Nº 2535 - Abril de 2013
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Logística do Exército em África (1961/74): Princípios, funções e organização
Mestre
João Moreira Tavares

A Logística: sua teorização

O termo Logística deriva do vocábulo grego “Logos” que, entre os inúmeros significados que lhe são atribuídos, abarca a ideia de cômputo, intrinsecamente ligada a planeamento. Todavia, o conceito em si – proporcionar a uma força de combate os meios necessários para fazer a guerra – é muito mais antigo, tão antigo quanto a própria guerra, pois desde a primeira contenda o Homem precisou de se alimentar, equipar, armar e tratar os ferimentos infligidos pelo adversário. A evolução humana e consequente complexificação do modo de fazer a guerra trouxe, naturalmente, um desenvolvimento do conceito primitivo, essencialmente estático e dominado pela questão das subsistências, substituindo-o por um mais dinâmico e abrangente, envolvendo as noções da produção, entrega ao combatente, manutenção e recuperação de material, que passaram a assumir um papel fulcral. O provimento dos exércitos à custa da pilhagem, quantas vezes desumana e desmedida, dos recursos locais do Teatro de Operações (TO)[1], ainda que não tenha desaparecido por completo, foi dando lugar a outras formas de aprovisionamento[2], não só do ponto vista ético mais aceitáveis, mas, sobretudo, muito mais eficientes, ainda que obrigassem à constituição de unidades de tropas não combatentes – os Serviços – e criassem novos problemas no âmbito logístico, como a constituição de linhas de comunicação para ligação da retaguarda à linha da frente e nas quais era necessário garantir a continuidade do fluxo dos abastecimentos e a sua segurança.

A industrialização das sociedades, o desenvolvimento dos transportes, o crescimento dos exércitos, a sua progressiva maior mobilidade e mecanização conduziram a um ainda maior desenvolvimento da logística, particularmente expressivo nas duas grandes guerras mundiais, igualando-a em importância à táctica e à estratégia, estabelecendo com elas uma íntima relação, impondo-lhes condicionamentos decisivos apesar da primeira existir apenas para servir as segundas[3].

Foi durante aquelas duas guerras mundiais, mas com um maior ênfase na segunda, que, a par do apoio directo prestado às tropas na frente de batalha, ganhou relevância a capacidade dos Estados de, na retaguarda, com base em planeamentos estratégicos, conseguirem obter, através de uma ampla mobilização nacional (humana, económica, financeira e industrial), os recursos que lhes permitissem fazer, sustentar e vencer uma guerra. Para John Keegan, reputado historiador militar britânico, foi precisamente a capacidade industrial norte-americana que, entre 1941 e 1945, esmagou o inimigo alemão e japonês ao conseguir não só atenuar as perdas por eles infligidas, como suplantá-las a um ritmo de tal forma avassalador que impediu os países do Eixo de recuperar as suas próprias perdas, com a progressiva e decisiva destruição do seu complexo industrial pelos Aliados, retirando-lhes qualquer hipótese de vitória no campo de batalha[4].

Esta outra vertente da logística a que se convencionou denominar de alto nível, económica, de produção ou, ainda, de apoio indirecto, como as suas próprias designações o indicam, é de exclusiva competência ministerial, assume um carácter predominantemente económico, mais civil e político do que militar, preocupa-se com a produção e a obtenção dos meios e por isso encontra-se mais ligada à estratégia do que à táctica. Por seu lado, a logística de apoio directo, também chamada de consumo ou operacional, ocupa-se com a distribuição e utilização dos recursos feita pelas Forças Armadas, tendo, desse modo, um cunho marcadamente militar, o que a aproxima mais da táctica do que da estratégia.

Fazendo a ponte entre ambos os ramos da logística encontra-se o ciclo logístico composto por três fases, todas intimamente ligadas entre si, dando-lhe, desse modo, consistência e operacionalidade. São elas: a determinação das necessidades, a obtenção dos recursos e a sua distribuição. Desde o mais alto escalão decisório situado na chamada zona do interior[5] até ao utilizador final na zona de combate[6] é montada uma cadeia, constituída por diferentes elos, que impulsiona no sentido da frente os recursos que lá são exigidos e no sentido inverso traz para a retaguarda tudo aquilo que necessite de ser evacuado e recuperado (figura 1). A eficiência do apoio logístico depende, assim, fortemente da estreita coordenação que os Estados sejam capazes de estabelecer entre aqueles dois ramos da logística.

