Nº Nº Temático - Maio de 2016
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Documentos para a historia da intervenção de Portugal na guerra europeia

REDACÇÃO

 

RM, 69, 4, Abr, 1917, pp. 285-300

 

 

Relatorio ácerca da participação de Portugal na guerra europeia, publicado no «Diario do Governo» I serie n.º 9, de 17 de janeiro de 1917 *

 

Presidencia do Ministerio

 

(A Presidência do Ministério fornece uma explicação detalhada da posição oficialmente assumida por Portugal desde que a guerra foi declarada na Europa, nos termos da Declaração de 7 de Agosto de 1914, devidamente sancionada pelo Congresso: Portugal não se declara neutral, mas sim tudo fará para honrar os compromissos da aliança com a Inglaterra «que livremente contraí-mos e a que em circunstância alguma faltaríamos».

Por outro lado, descrevem-se as “torpes movimentações” das forças alemãs que, em 24 de Agosto desse ano, “à traição”, na calada da noite, assaltaram o posto de Maziua, no norte de Moçambique, e, poucos dias mais tarde, utilizando “os mesmos processos que tinham empregado na Europa: a cilada, a traição, a matança, o incendio e o saque”.

O Relatório procura também demonstrar que Portugal agiu em todos os momentos, e designadamente aquando do apresamento dos navios alemães surtos no Tejo, no estrito cumprimento do Direito Internacional.)

 

Assinada a convenção entre Portugal e a Gran-Bretanha, para os efeitos da intervenção militar portuguêsa na conflagração europeia; chegada a hora de partirem as nossas tropas para as linhas da frente ocidental, onde irão combater junto dos nossos antigos e liais aliados, encerra-se um periodo que na nossa situação internacional, em presença do grande conflito que se está desenrolando, podemos considerar decisivo. Esse facto, para sempre notavel na historia patria, significa o termo logico duma cadeia dos acontecimentos que o tornavam inevitavel, e, é tambem a resultante duma atitude que, assumida logo no principio da guerra europeia, o povo português, firme e inalteravelmente, manteve, aceitando, como lhe cumpria, todas as suas possiveis eventualidades.

O país, o mundo inteiro, sabem qual foi sempre essa atitude e conhecem esses acontecimentos. O Governo Português nada ocultou á Nação, de que é representante, nada ocultou a amigos nem a inimigos, e por isso mesmo nada de essencial tem a revelar. Á medida que era chegado o momento das resoluções positivas, essas resoluções eram propostas ao Parlamento, submetidas á sanção do seu poder soberano. Cada periodo que requeria as suas declarações necessarias e marcava o termo de uma fase das negociações diplomaticas, dos acordos entre os dois países que, pela sua velha aliança, estavam e estão intimamente ligados, assinalava-se por essa sanção que o Governo imediatamente solicitava. Com a consciencia do dever cumprido, com a segurança de não haver esquecido a fidelidade devida aos compromissos de honra do país, nem o respeito pelos orgãos legitimos da vontade nacional, nem a superior preocupação dos altos interesses da patria, o Governo Português considera-se no direito de afirmar que a sua acção neste grave e critico momento da nossa historia foi clara, explicita, franca, desassombrada e digna, como convinha ás tradições da gloriosa nacionalidade que representa perante o mundo. Não se envolveu em sombras, não se enleou em sofismas, não se retraiu, não tergiversou, não hesitou, não se desviou da linha de conduta que, ao ressoarem os primeiros tiros do canhão no prélio gigantesco, serena, mas intrepidamente, resolveu tomar, com a certeza de interpretar fielmente os sentimentos da Nação.

Quando, findas as negociações internacionais pendentes. Portugal, como os outros países aliados, lhes der o seu remate diplomatico, publicando o seu Livro Branco, esta verdade reconhecer-se-á, sem que nenhuma circunstancia, por minima que seja, possa de qualquer forma invalidar a afirmação produzida, assim como desde já não é licito a ninguem contestar que a atitude assumida por Portugal foi sempre uma atitude logicamente orientada pelos seus honrados compromissos, pelos seus generosos sentimentos, pelos mais sagrados interesses da nação, e determinada pelas circunstancias que requeriam a execução desses compromissos, a expressão desses sentimentos e a salvaguarda desses interesses.

De tudo teve conhecimento o país. Não foi conservado na ignorancia de nenhuma das medidas oficiais que o Governo decidiu tomar em relação aos variados incidentes deste periodo que se abriu com o próprio inicio da conflagração europeia. Conhece os factos que nos pungem como conhece aqueles que nos nobilitam e compensam. Mas não ha duvida que esses factos se dispersam já num lapso de tempo relativamente grande como é também certo que ainda não foram devidamente concatenados, dando-se-lhes a necessaria sequencia e ligação. O Governo Português entende que é este o momento azado para a exposição oficial e justificativa dos motivos que levaram o nosso país á situação de guerra em que se encontra. Partem as nossas tropas para a frente ocidental da Europa, onde vão terçar armas com o inimigo, como já em Africa com ele tem estado e estão em combate. Os soldados portugueses em toda a parte onde lhes é possível encontrar-se em contacto com o inimigo afrontam os seus golpes e saberão retribuir-lhes. Recordar as razões supremas que levaram a Pátria a pedir-lhes o seu sacrificio e o seu heroismo, é um dever a que o Governo Português nunca pensaria eximir-se.

 

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No dia 9 de março de 1916, a Alemanha declarou guerra a Portugal. Esse facto tem antecedentes e consequentes. Na nota entregue ao Governo Português, por ordem do Governo Imperial, pelo seu representanto em Lisboa, o Sr. Rosen, os motivos dessa resolução são extensamente alegados, ofendendo-se umas vezes propositadamente a verdade dos factos e desnaturando-se noutras a sua precisa significação. São esses antecedentes que convém fixar na exacta narrativa e no verdadeiro caracter dos acontecimentos e das suas determinantes. A atitude da Alemanha para com Portugal foi durante muito tempo enigmatica, dubia e desleal. A atitude de Portugal para com a Alemanha foi sempre clara, franca e insofismavel.

