Nº 2597/2598 - Junho/Julho de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O caso dos bombardeiros Canberra e as relações luso-britânicas durante a guerra colonial

José Matos

No início dos anos de 1960, com as suas esquadrilhas de caça equipadas com aviões de origem americana (F-86F e F-84G), a Força Aérea Portuguesa (FAP) procurou adquirir novos aparelhos de combate para fazer face à guerra que tinha começado em Angola. Não podendo contar com a habitual ajuda de Washington, que não autorizava o envio de material militar para a África cedido no âmbito da NATO, Portugal procurou apoios em Londres e noutros aliados europeus com vista a compensar a falta de apoio norte-americano. Não são, pois, de estranhar, as tentativas que os portugueses fizeram para comprar aviões de combate britânicos, no período inicial da guerra colonial, numa altura em que os governos conservadores de Macmillan e de Douglas-Home estavam ainda disponíveis para vender aviões militares a Portugal. Esta investigação aborda principalmente o caso dos bombardeiros Canberra, que Portugal tentou comprar junto do seu velho aliado.

O primeiro problema que a FAP tentou resolver com o eclodir da guerra em África, em 1961, foi a falta de um bombardeiro táctico e de apoio próximo, que pudesse ser usado nos teatros de operações ultramarinos. Nesse sentido, nos primeiros meses de 1962, o Governo de Salazar manifesta junto das autoridades inglesas a intenção de adquirir seis bombardeiros britânicos Canberra, que era, na altura, o melhor bombardeiro que a Grã-Bretanha podia oferecer. O pedido português é analisado a 7 de Março de 1962, pelo Strategic Exports Committee (SEC), que tinha a responsabilidade de emitir um parecer antes de qualquer venda ser autorizada. No parecer que emite, esta entidade considera que os aviões podiam ser vendidos a Portugal, mas que o Governo português devia dar garantias de que os Canberra não seriam usados nas colónias africanas[1]. Como é óbvio, Londres não queria ver aviões de origem britânica a combater em África, numa guerra impopular, embora a verdadeira intenção da FAP fosse substituir os velhos bombardeiros PV-2 Harpoon que tinha destacado para Angola e Moçambique.

O modelo pedido para substituir o Harpoon era o Canberra B.Mk 2, uma das primeiras versões do bombardeiro britânico que, na altura, já não estava em produção, sendo apenas possível adquirir aparelhos usados pertencentes à Royal Air Force (RAF). O B.Mk 2 tinha entrado ao serviço da RAF em 1951, mas, no final dos anos 50, vários aviões desta versão estavam armazenados e disponíveis para venda a outros países. A compra de seis destes aviões pela FAP fora avaliada em 500 mil libras, segundo a proposta apresentada pela British Aircraft Corporation (BAC), um consórcio de empresas aeronáuticas inglesas, onde estava a English Electric Aviation, que fabricava os Canberra[2]. Para Londres a venda tinha duas grandes vantagens: em primeiro lugar, possibilitaria qualquer concessão de facilidades de trânsito de que a RAF dispunha na ilha do Sal, em Cabo Verde, e também nos Açores, e que eram importantes para as capacidades expedicionárias britânicas. Em segundo, amenizava a crispação portuguesa contra o Reino Unido, depois da invasão indiana de Goa, em que Londres não tinha feito nada para defender as posições portuguesas[3].

 

Uma aliança anacrónica

No entanto, a questão dos Canberra surgia numa altura em que Londres manifestava algumas reservas quanto ao fornecimento de material militar a Portugal. Em Junho de 1961, o primeiro-ministro conservador Harold Macmillan tinha feito uma declaração na Casa dos Comuns em que considerava razoável o fornecimento de equipamento militar a Portugal no âmbito da NATO, mas relativamente a equipamento para ser usado em África todas as vendas estavam suspensas[4]. Além desta divergência com Lisboa, o Governo de Macmillian não tinha ajudado militarmente Portugal quando a Índia invadiu e anexou a Goa portuguesa, em Dezembro de 1961, o que foi encarado pelo Governo de Salazar como uma quebra dos tratados de defesa mútua entre Portugal e o Reino Unido, que previam que, em caso de agressão externa às colónias portuguesas, caberia aos ingleses defender os portugueses. Num discurso na Assembleia Nacional, a 3 de Janeiro de 1962, o próprio Salazar acusava Londres de se ter eximido “ao cumprimento de obrigações certas que tiveram a devida contrapartida em vantagens concedidas por Portugal ”[5].