 

Figura 1 – O Ciclo Logístico

 

O caso português: adaptação à guerra subversiva

Em Portugal, o moderno conceito de logística surgiu depois do final da Segunda Guerra Mundial impulsionado, por um lado, pelo reconhecimento do papel decisivo da logística para a realização e sucesso das operações militares, com base nos ensinamentos recolhidos no conflito e por outro lado, pela nossa adesão, em 1949, à North Atlantic Treaty Organization (NATO) e consequente aproximar aos Estados Unidos da América (EUA). Não admira, pois, que a doutrina logística nacional, desenvolvida nos anos 50, se tenha inspirado na sua congénere norte-americana, a qual, aliás, já tinha sido testada com sucesso na guerra. Tal como sucedeu noutras áreas, foram enviadas diversas missões aos EUA ao mesmo tempo que deles se recebia, em Lisboa, variada documentação técnica para estudo e transposição dos conhecimentos, que esteve a cargo do Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), da Academia Militar e das Escolas Práticas das Armas e Serviços. Essa adaptação, enfrentou, porém, algumas resistências daqueles que consideravam que aquilo que já existia era melhor, ou no mínimo suficiente e, sobretudo, teve que ter o especial cuidado de ajustar à nossa realidade e dimensão a doutrina logística de um país rico e possuidor de recursos quase ilimitados.

A par deste desenvolvimento teórico, no plano prático, foram sendo testados nas manobras anuais e exercícios da Divisão SHAPE[7] realizados no Campo de Instrução Militar de Santa Margarida, no quadro dos nossos compromissos com a NATO, os novos ensinamentos, o que muito contribuiu para o seu aperfeiçoamento[8].

Deste modo, quando, em 1961, começou a guerra em Angola o Exército português ainda ultimava a concepção da sua própria doutrina logística vocacionada para um conflito convencional quando se viu confrontado com a necessidade de readaptar essa doutrina a uma campanha de cariz subversivo[9]. A experiência inicial colhida naquele território foi crucial para o posterior desenvolvimento e aplicação nos restantes TO de um conjunto de ensinamentos e conceitos que, em 1963, foram compilados no V volume do manual O Exército na Guerra Subversiva, que constituiu a base teórica da instrução ministrada às tropas mobilizadas para África e que, em 1966, foi actualizado e reeditado. Embora se tenham mantido os princípios gerais, funções e serviços da doutrina logística houve que, nalguns aspectos, ajustá-los às características específicas da guerra subversiva, concretamente: a possibilidade de disseminação da subversão por uma ampla área territorial, caso encontrasse apoio na população aí residente e o terreno fosse favorável à prática de acções subversivas e a relativa facilidade dos elementos subversivos em se puderem furtar ao controlo das forças governamentais misturando-se com a população. Era, aliás, em torno desta que tudo se jogava. Da sua conquista, mais do que do terreno, dependia a vitória.

Assim, ao contrário do que sucede numa guerra convencional, a clássica distinção entre as zonas de comunicações e de combate não existia, pois ambas se sobrepunham levantando óbvios problemas de segurança, quer pela dispersão dos órgãos logísticos, quer pela elevada vulnerabilidade desses órgãos e suas linhas de comunicações. Por outro lado, a inexistência de grandes Unidades (divisões, corpos de exército,…) e a opção por um dispositivo militar em “quadrícula” assente em batalhões, companhias e pelotões, distribuídos pelo território e aos quais era entregue a protecção de um sector perfeitamente delimitado, por vezes reforçado por forças de intervenção (comandos, fuzileiros e pára-quedistas), dotadas de um alto grau de mobilidade, e que actuavam às ordens do comandante-chefe, impôs uma grande descentralização, a necessidade de estabelecimento de órgãos de reabastecimento polivalentes e conferiu uma particular importância à exploração dos recursos locais, também porque ao concorrer para o desenvolvimento económico local estava a dar-se um estímulo à população, cativando-a e afastando-a da esfera de influência dos elementos subversivos.