A conflagração europeia iniciou-se em 28 de julho de 1914 pela declaração de guerra da Austria á Servia, o que determinou a intervenção da Russia, a qual, fiel aos seus principios de protecção da raça slava, decidiu não consentir que esse pequeno país fosse sacrificado ás ambições que premeditavam esmaga-lo. Como a Alemanha era aliada da Austria, a Alemanha, no dia 2 de agosto declarava a guerra á Russia. É conveniente notar que esta guerra formidavel em que hoje catorze povos se debatem, é uma guerra fundamentalmente de alianças. Quase todas essas nações nada teem directamente com a questão inicial do conflito. Lutam pelas suas alianças. Lutam porque compreendem que, sem essas alianças, a sua existencia pode de um momento para o outro periclitar. O isolamento das nações europeias já não é possivel sem graves riscos. Ligou-se á França o colosso moscovita. A propria Inglaterra, apesar do seu poderio, dos seus inegualaveis recursos, e da sua privilegiada posição geografica, renunciou, mercê de uma larga visão politica, á sua antiga situação internacional, criando, com a França e a Rússia, a Triple Entente. Até uma potencia asiatica, o Japão, procurou na Europa uma aliança, a da Inglaterra. A Turquia e a Bulgaria tornaram-se aliadas da Alemanha, levadas a isso pela presente guerra, como a Itália, a Bélgica, a Servia, o Montenegro, a Roménia, o são hoje, nas mesmas condições, das potencias da Entente. Fóra desses grupos, mais ou menos recentes, de alianças, só ha um país, ha seculos aliado da Inglaterra. Esse país é Portugal.

Se esta guerra é de alianças porque, invocando alianças, as nações se batem entre si, qual poderia ser a situação de Portugal desde que no dia 5 de Agosto de 1914 a Inglaterra, em consequencia da violação da neutralidade da Bélgica, se considerou em estado de guerra com a Alemanha? Poderia ele declarar a sua neutralidade? Supô-lo é ignorar fundamentalmente o caracter, as tradições, o espirito e o próprio estado actual da aliança anglo-Iusa.

Precisamente, pouco mais de dois anos antes de rebentar a conflagração, em 15 de março de 1912, o Sr. Dr. Augusto de Vasconcelos, então Presidente do Ministerio e Ministro dos Negocios Estrangeiros, tivera ensejo de apresentar ao parIamento, em conformidade com os textos dos tratados em vigor, entre os dois países, até 1815, que o Governo Britanico apresentára á Camara dos Lords, em Dezembro de 1898 – a codificação das clausulas desses tratados que ha seis seculos ligam a Inglaterra a Portugal. O primeiro desses tratados, que o chefe do Governo Português enumerou, é o de 1373 entre Eduardo, rei de Inglaterra e França, e D. Fernando rei de Portugal e dos Algarves. Seguem-se os de 1386, 1642, 1654, 1660, 1661, 1703 e o tratado de 1815, de Viena. Por meio das clausulas essenciais que, em conformidade com esses textos em vigor, apresentados pelo Governo Britanico á Camara dos Lords, na data referida, se fixaram, os diversos tratados anglo-portugueses, sempre reconhecidos e acatados tanto pela Inglaterra corno por Portugal, ficaram constituindo como que um unico tratado, actualizando um pacto internacional que é o mais antigo que se tem mantido na Europa e que indissoluvelmente une os dois países. A impressão causada por essa nova e categorica confirmação da aliança foi tão viva que o Parlamento resolveu que o discurso do chefe do Governo, em que ela se continha, fosse impresso, enviado a todas as autoridades e afixado nos lugares publicos.

Estava, pois, bem recente a recordação dos textos da aliança, reavivada apenas porque ela nunca deixou de ser considerada pelo povo português como uma das bases de desenvolvimento da nacionalidade. Ninguem em Portugal ignorava o compromisso desde longos seculos tomado entre os dois países, e que mais uma vez se acentuara com tão solenes declarações, e o Governo Português só tinha de inspirar-se nos deveres e nos sentimentos nacionais, como o Governo Britanico não podia esquecer essa velha aliança que fôra, durante largo tempo, a unica a que se encontrara ligado. Por isso, quando, em 5 de agosto, a Inglaterra ficou em estado de guerra com a Alemanha, imediatamente se assentou na abstenção de qualquer declaração de neutralidade portuguêsa. Na sessão de 7 de agosto de 1911, o Governo Português convocava o Parlamento para lhe pedir que o habilitasse com as faculdades necessarias para fazer face ás dificuldades que internamente podessem surglr como consequencias da guerra, e, em relação á situação externa, ai lia o Sr. Dr. Bernardino Machado, então Presidente do Ministerio, a seguinte declaração que foi unanimemente sancionada pelo Parlamento e entusiasticamente sublinhada pelas manifestações da opinião publica:

«Logo após a proclamação da Republica todas as nações se apressaram a declarar-nos a sua amisade e uma delas, a Inglaterra, a sua aliança Por nossa parte temos feito, incessantemente, tudo para corresponder a essa amisade que deveras presamos, sem nenhum esqucimento, porem, dos deveres de aliança que livremente contraimos e a que em circunstancia alguma faltariamos. Tal é a politica internaclonal de concordia e de dignidade que este Governo timbra em continuar, certo de que assim solidariza indissoluvelmente os votos do venerando Chefe do Estado com o consentimento colectivo do Congresso e do povo português».

Foi este o primeiro documento oficial, publico, da atitude de Portugal perante o conflito europeu. Não se declarou a neutralidade e afirmou-se, pelo contrario, o propósito seguro e decidido de cumprir todos os deveres de aliança com uma das nações em guerra, «deveres a que em circunstancia alguma faltaríamos». O compromisso de auxiliar a Inglaterra, em tudo quanto nos fosse possível, estava contido nessa declaração, em que se assegurava uma lealdade absoluta á aliança livremente contraida, e pela qual os dois paises se obrigam a mutuamente se coadjuvarem nas horas de perigo. Não podia a Alemanha alegar ignorancia das disposições em que Portugal se encontrava, e que oficialmente, no Parlamento, o seu Governo havia expressado. Não as ignorava o seu representante em Lisboa, e por isso a nota da declaração da guerra propositadamente adultera os factos quando apresenta as facilidades e auxilios que dispensamos á nossa aliada até esse momento como uma prova de deslealdade em relação á Alemanha e um testemunho de vassalagem em relação á Inglaterra. Portugal procedeu para com a Inglaterra como a Inglaterra procederia para com Portugal em identicas condições, isto é, cumprindo fielmente os deveres duma aliança que por igual obriga e nobilita os povos que a contraíram, e que desassombradamente a invocarão sempre, sem que, nem por sombras, procurem iludir as suas responsabilidades ou eximir-se ás consequencias, quaisquer que elas sejam, que do cumprimento desses deveres lhes resultem.

