Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Desenvolvimento de medicamentos: Poções, química e biologia
Professor Doutor Médico
Miguel Augusto Marques Gomes da Silva Forte
Introdução
 
O acto médico começa e tem como objectivo o diagnóstico ao qual se segue o acto terapêutico. Muitos dos actos terapêuticos dependem de medicamentos.
 
 Integrado numa perspectiva histórica pretendemos discutir o desenvolvimento e aprovação de novos medicamentos bem como abordar os principais desafios que se deparam actualmente ao acto terapêutico medicamentoso.
 
 
História do medicamento na Europa
 
Andromacus, médico do Imperador Romano Nero, criou um dos primeiros agentes terapêuticos de forma completamente empírica. Esta formulação, a que deu o nome “galeno”, que significa tranquilidade, era derivada duma mais antiga (mithridatium) à qual alguns ingredientes foram retirados e outros adicionados como por exemplo víbora migada.
 
A preparação de tal poção era complicada e demorava 40 dias aos quais se seguiam 12 anos de maturação ideal. Um indício de experimentação ousada na época ficou registado pelo médico do Imperador Romano Marcus Aurelius que ingeriu a poção com apenas dois meses de maturação sem qualquer efeito nocivo. Já nessa altura a preocupação com a segurança era primordial.
 
Em termos de eficácia era opinião estabelecida que a ausência de efeito da poção se podia dever apenas à incorrecta manipulação ou ao incorrecto armazenamento da mesma. Esta preocupação com o rigor, à luz da época, da preparação e condições de armazenamento constituem os primeiros aspectos relativos à qualidade do medicamento.
 
As primeiras inspecções remontam provavelmente ao ano de 1423 quando os médicos em Londres nomearam apotecários para inspeccionar os seus colegas e reportar às autoridades os resultados. Em 1518 o rei Henrique VIII criou o Colégio dos Médicos em Londres e em 1540 foi promulgada legislação que conferia aos médicos o poder de nomear quatro inspectores apotecários.
 
A primeira Farmacopeia provavelmente corresponde ao Guia dos Apotecários de Florença, publicado em 1498. Formulários foram posteriormente publi­cados em Barcelona (1535 - Concordia Pharmacolorum Barcinonesium) e Nuremberga (1546 - Dispensatorium valerii Cordis). O Colégio dos Médicos iniciou o processo (1585) que veio a culminar com a Pharmacopoeia Londinensis publicada em 1618. Esta Farmacopeia ainda incluia o modo de preparação da poção mithridatium cuja eficácia só veio a ser posta em causa em 1745, sendo a London Pharmacopoeia de 1746 a última a incluir esta poção apesar de ela ainda estar presente na Farmacopeia Alemã de 1872 e na Farmacopeia Francesa de 1884.
 
No entanto é no século XX que a regulamentação do medicamento aparece, em particular na sequência dos acidentes com o elixir de sulfanilamida e a talidomida.
 
O desatre com o elixir de sulfanilamida aconteceu em 1937 nos estados Unidos da América quando se registaram multiplas mortes, incluíndo crianças, na sequência de ingestão do preparado de sulfanilamida que continha como veículo um produto quimico análogo a anticongelante. O medicamento foi utilizado sem prévios estudos de segurança por não serem exigidos nessa época.
 
A talidomida era, na altura, um medicamento sedativo e anti-emético introduzido em 1957 e utilizado no tratamento sintomatico das náuseas e vómitos da gravidez. Outros usos vieram a ser identificados mais tarde para este medicamento ainda hoje usado em contexto bem restrito. Nos anos que se seguiram múltiplas foram as descrições de recém-nascidos de mães medicadas com talidomida com malformações congénitas, nomeadamente focomélia, para além de outros efeitos adversos. Na sequência destas descrições o medicamento foi retirado do mercado e vários países introduziram organizações oficiais para monitorizar os medicamentos bem como legislação obrigando o registo de novos medicamentos.
 
O registo de medicamentos assenta na avaliação da qualidade, segurança e eficácia antes da introdução do medicamento no mercado.
 