Por fim, os condicionamentos geográficos dos territórios ultramarinos (grande extensão, obstáculos naturais difíceis de ultrapassar e um clima quente e húmido) aliados à pobreza da rede de comunicações terrestre e de outras infra-estruturas civis (de saúde, comerciais e industriais) obrigaram: a uma cuidadosa e a um maior desenvolvimento da manutenção do material e sua recuperação; a um grande incremento dos trabalhos de engenharia e a recorrer, em larga escala, ao transporte aéreo, quer para a evacuação dos indisponíveis, quer para o reabastecimento de urgência ou de víveres facilmente perecíveis, como os frescos[10].

Quanto aos princípios gerais da logística[11], como já o dissemos, mantiveram-se os definidos para uma guerra de natureza convencional, pois a sua abrangência e acerto eram e ainda são, por demais evidentes:

1)  Previsão, porque, para que haja um apoio logístico oportuno, é essencial prever atempadamente as necessidades, sobretudo quando a zona do interior (a metrópole), principal fonte de abastecimento, distava milhares de quilómetros da zona de combate (os três TO – Angola, Guiné e Moçambique);

2)  Simplicidade, pois a execução do referido apoio deve ser o mais sim-
ples e objectiva possível. Às já difíceis características dos territórios não interessava de todo acrescentar mais embaraços decorrentes de planos logísticos complexos;

3)  Economia, isto é, o emprego adequado de homens e recursos na missão a cumprir, sem pecar por defeito ou por excesso, evitando gastos desnecessários. Aliás, ao nível do poder político houve sempre a preocupação de minimizar o peso e o impacto dos gastos com a Defesa nas Contas Gerais do Estado, recorrendo, entre outros expedientes, à suborçamentação das despesas, não só para ocultar os verdadeiros gastos, como para tentar obter a sua máxima compressão e com isso assegurar o equilíbrio e rigor orçamentais. Preocupação que, obviamente, se reflectiu e condicionou o esforço de guerra em África[12];

4)  Flexibilidade, já que o apoio logístico deve acompanhar, subordinar-se e adaptar-se rapidamente, sem comprometer a sua regularidade e eficácia, à evolução da manobra operacional. Um bom exemplo prático da aplicação deste princípio é o caso de Moçambique, quando em 1969/70 se procedeu à criação de quatro áreas logísticas e a uma profunda remodelação do Serviço de Transportes, com a sua articulação em três sistemas e autonomização através da constituição de uma chefia própria, o que nunca se verificou em Angola e na Guiné. Medidas que se integraram num processo mais amplo de deslocação da direcção logística e dos órgãos de apoio de base do Sul para o Norte do território, concretamente de Lourenço Marques para Nampula, para os aproximar mais das tropas em operações[13];

5)  Unidade de Comando, através da sujeição a uma única autoridade – o comandante-chefe – tanto da manobra logística como da táctica, embora na prática a condução da primeira fosse depois entregue ao comandante da Região Militar ou territorial[14].

No que diz respeito às funções logísticas, também não se registaram alterações, mantendo-se as tradicionais cinco, que agrupam no seu seio, de acordo com as suas afinidades, múltiplas actividades. São elas:

1.  Abastecimento[15], cuja finalidade é prover todos os recursos necessários às tropas combatentes (integra o cálculo dessas necessidades, a obtenção e armazenagem desses recursos);

2.  Evacuação e hospitalização, que reúne todas as actividades sanitárias e de recuperação dos feridos e doentes, sejam eles homens ou animais, mas que numa guerra subversiva se estende até à população civil como parte integrante da acção psicossocial[16];

3.  Transporte, que trata do deslocamento, por qualquer via, do pessoal, animais e materiais e engloba os meios para o gerir e realizar;

4.  Serviço técnico[17], que abarca todas as outras actividades não incluídas nas funções anteriores, tais como: manutenção e recuperação do material, banhos, lavandaria, construção,…;

5.  Direcção logística, responsável pela coordenação e direcção superior de todas as outras funções logísticas e pela sua relação com as operações tácticas, nela se destacando o planeamento logístico.