Tomado o compromisso solene de 7 de Agosto de 1914, êle não significou, porém, que tivessemos em mira hostilizar a Alemanha. Como desse compromisso se concluia, Portugal ficava numa espectativa. Afirmara os seus sentimentos, declarara que mantinha, em todos os seus termos e clausulas, a aliança que o ligava a um dos países em luta, mas os acontecimentos da guerra, a invocação dessa aliança é que decidiriam a sua acção. A nota da declaração de guerra alude, como a um dos agravos feitos por Portugal á Alemanha, ás expedições que foram enviadas a Africa, e a primeira das quais começou a organizar-se logo nos primeiros dias da guerra, acrescentando que se disse então abertamente que ela era dirigida contra os alemães. Não há nenhuma declaração oficial nesse sentido. Essas tropas partiram como reforço ás guarnições militares das nossas colonias de Angola e Moçambique, limitrofes de presumiveis teatros de guerra. O pensamento do Governo Português, que seria o de todos os governos, em condições semelhantes, mesmo neutrais, foi um pensamento preventivo, baseado na defesa dos nossos territorios. Não tardou muito que os factos claramente demonstrassem que esse pensamento não obedecia a um infundado receio, mas sim a uma previsão segura, que o agressivo temperamento alemão plenamente justificava.

Dezanove dias apenas tinham decorrido desde que a Alemanha estava em guerra com a Gran-Bretanha, e no dia 24 de Agosto de 1914, em regiões afastadissimas dos campos de batalha da Europa, onde a sorte da guerra se tem de decidir, um posto português da África Oriental, situado no norte da colónia de Moçambique e fronteiriço da colonia alemã, o posto de Maziua, era traiçoeiramente atacado, de madrugada, por uma força germanica, composta de cipais e varias auxiliares armados. O chefe do posto, surpreendido no leito, foi morto a tiro, quando saía do seu quarto, despertado pelo ruído do assalto, não sofrendo a mesma sorte a pequena guarnição desse posto porque conseguira fugir para o mato, reconhecendo a desproporção das suas forças em presença do numero dos assaltantes. Os alemães entraram no posto, apoderaram-se de todos os valores que lá encontraram, e em seguida incendiaram-no. O mesmo fizeram ás palhotas anexas e até a uma pequena povoação proxima. Foi tudo pasto das chamas.

Estava derramado o nosso primeiro sangue, e quem o derramava eram os alemães, sem que Portugal os houvesse hostilizado. Os alemães continuavam em território português, fazendo os seus negocios, vivendo desafogadamente, quer na metropole, quer nas ilhas e colonias, sem que ninguem os importunasse ou agredisse. O Ministro da Alemanha permanecia tranquilamente em Lisboa, sem que o seu Governo fizesse reparo á declaração parlamentar de 7 de agosto, o que aliás era natural, porque a Alemanha bem sabia que eramos aliados da Inglaterra e por isso havíamos de respeitar e cumprir, em qualquer eventualidade, os deveres da aliança. Nem seria a Alemanha, que, invocando uma aliança, entrara na guerra, quem pudesse estranhar, sequer que os outros povos ás suas alianças se mantivessem fieis. Todavia, breve se reconheceu que o ataque ao posto de Maziua obedecia a um plano destinado a executar-se logo que um conflito se estabelecesse entre o seu país e Portugal ou a Inglaterra, porque da Inglaterra Portugal era aliado. Não é crivel que um pequeno nucleo de alemães tomasse, sem nenhuma especie de hostilidade manifestada pelos seus visinhos, uma iniciativa tão grave, se não estivessem certos de que do plano de conquista do seu Governo fazia parte a invasão das nossas colonias. Os assaltantes possuiam fotografias do posto de Maziua. Haviam conseguido obte-las anteriormente, e não lhes fora isso difícil porque como amigos se apresentavam, acalentando já no intimo os projectos da traição e da chacina. Desencadeada a guerra, eles pensavam na invasão das nossas colónias, e esse pensamento ainda mais se patenteou pouco depois nas incursões de Naulila e de Cuangar. Não poderam levar por diante os seus propósitos, mas ficou bem marcada a sua intenção, demonstrando qual seria a sorte das nossas colónias africanas se porventura a vitoria coroasse os designios imperialista da Alemanha.

O sangue português correra primeiro do que o alemão. Os processos que os alemães contra nós empregaram na África, sem que os hostilizassemos, eram os mesmos que tinham empregado na Europa: a cilada, a traição, a matança, o incendio e o saque. Renovaram a sua tentativa de incursão em 19 de Outubro, na fronteira de Angola, em Naulila, onde o bravo alteres Sereno lhes não consentiu que impunemente a realizassem. Para se vingarem, atacaram dias depois, em 30 do mesmo mês, a fortaleza de Cuangar, manifestando uma ferocidade sem limites. Alta noite, de surpresa, como em Maziua, entraram no forte e massacraram a guarnição, escapando só um cabo e duas praças indigenas, que conseguiram ocultar-se. Um comerciante que se encontrava no forte foi igualmente vitima do furor canibalesco dos alemães. Ao tenente Machado, amarraram-lhe uma corda ao pescoço, puxaram-no o para fóra do seu quarto, e como êle pedia que o não torturassem, antes o matassem, prostaram-no com baionetadas no ventre. O tenente Durão foi morto em trajos menores, quando se levantava sobressaltado pela confusão do ataque. Tiveram a mesma sorte um sargento e muitas praças europeias e indigenas. Ao mesmo tempo uma metralhadora fazia fogo sobre o posto, do outro lado do rio. E é de reparar que, dias antes, portugueses e alemães tinham confraternizado em um almoço, onde ficara combinado advertirem-se lealmente se ordens recebessem no sentido de abrir hostilidades.

