ao comemorarem-se trinta anos sobre o 25 de Abril, setenta sobre a morte do General Sousa Dias e cento e trinta e nove sobre o seu nascimento, a melhor homenagem que lhe poderá ser feita será sepultá-lo dignamente, prestando-se-lhe as honras militares que lhe foram recusadas na morte e cumprindo-se assim o disposto no respectivo decreto de reabilitação:
 
“ (...). Julga-se que a vida exemplar e trágica deste oficial, que tanto deu de si próprio em proveito do povo, bem merece um gesto de apreço e de reconhecimento do Portugal de hoje, finalmente livre. (...)”
 
E, afinal, o General Sousa Dias estava do lado certo. A revolução não se faria pela via exclusivamente política, ensaiada sem êxito com as candidaturas à Presidência da República de Norton de Matos, Quintão de Meireles e Humberto Delgado. Também não se faria pela via exclusivamente militar, tendo fracassado todas as revoltas até 16 de Março de 1974. A revolução far-se-ia, finalmente, em 25 de Abril de 1974, pelo Povo em aliança com as Forças Armadas.
 
 

Notas e Bibliografia

 
1.José Freire Antunes, “A Política dos Militares no Século XX Português”, Revista Comemorativa do 25 de Abril, Edição do Estado Maior General das Forças Armadas, Abril de 1980.
2.Fernando Rosas, “O Estado Novo (1926-1974)”, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, Sétimo Volume, Edição Círculo de Leitores, 1994, p. 222.
3.Existem divergências entre vários autores quanto relativamente às datas de promoção de Sousa Dias.
  As datas que cito foram retiradas da obra do Tenente-Coronel Castro Ambrósio, (2000), “Generais do Exército Português nos anos de 1900 a 1999”, elaborada com base nas listas gerais de antiguidade dos Oficiais do Exército (Quadro Permanente), publicadas durante o século XX pelo EME.
4.Fernando Rosas, ídem, p. 215.
5. A.H. de Oliveira Marques, “O General Sousa Dias e as Revoltas contra a Ditadura 1926-1931”, publicações Dom Quixote, 1975, p. 31 e 32.
6. A.H. de Oliveira Marques, idem, p. 27.
7. José Freire Antunes, “A Desgraça da República na Ponta das Baionetas - As Forças Armadas do 28 de Maio”, Livraria Bertrand, Amadora, 1978, p. 155.
8. Raúl Rego, “História da República” Vol. V, Círculo de Leitores, 1987, p. 84.
9. A. H. de Oliveira Marques, idem, p. 41.
10.   Idem, p. 76, 77.
11.   Idem, p. 100.
12.   Decreto n º 13 137, de 15 de Fevereiro de 1927 e Decreto de 14 de Julho de 1927.
13.   Helena Matos, “Salazar, Volume I, A Construção do Mito”, Temas e Debates, Rio de Mouro, 2003, p. 165.
14.   A. H. de Oliveira Marques, idem, p. 109.
13. Decreto n º 19 567, de 7 de Abril de 1931 e Decreto de 15 de Abril de 1931.
14.   Decreto n º 11 292, de 26 de Novembro de 1925.
15.   A.H. de Oliveira Marques, idem, p. 146,147.
16.   Idem, p. 62.
17.   Idem, p. 266, 267.
18.   Raúl Rego, “História da República, vol. V, Como se destrói uma demo­cracia”. Círculo de Leitores, 1987, p. 146.
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by CMG Armando Dias Correia