Para dar execução a estas funções existem diversos Serviços, também individualizados de acordo com as suas características e missões, mas obedecendo todos à mesma organização geral, composta por órgãos de direcção e de execução. Os primeiros compreendem as chefias dos Serviços e recebem do comando as directivas, ordens e instruções técnicas relativas ao emprego dos segundos – Unidades e instalações –, a quem cabe a satisfação prática das necessidades logísticas. Os Serviços dividem-se, ainda, quanto à sua localização na cadeia logística, em serviços do interior e das forças em operações.

No primeiro grupo, encontram-se todos aqueles dependentes directamente do Governo situados, como o seu nome indica, na zona do interior e cuja organização e funcionamento vêm do tempo de paz, mas que o deflagrar de um conflito conduz ao incremento das suas actividades para dar resposta ao também elevar da procura dos seus bens e serviços por parte das Forças Armadas. No caso do Exército, há que salientar o contributo decisivo dado pelos seus estabelecimentos fabris[18], ao assegurarem uma relativa autonomia face ao estrangeiro em matéria de armamento ligeiro e munições e a quase total auto-suficiência ao nível do fardamento, calçado e restante equipamento pessoal, víveres e medicamentos, permitindo, assim, sustentar a guerra durante tantos anos, apesar da ausência de um apoio externo às posições políticas defendidas pelo nosso País e o seu reduzido potencial económico e industrial.

Todavia, o seu contributo não ficou por aqui. Prestaram igualmente um apoio social aos militares e suas famílias com a projecção para África das actividades da MM, do LMPQF e das OGF, através da abertura de messes, supermercados, cantinas e secções comerciais, facilitando de algum modo a sua instalação e permanência no ultramar, concorrendo, ao mesmo tempo, para a criação de novos postos de trabalho e exploração dos recursos locais colaborando, assim, para o alcançar dos objectivos da acção psicossocial (Figura 2). Com a implantação daqueles estabelecimentos fabris nos três TO procurou melhorar-se o apoio logístico às tropas em combate, afinal o seu principal propósito, aproximando os Serviços do interior dos Serviços das forças em operações e criando entre os dois uma estreita cooperação, o que pela sua singularidade merece natural destaque. Por último, mas não menos importante, bem pelo contrário. O financiamento de despesas militares por parte de alguns estabelecimentos (FMBP, FNMAL, LMPQF, MM e OGF), através do fornecimento de munições a título gratuito, redução de margens de lucro e principalmente pela cedência de verbas extraídas dos seus lucros e fundos de reserva, ajudou a colmatar insuficiências financeiras em ocasiões particularmente difíceis e a ocultar os verdadeiros custos da guerra[19].

Quanto aos Serviços das forças em operações, classificados segundo a sua função em: Serviços de transportes, gerais ou de manutenção e especiais apresentam-se, em síntese, as suas missões:

1.  Transportes, organizar e executar o transporte rodoviário, ferroviário, aéreo, marítimo e fluvial;

2.  Gerais ou de manutenção, segundo a sua especificidade:

 

Figura 2 – Localização dos EFME em África (1973)

2.1.    Engenharia, responsável pelos trabalhos de construção, reparação e conservação de infra-estruturas (incluindo a captação de água e distribuição de energia eléctrica), pela gestão de bens imóveis e fornecimento de cartas topográficas;

2.2.    Intendência, ocupa-se do abastecimento de víveres, forragens, combustíveis e lubrificantes, fardamento, calçado, equipamento e material de aquartelamento e bivaque;

2.3.    Material, trata do fornecimento, da manutenção e recuperação de armamento, viaturas e munições;

2.4.    Saúde, dedica-se à evacuação, tratamento e recuperação dos feridos e doentes, à preservação do bom estado sanitário das tropas e ao provimento do material de saúde;

2.5.    Transmissões, assegura as comunicações entre os comandos, órgãos e Unidades, bem como o fornecimento, manutenção e reparação do seu material;

2.6.    Veterinário, dedica-se à evacuação, tratamento e recuperação dos animais feridos e doentes, à preservação do seu bom estado sanitário e à inspecção de alimentos;

2.7.    Recompletamento de pessoal, responsável pela reposição dos níveis das Unidades combatentes nos seus efectivos autorizados.