Como em Maziua, os alemães saquearam tudo o que havia na fortalesa, não escapando o que pertencia ao comerciante assassinado. Mandaram arrazar o forte pelo gentio que os acompanhava, e trataram de prosseguir na sua obra de destruição. Marcharam pelo território português, levando tudo a ferro e fogo. Atacaram o posto de Bunja; queimaram o posto de Sambio; arrazaram o posto de Dirico, atacando-o com duas metralhadoras; tomaram o posto de Mucusso, aprisionando os soldados que lá se encontravam, mas que depois conseguiram fugir, com excepção apenas de dois. Este posto foi tambem arrazado. Só não se atreveram a atacar o posto de Cuanaval, porque sabiam que a sua guarnição estava em condições de lhes resistir.

São estes os factos, positivamente de guerra, e demonstrativos da hostilidade allemã, desde os inicios da conflagração europeia, que cumpre contrapôr ás alegações da nota do Governo Imperial, na qual a Alemanha procura inculcar-se como vitima do nosso espirito agressivo.

Entretanto, na metropole, mas sem que esses factos pudessem ter exercido qualquer influencia nos sucessos de Africa, acima descritos – e as datas o comprovam – os acontecimentos iam seguindo uma evolução natural, que a gravidade da guerra estabelecia e justificava. No dia 28 de setebro, um navio de guerra inglês, o Argonaut, vinha a Lisboa saudar, por ordem do seu Governo, a bandeira portuguesa, e, decorrida apenas uma semana, no dia da festa nacional, em 5 de Outubro, um navio de guerra da França, o Dupetit Thouars, igualmente por ordem do seu Governo, e para o mesmo fim, veiu também espontaneamente ao nosso porto, testemunhar as suas homenagens a Portugal, aliado da nobre nação, que ao lado da França combate desde os primeiros recontros com os alemães. Diz a nota da declaração de guerra, apresentada pelo sr. Rosen, que “O Governo Português apoiou desde o começo da guerra os inimigos do Imperio Alemão por actos contrários á neutralidade.» O Governo Português prestou sempre á Inglaterra, em conformidade com os deveres da aliança e cm a declaração de 7 de Agosto de 1914, os auxilios e facilidades que o Governo Britanico lhe solicitou. Mas nunca o fez subrepticiamente, traiçoeiramente fê-lo sempre com lealdade e desassombro. A neutralidade nunca foi declarada por Portugal; nunca existiu. “Não abastecemos de carvão os navios alemães; os navios de guerra ingleses permaneceram nos nossos portos; entregamos um caça-torpedeiros á Inglaterra». Esses factos e outros que a nota alemã aponta, só poderiam ser imputados a Portugal como uma incorrecção ou uma deslealdade, se o Governo Português tivesse declarado a sua neutralidade. Ora, pelo contrario, a solidariedade com a Inglaterra fora oficialmente aprovada no Parlamento, pela declaração de que nunca faltariamos aos deveres da aliança, que deviamos e queriamos cumprir, mesmo ácusta dos maiores e mais dolorosos sacrifícios.

O Governo Português facultou á Inglaterra todo o auxilio, toda a cooperação de que ela careceu – acedendo sempre do melhor grado aos seus convites. Sustentou e inalteravelmente, sem hesitações nem receios, o claro e leal compromisso tomado. Nunca a nossa aliada recorreu ao esforço, á solidariedade de Portugal, que o não encontrasse singelamente, mas firmemente, ao seu lado. Deu-lhe o seu concurso moral e o seu concurso material, e tão disposto se mostrou a dispensar-lhos em toda a latitude dos seus recursos, que, logo nos meados de Outubro de 1914 – como o chefe do Governo que então se encontrava no Poder, o sr. dr. Bernardino Machado, mais tarde o acentuou na declaração ministerial de 2 de Dezembro desse ano – uma missão oficial de militares portugueses partiu, em virtude de negociações anteriores, para Londres, onde conferenciou com os altos representantes do exercito inglês sobre a nossa solidaria acção na campanha.

Foi essa missão recebida com os primores da mais viva simpatia, e, no acolhimento dispensado aos ilustres oficiais que a compunham, bem claramente ficou demonstrado o justo apreço em que eram tidos os nossos bravos soldados. O grande e malogrado Ministro da Guerra inglês, general Kitchener, dêsse apreço deu testemunho em carta dirigida ao Ministro da guerra português, general Pereira de Eça, ácerca dos trabalhos dessa missão, que tambem em França, onde esteve depois da sua ida a Londres, foi alvo de distinções que justificadamente desvaneceram o nosso país.

A situação de Portugal perante o conflito europeu tomava o aspecto que era de prevêr em face de compromisso estabelecido na declaração de 7 de Agosto. Por isso, o Governo Português, no dia 23 de Novembro de 1914, outra vez se apresentara ao Congresso da Republica, para lhe comunicar a nova fase a que a situação internacional chegara. Nessa sessão, o Sr. Dr. Bernardino Machado, Presidente do Ministerio, apresentou a seguinte proposta de lei:

«É o Poder Executivo autorizado a intervir militarmente na actual luta armada internacional, quando e como julgue necessario aos nossos altos interesses e deveres de nação livre e aliada da Inglaterra, tomando para esse fim as providencias extraordinarias que as circunstancias de momento reclamem».

A seguir, o Sr. Presidente do Ministério leu, em complemento da sua proposta, esta nota elucidativa, redigida por acordo entre os Governos Português e Inglês:

«Logo no principio da guerra, Portugal afirmou espontaneamente que estava pronto, como aliado da Gran-Bretanha, a dar-lhe todo o concurso. O Governo Inglês, apreciando altamente este claro testemunho de cordeal solidariedade, convidou, com estranhavel reconhecimento, o Governo Português a contribuir de facto, consoante entre ambos se estipulasse, com a sua cooperação militar. E por este modo os dois Governos assegurarão os fins da aliança, ha séculos já subsistente entre as suas nações, e cuja manutenção tanto é do interesse comum duma e doutra».

O Parlamento saudou, com aplausos, a leitura desta nota, e a proposta do Governo foi aprovada.