A Comunidade Económica Europeia foi estabelecida pelo Tratado de Roma em 1958 e desde cedo reconheceu a importância de regulamentar a nível europeu a utilização do medicamento. Em Janeiro de 1965 foi adoptada pelo Conselho de Ministros a Directiva 65/65/EEC, que constitui a base da legislação Europeia do Medicamento. A directiva define como objectivos a regulamentação da produção e da distribuição de forma a salvaguardar a Saúde Pública ao mesmo tempo que suporta o desenvolvimento da Industria Farmacêutica e a livre circulação de medicamentos na Comunidade Europeia. A estrutura básica para a avaliação e concessão da Autorização de Introdução no Mercado (AIM) de novos medicamentos bem como os documentos básicos relativos à AIM como o Resumo de Característica do Medicamento (RCM) e o Folheto Informativo (FI).
 
Em 1975 o Comité dos Medicamentos para Uso Humano (CHMP) foi estabelecido em Bruxelas. Em 1995, com a criação da Agência Europeia do Medicamento, EMEA, sediada em Londres o CHMP passou a reunir mensalmente nas instalações da Agência.
 
A EMEA tem por missão a promoção e defesa da Saúde Pública e Animal através da avaliação de medicamentos humanos e veterinários. Reune os 25 estados Membros e as correspondentes 42 Autoridades Competentes Nacionais, numa rede que conta com mais de três mil e quinhentos peritos. Em Portugal, o Instituto da Fármacia e do Medicamento, INFARMED é a Autoridade Nacional competente na avaliação de novos medicamentos. A estrutura administrativa da Agência Europeia do Medicamento tem um Director Executivo e cerca de quatrocentos funcionários.
 
Em 2004 a regulamentação 726/2004 define a nova estrutura da avaliação de novos medicamentos. Esta revisão da legislação farmacêutica reconhece novos desenvolvimentos e estabelece, à luz de novas necessidades na utilização de medicamentos, várias alterações das quais ressaltam o procedimento de avaliação acelerado, a aprovação condicional e o uso compassivo destinados a medicamentos inovadores dirigidos para uma necessidade médica não preenchida.
 
O constante desenvolvimento científico, definindo novas oportunidades terapêuticas mas também novas carências, tem um necessário impacto na regulamentação do medicamento. Neste sentido nova legislação continua a ser proposta pela Comissão Europeia e pela EMEA. Um exemplo pertinente é a proposta de regulamentação para novas terapêuticas avançadas que dizem respeito a abordagens inovadoras, como por exemplo produtos resultantes da combinação de medicamentos e dispositivos médicos.
 
 
Desenvolvimento de novos medicamentos: ensaios clínicos
 
O primeiro passo no desenvolvimento de novos medicamentos passa pela identificação de potenciais alvos terapêuticos fruto de investigação ou resultante de necessidades médicas não preenchidas.
 
No caso de pequenas moléculas produzidas quimicamente, são geradas inúmeras moléculas que são avaliadas quanto à sua capacidade in vitro de produzir o efeito desejado. Normalmente durante este processo de selecção, apenas um número exponencialmente reduzido de moléculas passa à fase seguinte de testes em animais para avaliar a segurança e a eficácia pré-clínica. Os medicamentos biológicos são de produção mais delicada e complexa resultando em geral do testar duma hipótese de mecanismo de acção, baseado em processos biológicos.
 
A fase pré-clínica é essencial para avaliar in vivo em modelos animais os aspectos de segurança e de forma mais limitada os aspectos de eficácia. Só após razoável confiança nestes resultados o desenvolvimento de um novo medicamento passa à fase humana com o primeiro estudo no homem. Este primeiro ensaio, estudos de fase I, decorre normalmente em voluntários e pretende avaliar essensialmente a segurança. Os ensaios de fase II são realizados num número limitado de doentes com a patologia alvo de forma a ampliar as informações sobre segurança, potencial eficácia e indicar a dose a utilizar em ensaios com um número mais elevado de doentes. Estes ensaios num número alargado de doentes denominam-se estudos de fase III e têm como objectivo confirmar a eficácia e alargar a base de dados sobre segurança. Esta divisão é de alguma forma artificial já que consoante a patologia a divisão entres a diferentes fases não será nítida. As excepções mais frequentes dizem respeito à patologia oncológica, em que os ensaios se iniciam logo em doentes, e às doenças relativamente raras, com um número reduzido de doentes, denominadas orfãs. De uma forma geral os ensaios avaliam a segurança, a farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo e elimi­nação) e a farmacodinâmica (mecanismo de acção e eficácia).
 