3.  Especiais, assegurar a manutenção da ordem, administração e justiça ou o exercício doutras actividades de natureza muito técnica e específica, como: a meteorologia, a propaganda e censura.

Nesta última categoria dos Serviços destaca-se pela sua inegável influência no moral e bem-estar das tropas o Serviço Postal Militar (SPM), a quem cabe o encaminhamento de toda a correspondência oficial e particular e que garantiu a ligação contínua dos militares no ultramar com as suas famílias na metrópole, mesmo quando aqueles estavam colocados nos mais recônditos lugares.

As características físicas de cada um dos territórios, o número de efectivos para eles mobilizados e a acção neles desenvolvida pela guerrilha determinaram a organização logística que foi implementada em cada um dos TO, particularizando-a, apesar dos diversos pontos comuns a todos eles, alguns dos quais já enunciados, a que se juntavam: a enorme distância entre a metrópole e as suas colónias e destas entre si; a insuficiência das estruturas económicas locais e a inexistência, no início da década de 60, de uma estrutura logística capaz de apoiar eficazmente um súbito e crescente número de Unidades, como se previa que viesse a ocorrer. Problema que, desde 1959, depois da visita do subsecretário de Estado do Exército à Guiné, Cabo Verde, S. Tomé e a Angola, se procurava solucionar com a adopção de uma série de medidas, entre as quais se defendia a extensão das actividades da MM e das OGF ao ultramar e se propunha a organização e sua conveniente dotação, humana e material, dos diversos serviços logísticos[20]. O que de facto veio a acontecer, de forma gradual, nos anos seguintes, procurando acompanhar a evolução das necessidade operacionais, ainda, que nem sempre com a eficiência e prontidão requeridas.

O TO angolano, por ter sido o primeiro onde houve combates, teve sempre a prioridade na atribuição dos meios[21]. Concorreu também para que isso sucedesse o ter sido o TO que mais efectivos exigiu. Beneficiou, ainda, para o desenvolvimento da sua estrutura logística, muito superior à dos dois outros teatros, da existência de um bom porto e infra-estruturas em Luanda e de razoáveis vias de comunicação para o interior que permitiram criar naquela cidade uma base logística a partir da qual se pôde encaminhar a quase totalidade dos homens e materiais desembarcados para o resto do território com relativa facilidade, tornando-se Luanda o ponto fulcral de todo o apoio prestado[22]. De Lisboa chegava a maioria dos abastecimentos, complementados pontualmente por aquisições no mercado local, que depois seguiam do depósito-base para depósitos avançados (víveres, munições, material sanitário, engenharia e transmissões[23]) e destes para as Unidades. Para o seu transporte, para além das viaturas das companhias e secções de transportes do Exército e de meios da Força Aérea e da Marinha, recorreu-se também ao fretamento de meios civis (terrestres, marítimos e aéreos), sobretudo de camiões para obviar a frequente falta de veículos militares[24]. Para assegurar a reparação e manutenção destas viaturas e do restante material a cargo do Serviço de Material, bem como o seu reabastecimento e gestão, foi organizado, em 1963, o Agrupamento do Serviço de Material de Angola (ASMA)[25]. Órgão que, pela sua dimensão e carácter centralizador, se distinguiu das estruturas congéneres montadas nos dois outros territórios, as quais nunca assumiram a forma de agrupamento.

A partir de 1963 a subversão estendeu-se à Guiné onde a quase total ausência de infra-estruturas e de recursos económicos e no plano oposto, a abundância de obstáculos naturais (terreno e clima) que extenuavam tropas, desgastavam materiais e aceleravam a degradação dos víveres mais do que em qualquer outro lugar, marcaram, do princípio ao fim, o modo como foi prestado o apoio logístico no TO guineense.