 

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A cooperação belica de Portugal ficou assim decidida, não se especificando, porém, o local em que se exerceria, e dependendo necessariamente a data dessa cooperação da organização militar a que o Governo Português imediatamente resolveu proceder. A falta de material com que lutava o nosso exercito, as deficiencias da sua organização, o que o país inteiro conhecia, e que resultavam do facto de durante longos anos se ter lamentavelmente descurado o problema militar em Portugal – problema a que as novas instituições portuguesas, logo após o seu advento, procuraram dar uma solução verdadeiramente nacional – tornavam manifestamente dificil, num breve praso, a constituição de efectivos convenientemente habilitados a entrar numa guerra em que milhões de homens lutam com os mais aperfeiçoados e formidaveis instrumentos de guerra. O Governo Português, porém, lançou imediatamente ombros a essa empresa, e pode afoitamente afirmar-se que ha muito já as nossas tropas combateriam junto dos seus aliados na Europa, se novos e mais graves acontecimentos, ocorridos em Africa, o não lev assem a fazer derivar para ali o nosso esforço imediato. Com efeito, em 18 de Dezembro desse mesmo ano, pouco mais de um mês após a sessão parlamentar em que ficou resolvida em principio a cooperação militar de Portugal na guerra, dava-se um sangrento combate em Naulila, entre as tropas expedicionarias comandadas pelo coronel Roçadas e as forças alemãs da Damaralandia. Mais uma vez os alemães atravessaram a nossa fronteira de Angola, para nos atacar, tendo, também, provocado a insurreição entre os indigenas submetidos á nossa soberania. Travou-se combate, retirando, por fim, as tropas portuguesas, mas a vitória esteve indecisa, e foi tão precaria, que os alemães não proseguiram na sua marcha, voltando apressadamente aos seus territorios. De altos feitos de valor, praticados por oficiais e praças portuguesas nessa acção, igualmente teve o país, segundo veridicas informações, o mais amplo conhecimento.

O combate de Naulila não teria sido mais do que um incidente da guerra africana, e as nossas tropas preparavam-se para renovar a luta, até a invasão da colonia alemã e o desbarato dos seus defensores, se os rápidos progressos das forças sul-africanas, que combatiam os alemães da Damaralandia os não levassem a uma capitulação tão completa e tão rápida que não deu tempo a que as forças portuguesas tomassem sobre eles a desforra de todos os seus ataques. Sob a direcção do general Pereira d’Eça, que substituiu no comando da expedição o coronel Roçadas, as nossas tropas ocuparam-se em reprimir a insurreição dos Cuanhamas, fomentada pelos alemães, sendo ela completamente debelada e rigorosamente punida.

No ano de 1915, apesar dos incidentes de ordem interna que o assinalaram, os trabalhos da organização militar proseguiram por forma a deixarem alimentar a fundada esperança de que Portugal em breve possuiria um exercito digno das suas tradições e do lugar que ocupa na Europa. Essa tarefa não cessou ainda, embora o Governo Português já hoje possa assegurar ao país, com a satisfação de um dêver cumprido, que ele possue actualmente a força necessaria não só para a defesa do solo patrio como também para honrar os compromissos de uma aliança, que só por esse facto se encontra altamente valorizada.

Entretanto as agressões germanicas não cessavam, embora o Governo Imperial, fingindo ignorar o que em Africa se passara, continuasse a manter em Lisboa o seu representante. No dia 3 de Abril, o vapor Douro foi ou metido a pique por um submarino, ou afundado por uma mina alemã, quando vinha em viagem de Cardiff para o Porto. Em fins de Maio, outro navio mercante português, o Cisne, foi igualmente afundado à entrada da Mancha. A este, um submarino alemão torpedeou-o depois de reconhecer a sua nacionalidade portuguesa, de ter apreendido os viveres que o navio conduzia, e de ter intimado a tripulação e a abandoná-lo.

O que o Governo Português não podia evitar, nem governo de nenhum país, nas suas condições, o poderia fazer, é que se sentissem dolorosamente entre nós, como nas nações em guerra ou neutrais da Europa se sentem tambem, as tremendas consequencias economicas da guerra. Sobretudo elas produziram um extraordinario encarecimento da vida, agravando de preferencia as condições das classes mais desprotegidas da fortuna e pelas quais os governos mais zelosamente devem olhar. Dependentes da navegação estrangeira pela deficiencia da nossa marinha mercante; tendo essa navegação decrescido, em virtude dos perigos nas travessias em mares infestados de submarinos alemães, e havendo a falta de tonelagem elevado excessivamente o preço dos transportes, não só as nossas importações com a vinda dos produtos coloniais se encontraram profundamente prejudicados. Era dever do Governo suprir essa deficiencia, lançando mão dos meios precisos para esse fim. Um deles necessariamente se impunha: a utilização dos navios alemães.

Desde o começo da guerra estavam imobilizados nos nossos portos algumas dezenas de navios alemães, e que neles se haviam refugiado quando a guerra irrompera. Durante ano e meio, apesar de progressivamente se terem ido avolumando as dificuldades dos transportes, e de, por via delas, se ter agravado extraordinariamente a situação economica do país, o Governo Português evitou utilizar-se deles, embora uma crescente necessidade publica lho sugerisse, o nosso direito, interno e convencional, a isso plenamente o autorizasse, e as sucessivas agressões alemãs o justificassem. Chegou-se, porém, a um momento em que já não era possivel, nem se poderia explicar, que esses navios permanecessem imoveis quando o país inteiro se debatia com uma temerosa crise de subsistencias. Coincidia ainda com essa imperiosa necessidade do país, um não menor interesse da parte da nossa aliada, em que a tonelagem desses navios voltasse á circulação mercantil e a ela podesse tambem aproveitar, representando assim mais um daqueles auxílios que Portugal, pelos deveres da sua aliança, e em conformidade com a sua declarada atitude, desde o principio da guerra, jámais deixou de lhe prestar, sempre que lhe foram solicitados.

Mas o nosso acto, por isso mesmo que daria importantes vantagens á nação que a Alemanha considera o seu mais odiado inimigo, poderia ser malevolamente tomado por ela como pretexto para insofridas retaliações contra o povo português que já sofrera os seus bárbaros ataque. Na previsão de tal eventualidade, compenetrando-se inteiramente das responsabilidades que connosco ia assumir, o Governo Inglês dirigiu ao Governo Português, em 17 de Fevereiro de 1916, por intermedio da Legação Britanica em Lisboa, a seguinte solicitação:

«Tendo resultado serias dificuldades para o comercio da presente escassez de navios, dificuldades que são sentidas não só na Gran-Bretanha, como tambem nos países que manteem com ela boas relações, e tendo Portugal, desde o início das hostilidades, mostrado invariavelmente completa dedicação pela sua antiga aliada, o Ministro de Sua Majestade, tem ordem, em nome do Governo de Sua Majestade, de instar com o Governo da Republica, em nome da Aliança, para que faça requisição de todos os navios inimigos surtos em postos portugueses, que serão utilizados para a navegação comercial portuguesa, e tambem entre Lisboa e os demais postos que se determinarem por acordo dos dois Governos».