O problema é que a diplomacia britânica considerava a aliança anglo-portuguesa ultrapassada perante a realidade da época. Num memorando, datado de 10 de Abril de 1962, e dirigido ao Gabinete do primeiro-ministro britânico, o Foreign Office considerava que a relação com Lisboa tinha sofrido devido à invasão indiana de Goa, mas que a obrigação de defender as colónias portuguesas não era conciliável com a visão britânica sobre o problema colonial português. Na opinião do Foreign Office, qualquer compromisso a esse nível seria impopular, não só na opinião pública como também junto das Nações Unidas. Para a diplomacia britânica a questão era “como nos livramos com elegância do nosso compromisso anacrónico e sem provocar reacções hostis em Lisboa”.

No documento em questão, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Lorde Home, defendia que “numa primeira instância não devemos fazer mais do que abordar o governo português de um modo informal e amigável com o propósito de discutir com eles como poderemos ultrapassar as dificuldades presentes nas relações Anglo-Portuguesas.” Ou seja, explicar como as circunstâncias complicavam as possibilidades de os ingleses honrarem as suas obrigações políticas e militares em relação às colónias portuguesas. Mesmo assim, acreditava que o Reino Unido deveria reafirmar o seu compromisso de defender a metrópole portuguesa (que incluía os Açores e a Madeira) e também Cabo Verde. Para Home, Londres não podia prescindir da aliança que tinha com Portugal, pois os ingleses tinham facilidades de trânsito e escala em Cabo Verde e nos Açores, que eram importantes no caso de qualquer intervenção britânica na África Meridional. Neste seguimento,
o chefe da diplomacia inglesa mostra-se disponível para conversar com Franco Nogueira durante o Conselho da NATO de Atenas, em Maio, de forma a explicar as dificuldades que Londres tinha em cumprir os seus compromissos em relação à defesa das colónias portuguesas[6]. Não temos nas fontes portuguesas qualquer informação sobre o teor deste encontro, nem Franco Nogueira faz no seu diário qualquer referência a esta conversa com Home durante a reunião da NATO, na capital grega, no entanto, sabemos pelas fontes inglesas o resultado deste contacto. Nogueira mostrou pouca compreensão pelas dificuldades britânicas e nenhum interesse por uma possível revisão dos tratados luso-britânicos, embora não tenha excluído a hipótese do tema ser discutido pelos canais diplomáticos[7].

 

As restrições inglesas

Por essa altura, o dossier dos Canberra já tinha sido discutido no Gabinete de Macmillan, num Conselho de Ministros, a 29 de Março de 1962, onde os governantes ingleses tinham analisado um documento do Secretário de Estado, Lorde Home, sobre a possível venda dos jactos ingleses a Portugal em que era defendido que a venda devia ser autorizada, desde que os aviões não fossem empregues em África, a não ser em caso de agressão externa. Na opinião de Lorde Home a venda dos bombardeiros era um bom negócio para Londres, embora reconhecesse que poderia chocar com a opinião pública britânica, que antipatizava bastante com a posição portuguesa relativa às suas possessões ultramarinas.

Apesar de se assumir que o regime de Salazar quereria o Canberraem parte por motivos de prestígio” e que os mesmos não eram necessários no âmbito dos compromissos que Portugal tinha na NATO, a venda deveria ser levada a cabo apenas e só se os portugueses assumissem que usariam os aviões em caso de agressão externa e não para atacar os movimentos de guerrilha que combatiam nos territórios ultramarinos. No seguimento desta reunião, Lorde Home fica mandatado para verificar que garantias serão dadas pelos portugueses sobre o uso final dos Canberra [8].