Ao contrário do que sucedia em Luanda, Bissau, única porta de entrada, era uma pequena cidade dotada com um mau porto de mar, onde era difícil armazenar em condições os abastecimentos vindos de Lisboa e fazê-los sair em direcção ao interior, devido às deficientes vias terrestres e ao progressivo escalar e intensidade das acções da guerrilha, que se reflectia num aumento da insegurança nos itinerários e, por vezes, na sua ruptura. Como consequência, apoiou-se o sistema de transportes, composto essencialmente por meios não pertencentes ao Exército, na intricada rede fluvial, ciclicamente ampliada pelas marés, apesar de estas sujeitarem os movimentos logísticos a horários predeterminados e imutáveis e não permitirem a navegação a embarcações de médio e grande calado. Recorreu-se também ao transporte terrestre (cerca de 14%) e ao aéreo (2%) que embora tivesse um peso diminuto, assumiu um papel relevante ao possibilitar o abastecimento de géneros frescos e materiais urgentes e a entrega de correio, com rapidez e em segurança[26].

Outra medida para garantir o regular apoio às tropas, evitando quebras que pudessem ser prejudiciais à condução das operações, foi a constituição de elevados níveis de reserva, quer em Bissau quer nas Unidades, precavendo eventuais situações de crise criadas por maus anos agrícolas ou de isolamento em consequência da actividade inimiga ou de más condições climatéricas. Para a conservação dos produtos alimentares facilmente perecíveis foi necessário desenvolver uma rede de frio, o mais extensa possível, desde a base às Unidades, que embora tenha sido também criada em Angola e Moçambique, na Guiné se revelava fundamental para fazer face ao clima excessivamente quente e húmido e à ausência de frescos locais, apesar de se ter incentivado o cultivo de pequenas hortas junto das guarnições militares para consumo próprio.

De salientar, ainda, o papel preponderante das transmissões e do Serviço de Saúde no contexto da luta na Guiné decorrente da sua intensidade. No primeiro caso, ao nível do comando e controlo das operações e, no segundo, na evacuação e recuperação do elevado número de baixas por ferimentos e doença[27].

Quanto a Moçambique, onde a guerra chegou em 1964, concentrando-se no Norte do território, cedo se constatou que a fixação de uma base logística em Lourenço Marques, centro político da colónia, mas a cerca de 2000 km para Sul do epicentro dos combates, não possibilitava um total e eficaz apoio às tropas. A inexistência de uma ligação rodoviária Sul-Norte contínua e permanente durante todo o ano impedia a rápida e oportuna transferência dos meios humanos e materiais para onde eles eram precisos, condicionando muito a actividade operacional e pondo em evidência a sua forte dependência do sistema de transportes que urgia, por isso, remodelar, não no sentido de diminuir a sua importância, mas de lhe dar uma maior eficácia e flexibilidade[28]. Por outro lado, era também fundamental reorganizar o dispositivo logístico, descentralizando-o, aproximando os meios de apoio às tropas e criando novas portas de entrada para os fornecimentos vindos do exterior. A partir de Junho de 1967 teve início o progressivo deslocamento da direcção logística para o Norte com a instalação de chefias avançadas dos Serviços em Nampula, que, em 1969, passou a acolher o escalão principal dessas chefias[29]. Foram, então, criadas quatro áreas logísticas, cada uma servida por um depósito-base, com sede em Lourenço Marques, na Beira, Nacala/Nampula e em Porto Amélia e foi aprofundada a cooperação civil-militar, em particular no campo da saúde com o estabelecimento de parcerias com diversos hospitais civis e a Universidade de Lourenço Marques[30].

Nos transportes, para além de acordos com empresas civis para apoio na manutenção de material, recorreu-se ao fretamento de aviões particulares, assentando a reorganização do sistema de transportes na valorização daqueles meios, propriedade de pequenas empresas de táxi aéreos e da DETA (empresa pública de transportes aéreos de Moçambique).