No dia 23 de Fevereiro, o Governo Português requisitava, com efeito, os navios alemães fundeados nos portos nacionais.

 

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O acto da requisição dos navios alemães teve de ser realizado duma maneira rapida e segura pelo receio de que os seus tripulantes os deteriorassem. Que não era injustificado esse receio prova-o o facto de nenhum desses navios ter deixado de sofrer avarias propositadas, que só não se tomaram irreparáveis pela precipitação com que foram cometidas. Ainda antes de se saber que essa requisição daria origem á declaração de guerra, já esses testemunhos de hostilidade se produziam. Entretanto, o Governo Português nenhuma represalia tomou para com os seus autores.

No mesmo dia em que a requisição dos navios se efectuava, o Governo Português dirigiu ao seu representante em Berlim um telegrama em que o encarregava de comunicar essa resolução ao Governo Imperial, declarando-lhe ao mesmo tempo que a questão de direito fôra regulada num diploma legal, que definia a situação das tripulações, a questão das indemnizações, etc. Porém, quatro dias depois, o Sr. Rosen, Ministro da Alemanha em Lisboa, dirigia ao Ministro dos Negocios Estrangeiros uma nota em que qualificava de singular quebra de direito e acto de força a requisição dos navios alemães, solicitando, em nome do seu Governo, a imediata revogação daquela medida.

A resposta a esta nota foi enviada pelo Governo Português ao nosso Ministro em Berlim para dar imediato conhecimento ao Governo Alemão. O Governo Português acentuava que os navios alemães, imobilizados ha mais de dezoito meses nas aguas territoriais portuguesas, deviam ser considerados como abrangidos pelo principio geral do «dominio eminente», estando assim Portugal justificado de exercer sobre eles o mesmo direito que exerce, em casos eventuais sobre a propriedade de todas as pessoas dentro da sua jurisdição, ou seja o direito de usar dela sempre que as necessidades do país o exigirem. Recordava que de modo semelhante procedera o Governo Italiano, sem protesto do Governo Imperial, requisitando os navios alemães que nos portos da Italia se haviam refugiado. Acrescentava que os proprietários dos navios seriam indemnizados em devido tempo; que o procedimento do Governo se baseava na lei de 7 de fevereiro, base 10.ª, e que o artigo 2.º do tratado de comercio e navegação entre Portugal e a Alemanha só se restringia a requisição dos navios em transito, ou, quando também abrangesse a dos navios fundeados, as suas disposições só obrigariam ao reconhecimento prévio do direito de indemnização, o que no decreto da requisição dos navios se fizera. Por todos estes fundamentos juridicos, o Governo Português não podia modificar o seu acto.

Ao mesmo tempo, porém, o Governo Português incumbia ainda o seu representante em Berlim de, se essas razões não fossem atendidas, arguindo o Governo Alemão o nosso país de quebra de neutralidade, lhe acentuar firmemente o infundado da arguição, não só pelas razões juridicas expostas como pela impropriedade da expressão, porque logo no começo da guerra, em 7 de Agosto de 1914, o Governo da Republica Portuguesa declarava, com aplauso unanime do Parlamento, que em circunstancia alguma faltaríamos aos deveres da aliança que livremente contraimos com a Inglaterra, e os Governos estrangeiros, incluindo o Alemão, tanto acataram os sentimentos de pura lealdade que nos ditaram essa atitude, que todos mantiveram aqui os seus representantes.

Foi a esta comunicação que o Governo Imperial respondeu, em 9 de Março de 1916, com a nota da declaração de guerra, entregue pelo Sr. Rosen no Ministerio dos Negocios Estrangeiros.

Nesse longo e arrogante documento, que tanta ressonancia teve e tam legitima indignação despertou em todo o país, e de que o Governo deu conta ao Parlamento na historica sessão do Congresso da Republica de 10 de Março, o Governo Alemão fez uma lista dos actos por Portugal praticados e por ele considerados contrarios a uma neutralidade, que nunca fôra declarada pelo Governo Português.

Referia-se á proibição do abastecimento de carvão aos navios alemães, ao consentimento da permanencia dos navios de guerra ingleses nos nossos portos, á permissão da passagem de tropas britanicas por Moçambique, á utilização da Madeira como base naval, á entrega do caça-torpedeiros Lis, á Inglaterra – tudo actos manifestamente conformes com as facilidades e auxílios que, em harmonia com os deveres da aliança, solicitamente haviamos prestado á nação inglesa, consoante o seu Governo os julgava necessarios. O Governo Alemão absolutamente faltava á verdade quando dizia que Portugal vendera canhões ás potencias da Entente, e não menos adulterava os factos, afrontando-nos indignamente, ao afirmar que os oficiais e soldados alemães que acompanhavam o Dr. Schultz-Jena, á sua entrada cm Naulila, a 19 de Outubro de 1914, ali haviam sido atraídos, declarados presos sem motivo justificado, e depois, em parte, mortos a tiro e os sobreviventes aprisionados. Esta afirmação nunca o Governo Alemão a estribou em qualquer prova, antes, pelo contrario, o que se provou foi a atitude hostil da parte da Alemanha. Outros pontos alusivos aos acontecimentos de África, e em que a Alemanha procurava apresentar-se como inocente vitima das nossas agressões, embora todos esses factos se houvessem dado quando os alemães se encontravam em territorio português, por eles invadido, ficaram já acima devidamente esclarecidos pela narrativa oficial desses mesmos acontecimentos. Sobre a questão da requisição dos navios, o Governo Alemão procurava rebater as razões jurídicas que o Governo Português alegara, tentando apresentá-lo como um violador do direito.