 

O apoio do Foreign Office

Alguns meses depois, a 31 de Outubro, o governante britânico envia para o primeiro-ministro um documento acerca dos avanços feitos nesta frente. Home dá conta de “que parece bastante certo que as autoridades portuguesas estejam no mínimo dispostas a fazer uma declaração voluntária sobre o uso previsto da aeronave quando colocarem um pedido de aquisição firme”. No entanto, considera que não se deveria “aderir rigidamente à fórmula de que as aeronaves não seriam usadas ​em África”, pois podia ser difícil obter dos portugueses uma declaração tão categórica e podiam assim perder o contrato. Para o Secretário de Estado, bastava que os portugueses assumissem que não tinham intenção de usar os Canberra em África, a não ser numa situação de agressão externa e que isso chegava para Londres.

No mesmo documento, o governante inglês avançava também com a possibilidade da encomenda poder subir de seis para vinte e cinco bombardeiros. Um pouco mais céptico era o representante da BAC em Portugal, que admitia que a encomenda portuguesa não iria ultrapassar as dezasseis aeronaves. Não obstante, Lorde Home achava melhor que “os Portugueses dividissem a encomenda em duas ou mais partes” e propunha que a “British Aircraft Corporation deveria ser convidada a organizar isso.” Em suma, uma encomenda de tal magnitude seria não só favorável por razões comerciais, mas também funcionaria como ajuda na melhoria das relações anglo-portugueses[9].

É interessante notar que, ao longo deste processo, o Foreign Office apoia sempre a venda dos aviões a Portugal e alimenta mesmo alguma esperança de que estes seriam apenas utilizados na Europa, no âmbito da NATO, pois, segundo o Foreign Office, os Canberra seriam impróprios “para o voo a baixa altitude” que seria requerido no caso de operações em África[10]. Não deixa de ser curiosa esta observação do Foreign Office, pois, de facto, o Canberra tinha sido concebido para operações a grande altitude[11]. No entanto, os próprios britânicos já tinham utilizado o avião em operações de contraguerrilha a baixa altitude durante a guerra na Malásia contra a guerrilha comunista. Na fase final da guerra, entre 1955 e 1959, seis esquadrões de Canberra da RAF tinham passado pela Malásia actuando contra os guerrilheiros do Exército de Libertação das Raças Malaias (ELMR) do Partido Comunista Malaio (PCM). Em comparação com os velhos bombardeiros Avro Lincoln australianos, que também actuavam no conflito, os Canberra eram mais difíceis de manter e de operar na selva, mas mais rápidos em termos de reacção[12]. Neste contexto, a ressalva do Foreign Office, destinava-se apenas a convencer outros membros do Governo britânico, mais reticentes quanto à venda dos Canberra a Portugal.

Com efeito, no próprio Governo de Macmillan, o Gabinete da Comunidade Britânica – Commonwealth Relations Office (CRO) – desaconselhava o fornecimento de armas a regimes vistos como impopulares, como era o caso de Portugal ou da África do Sul. Em Junho de 1963, o Secretário de Estado da Commonwealth informa o primeiro-ministro de uma reunião de embaixadores da África tropical em que o problema do fornecimento de armas a Portugal tinha sido abordado. Apesar da saída portuguesa de Angola e Moçambique ser vista como problemática, devido ao caos que podia provocar, a venda de armas a Portugal era considerada contraproducente pelas críticas que podia gerar no seio das Nações Unidas[13].

No entanto, os contactos para a venda dos aviões continuam e, a 9 de Março de 1963, o embaixador britânico janta em Lisboa com o ministro português da Defesa, general Gomes do Araújo e a questão dos Canberra é discutida. Archibald Ross questiona o ministro quanto ao estacionamento dos aviões em Portugal e Gomes do Araújo confirma que não é intenção do Governo português usar os aparelhos em África, a não ser em caso de “uma agressão externa massiva”, cenário que o ministro considera pouco provável. Gomes do Araújo refere ainda que os Canberra serão alocados à 1.ª Região Aérea, com comando em Lisboa, abrangendo Portugal continental, Açores, Madeira, Guiné Portuguesa e Cabo Verde e que ficarão estacionados nos Açores[14]. A garantia dada pelo governante português parece ser suficiente para Londres, um facto que é sublinhado, pouco tempo depois, num memorando de K. D. Jamieson, um alto funcionário do Foreign Office, que salienta que a garantia dada pelo ministro é um forte contra-argumento contra qualquer crítica que possa surgir devido à venda dos bombardeiros ingleses a Portugal[15]. Jamieson dá conta ainda dos receios do CRO de que os portugueses possam interpretar “agressão externa” como a ajuda externa prestada aos guerrilheiros angolanos, no entanto, o diplomata inglês considera que a expressão usada por Gomes do Araújo “agressão externa massiva” dissipa qualquer dúvida quanto a este ponto. Por fim, Jamieson refere que a English Electric Aviation espera começar a elaborar o contrato a 3 de Abril, sendo necessária uma resposta do primeiro-ministro até essa data[16]. Neste seguimento, Sir Edward Heath, que ocupa as funções de Lord Privy Seal, emite um parecer, a 2 de Abril, em que também considera que as garantias dadas por Gomes do Araújo são suficientes para fazer face a críticas que possam surgir e que deve ser concedida a licença de exportação, um parecer que merece a concordância do primeiro-ministro Macmillan[17].