O que, porém, verdadeiramente distinguiu a remodelação do Serviço de Transportes realizada, em 1970, no território, dos restantes teatros, foi a sua autonomização com a constituição de uma chefia própria[31] instalada em Nampula, a sua dotação com meios de transmissão exclusivos e a sua organização com base em três sistemas: primário, secundário e terciário[32]. O primeiro, composto por meios de transportes pesados (navios e aviões de grande porte), ligando as sedes das áreas logísticas; o segundo, unindo a Beira a Tete e Nampula a Vila Cabral e Marrupa utilizando aviões de médio porte e o comboio, e o terceiro, fazendo a conexão entre os pontos de destino intermédio e os locais de consumo recorrendo para tal a meios de transporte mais ligeiros (pequenos aviões e navios e viaturas)[33].

 

Considerações finais

A adaptação da doutrina logística convencional a uma campanha subversiva feita pelo Exército e consequente estrutura logística criada para apoiar a defesa do ultramar português revelou-se, acima de tudo, um notável esforço de mobilização e projecção de forças, não só pelos números envolvidos, mas também pela regularidade e prolongamento no tempo com que foi executada (figuras 3 e 4).

Figura 3 – Unidades de Serviços enviadas para África

Distribuição por Teatros de Operações (1961/74)

Fonte: Elaborado com base em dados recolhidos na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 2, 3 e 4. Lisboa: EME/CECA.

 

Figura 4 – Unidades de Serviços enviadas para África

Distribuição por Teatros de Operações (1961/74). Cômputo Total.

Fonte: Elaborado com base em dados recolhidos na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 2, 3 e 4. Lisboa: EME/CECA.

 

O apoio logístico apesar de não ter sido isento de falhas, nomeadamente no que se refere a anomalias na obtenção e fornecimento de alguns materiais e a dificuldades de transporte, soube, no terreno, adaptar-se e foi suficientemente flexível para acompanhar de perto o evoluir da manobra operacional. Em paralelo, a aposta na exploração dos recursos económicos locais, embora não tenha alcançado a dimensão desejada, não deixou, ainda assim, de ajudar a promover o desenvolvimento sócio-económico das populações integrando-se na manobra psicossocial indo, desse modo, muito para além da sua finalidade estritamente militar de apoio às tropas.

Num outro plano, na metrópole, o contributo dado pelos Estabelecimentos Fabris do Ministério do Exército (EFME) foi decisivo para a sustentação do esforço de guerra no ultramar pela relativa autonomia face ao estrangeiro que foram capazes de assegurar, concretamente no que diz respeito à produção de grande parte das munições e armamento ligeiro utilizados, equipamento pessoal, medicamentos, víveres e à reparação e manutenção de meios. Os EFME ajudaram também a financiar as despesas militares, colmatando insuficiências financeiras pontuais e ocultando os verdadeiros custos da guerra.

 

_________________________

 

*   Síntese de comunicação proferida, em Outubro de 2009, na IV Conferência – Economia, Tecnologias e Logística de Defesa no 3.º Quartel do Séc. XX, das Conferências da Cooperativa Militar.

 


[1]Teatro (ou zona) de Operações compreende a parte de um território, de dimensão variável, necessária à realização das operações tácticas e logísticas que as apoiam.

[2]  A compra, a preços fixados pelo vendedor; a requisição, a preços fixados pelo comprador; a cobrança de uma contribuição de guerra ou a confiscação, por via legal, dos recursos com interesse militar.

[3]  Ambas ramos das ciências militares, a táctica trata de todos os assuntos relativos ao emprego e manobra das tropas em combate e a estratégia engloba todos os assuntos referentes à preparação e condução da guerra ao nível político e das mais altas chefias militares.

[4]  Cf. KEEGAN, John – Uma História da Guerra. Lisboa: Tinta-da-China, 2006. ISBN 972-8955-
-14-6, pp. 409-411.

[5]  O território conservado sob a administração directa de um Governo.

[6]  A parcela do Teatro de Operações reservada às tropas para a execução das operações tácticas.

[7]  SHAPE (Supreme Headquarters of Allied Powers in Europe). Divisão constituída para satisfação dos compromissos nacionais assumidos com a NATO. Esta Divisão foi também chamada de Divisão “Nuno Álvares” e, depois, de 3ª. Divisão por estar associada à 3ª. Região Militar com sede em Tomar.