A regulamentação dos ensaios clínicos cresceu consideravelmente desde aquele que é considerado o primeiro ensaio clínico registado, até aos dias de hoje. James Lind era um dos cirurgiões a bordo da Armada Inglesa sob o comando do Almirante Nelson. Em 1747 a bordo do navio Salisbury Lind conduziu um ensaio em marinheiros com escorbuto de forma paralela com vários tratamentos incluindo frutos citrinos. Apenas o grupo com aquela fruta melhorou significativamente. Os seus resultados foram publicados em 1753.
 
O Código de Nuremberga (1947) e a Declaração de Helsinkia (1964) constituem a base da segurança do indivíduo incluido em ensaios clínicos. Na realidade a principal preocupação na realização de ensaios clínicos deve absolutamente ser a seguraça do doente na forma duma cuidada avaliação da relação risco benefício para o indivíduo resultante da sua inclusão no estudo. Esta avaliação tem em conta toda a informação disponível em termos de segurança e eficácia sobre o produto, as alternativas terapêuticas existentes e a possibilidade e probabilidade de o doente receber placebo. A análise é feita pelas Comissões de Ética que têm de ser independentes e com uma constituição diversa e representativa dos aspectos técnicos, sociais e humanos.
 
Em termos da realização do ensaio clínico a Conferência Internacional de Harmonização definiu em 1997 as normas de Boa Práctica Clínica, de aplicação universal e a respeitar na condução dos estudos. A Agência Europeia do Medicamento tem publicado múltiplas normas e orientações para a condução e avaliação dos ensaios clínicos disponíveis na sua página da internet. A Directiva dos Ensaios Clínicos foi publicada em 2001 pela Comissão Europeia e com transposição para as legislações dos Estados Membros programada até 2004. Esta directiva estabelece a base normativa para a aprovação e condução de ensaios clínicos no espaço da Comunidade Europeia. Os aspectos mais importantes têm a ver com as responsabilidades dos diferentes parceiros, nomeadamente do Promotor, aquele que inícia e é responsável pelo estudo, e as Autoridades competentes e em particular as Comissões de Ética a nível do Estado Membro que autorizam e controlam a realização do ensaio. Um aspecto adicional de particular importância, neste contexto regulatório, diz respeito ao consentimento informado do indivíduo partici­pante no ensaio, já que este deve consentir na sua inclusão, por escrito e testemunhado, na sequência de completa e clara informação dos riscos e benefícios.
 
A necessidade desta extensa regulamentação que é claramente necessária para qualquer ensaio, torna-se particularmente relevante com os avanços mais recentes da terapêutica em particular no caso dos medicamentos biológicos, de grande utilidade mas ainda de grande novidade. Em particular recorde-se o caso de um doente que em 1999 faleceu no decurso de um ensaio com terapêutica genética em curso na Universidade de Pennsylvania nos Estados Unidos, bem como o caso de quatro voluntários que sofreram uma reacção adversa grave, quase fatal, durante um ensaio de fase I nos Hospital de Norhtwick Park no Reino Unido.
 
Os estudos clínicos são insubstituíveis para a documentação da segurança e eficácia de novos medicamentos que permite a sua eventual aprovação pelas autoridades regulatórias permitindo assim a sua comercialização e disponibilização a doentes. No entanto a segurança do indivíduo incluido nos ensaios tem, tal como já foi dito, de permanecer a principal preocupação do promotor e das autoridades.
 
 
Desenvolvimento de novos medicamentos: registo
 
Uma vez acumulada suficiente documentação sobre a eficácia e a segu­rança de um medicamento em desenvolvimento, o promotor tende a submeter um pedido de Autorização de Introdução no Mercado (AIM) que se destina a autorizar a comercialização do medicamento.
 
Os pedidos de AIM podem ser avaliados de uma forma centralizada pelo Comité dos Medicamentos para Uso Humano (CHMP). Os medicamentos mais complexos, nomeadamente os produtos biológicos, são obrigatóriamente avaliados por este processo. Recentemente este processo centralizado iniciou também a avaliação de medicamentos genéricos.
 
Um processo alternativo para a avaliação de medicamentos corresponde a um pedido de AIM inicial num único Estado Membro que é depois estendido, por Reconhecimento Mútuo, para outros Estados Membros, num ou mais momentos até, se assim for solicitado e possível, à obtenção da AIM na totalidade dos Estados Membros.
 