 

Visita à Rodésia

Em Lisboa, a embaixada britânica vai acompanhando de perto os contactos entre a English Electric Aviation e as autoridades portuguesas e, a 22 de Maio, reporta para K. D. Jamieson que os portugueses não estão satisfeitos com o preço dos aviões, pois descobriram que os Canberra vendidos à Rodésia, em 1959, custaram um terço do preço proposto a Portugal[18]. Por essa altura, uma comissão de técnicos portugueses tinha visitado a Força Aérea Rodesiana para ver os Canberra B.Mk 2, que a Rodésia também usava, e tinha recebido aí a informação de que os aparelhos rodesianos tinham custado sessenta mil libras por avião, enquanto o negócio proposto aos portugueses era de cento e oitenta e três mil libras por avião. Esta informação cria um entrave nas negociações e leva a uma troca de correspondência entre altos funcionários britânicos dos ministérios da Aviação e da Defesa de forma a esclarecer o problema. Na opinião do Ministério da Aviação, os portugueses deviam ser informados de que o acordo com os rodesianos tinha sido feito em condições especiais no âmbito dos planos de defesa da Commonwealth e que o contrato assinado era de um milhão oitocentas e vinte e oito libras, o que correspondia a cerca de cem mil libras por avião, dado que os rodesianos tinham comprado dezoito aparelhos[19]. Opinião diferente tinha o Ministério da Defesa, que considerava que a revelação do contrato com os rodesianos só iria agravar as suspeições de Lisboa de que os portugueses estavam a ser sobrecarregados no preço e que o contrato com a Rodésia dizia apenas respeito à Grã-Bretanha e aos rodesianos. No entanto, o funcionário do Ministério da Defesa considerava que os portugueses deviam ser informados de que o valor de sessenta mil libras por avião não era verdadeiro e que o acordo com a Rodésia era um acordo governo a governo, feito entre membros da Comunidade Britânica, o que dava algumas vantagens à Rodésia[20]. Em finais de Junho, a English Electric Aviation recebe finalmente instruções da Divisão de Exportações e Indústria Electrónica do Ministério da Aviação para abordar o Governo de Salazar. Além dos argumentos já avançados na discussão entre os ministérios da Aviação e da Defesa, a companhia britânica devia também fazer ver ao Governo de Lisboa que os aviões vendidos à Rodésia só tinham tido uma revisão limitada pela RAF e que não tinham tido uma revisão geral do tipo “zero horas”, ao contrário dos Canberra destinados a Portugal, o que teria mais custos. Nesta revisão geral, que seria incluída no contrato, os quinze aviões portugueses seriam submetidos a uma análise detalhada em termos estruturais de forma a detectar falhas ou fadiga do material, sendo depois reparadas ou substituídas todas as partes sensíveis que determinam a longevidade da aeronave, o que aumentaria de forma considerável o potencial de voo dos aviões[21].