[8]  Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974). Lisboa: EME/CECA, 1990, pp. 193-197.

[9]  Cf. COELHO, Adelino Rodrigues – A organização logística de apoio aos teatros de operações: o caso de Moçambique. In Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). S. Pedro do Estoril: Atena, 2000. ISBN 972-8435-35-5, p. 164.

[10] Cf. O Exército na Guerra Subversiva, vol. 5, Administração e Logística, cap. II p. 1-2 e Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), pp. 201-202.

[11] Sobre os princípios gerais da logística veja-se: BOAVIDA, António da Cruz Gromicho – Logística: introdução ao seu estudo, pp. 73-81; Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), p. 201-202 e “Logística”, in ADELINO, Eduardo Augusto das Neves; SOARES, Vicente Henrique Varela – Dicionário de Terminologia Militar, vol. 2, pp. 76-77.

[12] Sobre este assunto veja-se: TAVARES, João Moreira – A Indústria Militar Portuguesa no tempo da guerra (1961-1974). Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2005. ISBN 972-8801-79-3. pp. 83-93.

[13] Cf. COELHO, Adelino Rodrigues Coelho, op. cit., pp. 168-175.

[14] Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974),
p. 201.

[15] Mais tarde chamado de reabastecimento.

[16] A acção psicossocial visa, numa guerra subversiva, criar um ambiente propício na população civil, através da prestação de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica, para a conquistar e subtraí-la à influência dos elementos subversivos, retirando-lhes apoio material e desmoralizando-os, com o fim último de os levar à desistência da luta.

[17] A partir de 1976, devido ao volume e importância das actividades desenvolvidas na área da manutenção, esta autonomizou-se do serviço técnico constituindo-se como função, enquanto o serviço técnico passou a denominar-se apenas serviços, continuando a abarcar todas as outras actividades não incluídas nas restantes funções. Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), p. 203.

[18] A Fábrica Militar de Braço de Prata (FMBP), a Fábrica Militar de Santa Clara (FMSC), a Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras (FNMAL), o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), a Manutenção Militar (MM), as Oficinas Gerais de Fardamento (OGF) e as Oficinas Gerais de Material de Engenharia (OGME). A partir de 1969 as OGF passaram a integrar a FMSC e a designar-se por Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE).

[19] Sobre este assunto veja-se: TAVARES, João Moreira, op. cit., pp. 88-93.

[20] Cf. PT/AHM/FO/29/15/368/402 – Relatório da Missão Militar às Províncias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Angola (Julho-Agosto 1959), Ministério do Exército.

[21] Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), p. 257.

[22] Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), pp. 257-259.

[23] Neste caso denominados de Destacamentos de Reabastecimento e Manutenção de Material de Transmissões.

[24] Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974),
pp. 292-293 e Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 1, enquadramento geral, pp. 463-464.

[25] As OGME que nunca chegaram a constituir delegações em África destacaram, no entanto, parte dos seus oficiais engenheiros e operários para o ASMA.

[26] Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), p. 312.

[27] AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos, (Coord.) – Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, p. 343.

[28] Cf. COELHO, Adelino Rodrigues, op. cit., pp. 170-171.

[29] Cf. COELHO, Adelino Rodrigues, op. cit., p. 169.

[30] Cf. Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 1, enquadramento geral, p. 475 e Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), pp. 235-236.

[31] A Chefia do Serviço de Transportes de Moçambique iniciou a sua actividade em 1 de Dezembro de 1969. Cf. Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 1, enquadramento geral, p. 481.

[32] Cf. Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974), pp. 249-250.

[33] Cf. Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), vol. 1, enquadramento geral, pp. 481-482.

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2013-09-21
285-299
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Mestre

João Moreira Tavares

Mestre em História do Século XX pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL), investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH/UNL e Técnico Superior do Arquivo Histórico Militar. É autor de diversos trabalhos (tese, artigos e comunicações em congressos e colóquios), a maioria no âmbito da Guerra Colonial. Tem-se, também, dedicado à divulgação e valorização do património documental do Arquivo Histórico Militar.

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