Com esta acusação, realmente singular da parte do Estado, que invadiu a Belgica, rasgando o tratado que garantia a sua neutralidade, e de que a Alemanha era uma das potencias signatarias, e com o novo insulto de afirmar que Portugal só demonstrara a sua vassalagem á Inglaterra, acabava a nota apresentada pelo Sr. Rosen, declarando que o Governo Imperial se considerava dali em diante em estado de guerra com o Governo Português. Tendo ouvido a leitura de todos estes documentos, o Parlamento votou por unanimidade a seguinte moção, apresentada pelo Sr. Dr. Alexandre Braga:

«O Congresso da Republica, ouvidas as declarações do Governo, apoia o seu procedimento, e reconhece com ele a oportunidade da constituição dum Ministerio Nacional, que continue a salvaguardar a honra e os interesses da Patria, executando as deliberações do Poder Legislativo, conducentes a esse fim.»

 

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Estava declarada a guerra, a que logo se seguiu o rompimento das relações diplomaticas com a Áustria. Natural e necessario era que a nossa solidariedade com as nações aliadas se estreitasse, entendendo-se o Governo Português com os Governos das mais importantes de entre elas. Era a primeira das consequencias lógicas que o facto capital de 9 de Março devia produzir. Esse entendimento efectuou-se, portanto. Fomos representados na conferencia politica e militar dos aliados, pouco depois realizada em Paris, pelo nosso Ministro em França, e a seguir, na conferencia economica dos mesmos aliados, que tambem em Paris se efectuou, por delegados especiais que o Governo designou. Igualmente foi enviada a Londres uma missão oficial para conhecermos precisamente as disposições do Governo Inglês em relação ao nosso estado de guerra, e também para se resolverem varias questões, que já tinham sido objecto de negociações diplomaticas. Merecia especialmente a atenção do Governo o problema propriamente financeiro ou o estudo das facilidades que Portugal teria em Londres para as operações externas de que o Governo viesse a carecer. Todavia a viagem a Londres dos Ministros das Finanças e dos Negocios Estrangeiros foi principalmente determinada por um honroso convite do Governo Britanico, ao qual não podíamos deixar ele corresponder com a maior cordealidade e com o maior empenho, para mais estreitar as intimas relações de amizade existentes entre os dois países.

Entretanto, as operações militares iniciavam-se, depois da declaração de guerra, na Africa Oriental, com a reconquista de Kionga que a Alemanha, em 1894, afrontosamente nos usurpara. Retornada Kionga, as operações seguiram para a invasão do territorio inimigo. As tropas portuguesas atravessaram o Rovuma, depois de sangrentos combates, e, varrendo sempre o inimigo, penetraram na colonia alemã até o forte de Newala. Um desses fluxos e refluxos que tem sido a caracteristica da guerra actual levou os nossos soldados a ceder momentaneamente algum terreno, mas a guerra em Africa prosegue vantajosamente, e é legitima a esperança que o Governo Português alimenta de que em breve as nossas tropas recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães no seu proprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a bandeira de Portugal.

Por sua parte, a Alemanha não nos poupa. Logo que se declarou a guerra, foram encontradas minas espalhadas pelo inimigo mesmo á entrada do porto de Lisboa. Não conseguiram os alemães os seus designios pelo esforço da nossa intrepida marinha que, apesar do restrito numero dos seus navios, constantemente vigia pela nossa segurança, tendo conseguido que até agora nenhum ataque se desenhasse contra as costas do continente.

Dessa bravura tradicional e constante foi exemplo o feito realizado pela pequena canhoneira Ibo, repelindo, no mar largo, o ataque dum submarino alemão. Todavia, os acontecimentos recentes da perseguição do Machico, do ataque ao Funchal, do torpedeamento da barca Emilia, do afundamento dalguns navios portugueses, em viagem, e da tentativa contra S. Vicente de Cabo Verde, em cujo porto um submarino inimigo conseguiu introduzir-se, no dia 4 de Dezembro ultimo, sendo repelido pelas canhoneiras portuguesas que ali se encontram, auxiliadas pela artelharia de terra, provam bem que o furor da Alemanha contra nós pode ser impotente em muitos casos, mas em todos aqueles em que com eficacia se pode exercer nunca deixa de saciar-se com barbara tenacidade.

Regressando de Londres os Ministros que ali haviam ido em missão do Governo Português, foi convocado o Parlamento para o dia 7 de Agosto, a fim de ser presente ao Congresso da Republica o resultado dessa missão. O Ministro das Finanças relatou os acordos a que se havia chegado com o Governo Inglês ácerca da cedencia dos navios ex-alemães e sobre a questão financeira, relativa á guerra. Decidiu-se alugar a uma comissão representante do Governo Inglês todos os navios que não nos fossem precisos para as nossas urgentes necessidades, voltando esses navios ao nosso dominio logo que cessem as circunstancias especiais determinadas pela guerra. Assim se acautelou a nossa aspiração de possuirmos uma importante marinha mercante, aproveitando os perigos e riscos que a guerra nos acarreta.

Quanto á questão financeira, sob o ponto de vista da guerra, o Governo Inglês concordou com que se comunicasse ao Parlamento a seguinte nota:

«O Governo Inglês combinou com o Governo Português fazer-lhe tantos empréstimos quantos forem necessarios para o pagamento dc todas as despesas que, para fins directamente relacionados com a guerra, os dois Governo, concordem que é necessario efectuar na Gran-Bretanha ou, excepcionalmente, noutros países aliados. O Governo Inglês fará estes empréstimos ao Governo Português nas mesmas condições em que levanta dinheiro de tempos a tempos por bilhetes do Tesouro. O total emprestado ao Governo Português será por este pago ao Governo Inglês dentro de dois anos, a contar da assinatura do tratado de paz, com o produto dum emprestimo externo, que será negociado por Portugal e para cuja emissão o Governo Inglês dará todas as facilidades possiveis.»