O processo de avaliação incide nos aspectos de qualidade, segurança pré-clínica e eficácia e segurança clínica. Quando todos os aspectos, relativos aos dados sobre o medicamento existentes no momemto da submissão do pedido de AIM, são avaliados e a relação risco benefício é positiva, o CHMP emite um parecer positivo que resulta numa autorização para a comercialiazção concedida pela Comissão Europeia. Um aspecto importante da AIM é representado pelo Resumo das Características do Medicamento. Este documento define as indicações e os limites para a utilização do medicamento, bem como fornece informações adicionais ao prescritor. Simultaneamente, um outro documento (Folheto Informativo) é igualmente aprovado, com a mesma infor­mação mas em linguagem adaptada, destinado aos doentes utilizadores do medicamento.
 
Na sequência da introdução no mercado o medicamento vai então ser largamente usado. Este uso, bem como estudos clínicos adicionais pós-comercialização, vão aumentar a informação existente sobre o medicamento. Esta informação, em particular sobre a segurança, permite uma constante avaliação da relação risco-benefício do medicamento. A vigilância dos aspectos de segurança, farmacovigilância, é pois de primordial importância e uma obri­gação de todos os intervenientes do uso do medicamento, desde o detentor da AIM ao utilizador, passando centralmente pelo prescritor. A todo o momento esta constante vigilância pode fornecer novos dados que invertam a relação risco-benefício levando a alterações do resumo de características do medicamento, com limitações do seu uso e, em casos extremos, à sua retirada do mercado.
 
 
Evolução do desenvolvimento e avaliação de medicamentos
 
Os medicamentos mais recentes representam significativos avanços tecnológicos utilizando frequentemente processos biológicos de produção. Estes produtos biológicos, grandes moléculas como são denominados muitas vezes, destinam-se a tratar necessidades médicas ainda não preenchidas. No entanto dada a sua complexidade de produção e avaliação, bem como muitas vezes um não completo esclarecimento do mecanismo de acção, os produtos biológicos representam importantes desafios no desenvolvimento e avaliação.
 
A capacidade crescente de interferência em complexos mecanismos biológicos, de forma, como referido, ainda não completamente esclarecida, representa uma enorme oportunidade ao lado de potenciais riscos. Esta é uma das áreas aonde devemos esperar significativos avanços no futuro próximo. Por outro lado, a utilização de medicamentos em simultâneo com dispositivos médicos, nomeadamente processos de localização do medicamento, será também uma área em reconhecido crescimento. A confirmar isso veja-se a recente proposta de legislação sobre terapias de ponta a ser considerada pela Comissão Europeia. Mais uma vez aqui o papel importante e de liderança da Agência do Medicamento, na promoção e subsequente avaliação de novas abordagens terapêuticas medicamentosas.
 
O medicamento, desde o uso primordial das plantas até aos recentes produtos biológicos muito tem contribuido para a saúde e bem-estar do ser humano. São claros os benefícios e reconhecem-se os riscos. Um processo conscencioso e muito regulamentado permite cada vez mais introduzir, para uso do doente, novos medicamentos com relações de risco-benefício positivo. O desenvolvimento de novos medicamentos é uma das actividades mais gratificantes por permitir soluções a importantes necessidades terapêuticas num complexo contexto de múltiplos factores e influências de carácter científico, social e económico.
 
 
Bibliografia
 
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Fletcher, A. J..; Edwards, L.D.; Fox, A. W.; Stonier, P. Principles and Practice of Pharmaceutical Medicine. 2002, John Wiley & Sons Eds.
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Regulamento (CE) Nº 726/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, 31 de Março de 2004, Jornal Oficial da União Europeia, 30.4.2004; L136/1-L136//33.
Directiva 2005/28/CE da Comissão de 8 de Abril de 2005, Jornal Oficial da União Europeia, 9.4.2005; L91/13-L91/19.
 
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*      Médico doutorado em Doenças Infecciosas. Fellow da Faculty of Pharmaceutical Medicine do Royal College of Phisicians (FFPM), em Londres, Reino Unido. Vice-Presidente da Global Medical Affairs for Inflammation, UCB, Bélgica.
 
 
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2006-10-22
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by CMG Armando Dias Correia