Por seu turno, o Ministro do Negocios Estrangeiros, depois de acentuar as notáveis demonstrações de estima que a grande Nação aliada prestou aos representantes do Governo Português, leu ao Congresso da Republica o seguinte documento em que o Governo Britanico convida Portugal a tomar um lugar na guerra europeia junto dos aliados:

«Os Srs. Afonso Costa e Augusto Soares, Ministros Portugueses das finanças e Negocios Estrangciros, confirmaram, em conversação com o principal Secretario de Estado de Sua Majestade para os Negocias Estrangeiros, o facto de Portugal, pelas decisões do seu Parlamento e pelo unanime sentimento do seu povo, se ter invariavelmente colocado ao lado da Gran-Bretanha. Portugal sentiu que, acima de tudo, devia proceder como antigo aliado da Grau-Bretanha, para o que tem estado e continuará a estar pronto. Portugal deu provas disso em todas as ocasiões, e especialmente quando os navios alemães foram requisitados, facto que conduziu á declaração de guerra pela Alemanha a Portugal. O Governo de Sua Majestade plenamente reconhece a lialdade de Portugal e a assistencia que já lhe está dando, e cordialmente o convida a uma maior cooperação militar ao lado dos aliados na Europa, em tanto quanto êle se julgue capaz de a prestar. A comissão de guerra está sendo consultada com respeito ás providencias que serão propostas para assentar nos preparativos necessarios para esse fim.»

A seguir á leitura destes documentos, foi apresentada pelo Sr. Correia Barreto a seguinte moção, a que o Congresso deu a sua aprovação plena:

«O Congresso da Republica em consequencia e execução das suas deliberações de 7 de Agosto e 23 de Novembro de 1914, e 10 de Março de 1916, e em atenção aos altos interesses nacionais, resolve dar plena satisfação ao honroso convite que o Governo de Sua Majestade Britanica fez, em 15 de julho ultimo, ao Governo da Republica Portuguesa para uma maior cooperação militar de Portugal na Europa, e mantem, para esse efeito, ao Poder Executivo, as faculdades anteriormente concedidas.»

 

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Eis os factos que precederam a declaração de guerra. Eis os factos que, até agora, foram suas consequencias. Logo após a apresentação dos documentos que precedem ao Parlamento, o Governo Português tratou de efectivar a participação de Portugal na guerra europeia. Mobilizou-se o exercito, procedendo-se á instrução intensiva das forças que devem seguir para esse fim. A partida do primeiro corpo expedicionario vai-se efectuar. Pela primeira vez, de há cem anos a esta parte, a bandeira de Portugal flutuará, de novo, nos campos de batalha da Europa.

Pela exposição clara dos factos que nos levaram á guerra, e que da guerra são já a consequencia necessaria, o país inteiro fica sabendo que a honra da Patria se manteve imaculada em toda esta longa situação internacional que neste momento chega á mais grave, mas tambem á mais gloriosa das suas fases. Percorrendo as paginas da sua historia, o povo português encontrará titulos de nobreza, justificados em acções brilhantes que lhe asseguram a imortalidade. A essas paginas, porém, acrescentará aquelas em que se fixa a sua atitude actual, tomada em face dos maiores perigos que, sem duvida, podem ameaçar uma nacionalidade, mas que tambem lhe asseguram as compensações do heroismo, da dignidade e da lealdade reconhecidas pela humanidade presente como o serão pela posteridade justiceira.

Numa sequencia de logicas atitudes, manifestou-se, sempre pura e decidida, a integridade moral da Nação. Foi essa a preocupação dominante do Governo Português que, de fronte bem alta, se apresentou constantemente perante amigos e inimigos, dando a todos as provas da mais absoluta lealdade, porque nem a uns faltou a minima parcela de fidelidade nos compromissos nacionais, nem perante os outros jámais procurou esquivar-se a nenhuma responsabilidade dos seus actos. O Governo Português aguarda, sereno, os juizos da historia, porque tem a consciencia de que foi o mandatario da nação e o zeloso depositário da sua honra.

É cedo para apreciar as possíveis vantagens da atitude que Portugal assumiu perante a conflagração europeia. Elas dependem da marcha dos acontecimentos. Uma, porém, lhe está já plenamente assegurada. É a de se ter afirmado um povo digno das tradições do seu passado e das esperanças do seu futuro, digno da sua liberdade e da sua independencia, digno da nobre civilização a que pertence e em que o direito e a justiça são noções sagradas e inviolaveis. Esta guerra começou pelo espectaculo, patenteado ao mundo inteiro, duma das maiores potencias do globo, calcando aos pés um tratado que ela assinara, para invadir um pais e traiçoeiramente assaltar outro, chamando depois a esse tratado «um farrapo de papel». Será para Portugal um brazão de gloria que ninguem jámais lhe arrancará, o espectaculo que esta pequena nacionalidade dá ao mundo, considerando o tratado de aliança, que a liga há seis seculos a uma nação amiga como um elo de bronze que nem a acção do tempo nem as violencias dos homens podem quebrar.

Não somos levados nem pela ansia de conquistas, nem pela sêde de recompensas. O superior interesse que nos guia, além da afirmação espiritual que nos orgulha, é o de tornarmos ainda mais solida a nossa aliança com a nobre Nação inglesa, que nos tem acompanhado sempre pela historia fóra, cimentá-la com os nossos esforços e os nossos sacrifícios, valorizá-la e engrandecê-la, engrandecendo-nos e valorizando-nos a nós proprios. Já se chamou a esta guerra a guerra das pequenas nacionalidades, e é certo, porque o imperialismo alemão ainda não soube senão esmagar pequenos povos. Portugal é uma dessas pequenas nacionalidades, com profundas raíses históricas e um patrimonio colonial conquistado á custa de heroismos de que a humanidade largamente aproveitou. Portugal defende a sua vida e defende o seu patrimonio. Para isso derramará o seu sangue até á ultima gota.

O Governo Português saúda os soldados que vão partir. Saúda o exercito e a armada, em cujo patriotismo e intrepidez repousa a segurança da Patria. Saúda o País. A honra de o representar neste momento culminante da existencia nacional basta para o compensar das agruras da missão que lhe tem sido dado desempenhar.

 

Presidencia do Ministerio. – 17 de Janeiro de 1917. – Antonio José de Almeida, Braz Mousinho de Albuquerque, Luiz de Mesquita Carvalho, Afonso Costa, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, Vitor Hugo de Azevedo Coutinho, Augusto Luiz Vieira Soares, Francisco José Fernandes Costa, Joaquim Pedro Martins, Antonio Maria da Silva.

 

 

* Selecionado pelo coronel Nuno António Bravo Mira Vaz, Vogal Efetivo do Conselho Fiscal da Revista Militar.

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