Entretanto, um novo factor perturba as negociações. A 31 de Julho de 1963, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU (S/5380) apelava a todos os estados-membros que deixassem de fornecer equipamento militar a Portugal para fins repressivos. Esta resolução provoca dúvidas não só no Governo português, que vai adiando a compra, como também no próprio fabricante, que questiona o Foreign Office quanto à possibilidade da venda poder ainda ser efectuada. Em resposta às dúvidas levantadas, o chefe do Departamento Central do Foreign Office, Sir Derek Dodson, elabora um memorando em que refere que a resolução da ONU, embora ambígua, podia ser interpretada como um embargo a armas destinadas às províncias ultramarinas portuguesas e que tal resolução não se aplicaria aos Canberra, que ficariam estacionados na metrópole, conforme tinha garantido o ministro português da Defesa ao embaixador britânico em Lisboa, uns meses antes. Dodson conclui, por isso, que se um contrato fosse assinado, a licença de exportação deveria ser concedida[22]. Em suma, podemos concluir que, apesar da resolução da ONU (na qual o Reino Unido se tinha abstido), o Governo de Macmillan continuava interessado em vender os aviões a Portugal. Esta posição mantem-se mesmo com a mudança do primeiro-ministro Macmillan, em Outubro de 1963, que renuncia ao cargo por razões de saúde, sendo substituído por Lorde Home.

A opção pelo B-26

Todavia, no interior do Governo português e da FAP, o negócio dos Canberra começava a perder interesse devido ao preço apresentado. Num relatório de 5 de Setembro de 1964, enviado pelo Secretário de Estado da Aeronáutica para Salazar, pode ler-se que “a ideia teve de ser abandonada por se tratar de um avião extraordinariamente caro e ser muito dispendiosa a sua utilização e manutenção”. Por outras palavras, o preço apresentado pelos ingleses revelara-se demasiado elevado e o Governo português acabava por recuar na proposta. Nesse mesmo relatório era igualmente referido que “o Estado Maior da Força Aérea, depois de estudo pormenorizado do assunto”, tinha concluído que o avião de tipo clássico que melhor poderia satisfazer necessidades da Força Aérea era o bombardeiro americano B-26B Invader “tanto mais que a Força Aérea dos Estados Unidos o tem, de novo, em adaptação para luta contra o terrorismo[23]. Seguindo esta linha, a Força Aérea acabaria por comprar de forma encoberta sete bombardeiros B-26B, mais primitivos do que os Canberra, mas mais baratos para comprar e manter, e robustos o suficiente para serem amplamente utilizados nos teatros de operações ultramarinos.

 

Nova manifestação de interesse

No entanto, o interesse português pelos Canberra não desaparece e ressurge em 1968. Numa conversa entre o Secretário de Estado da Aeronáutica, Brigadeiro Alberto de Oliveira, e o representante da BAC em Portugal, John Stilwell, o governante português refere que a FAP pode estar interessada no Canberra, mas na versão de longo alcance. Oliveira considera que a Força Aérea precisa de ter em prontidão uma esquadrilha de ataque baseada em Portugal continental, que possa facilmente ser empenhada em África, em caso de agressão externa, sendo necessária uma aeronave com um longo raio de alcance[24]. O teor desta conversa é transmitido, em Abril de 1968, ao Ministério da Tecnologia em Londres e também ao da Defesa, pelo adido militar da embaixada britânica em Lisboa, no sentido de saber precisamente qual era a política do Governo inglês em relação à venda de aviões a Portugal. O adido militar considera que seria uma infelicidade que a Grã-Bretanha perdesse a oportunidade de vender equipamento de defesa a Portugal por causa de uma qualquer restrição[25]. A própria BAC também contacta o Ministério da Tecnologia para saber em que termos pode abordar o Governo português. Neste seguimento, o Ministério da Tecnologia contacta o Departamento de Defesa do Foreign Office dando conta das intenções portuguesas em comprar bombardeiros Canberra de longo alcance (por exemplo, na versão Mk6 ou Mk8) e que o custo de cada avião poderá ascender às trezentas e cinquenta mil libras, mas necessita saber se uma futura venda será autorizada, tudo isto na perspectiva de que os Canberra ficarão estacionados em Portugal[26]. Como a questão tinha partido de Lisboa, a resposta é dada para a embaixada britânica na capital portuguesa, por um alto funcionário do Departamento Central do Foreign Office, Robin S. Gorham, que considera pouco provável que o Governo britânico concorde com tal venda, pois desconfia que os aviões serão usados nos territórios africanos. No entanto, refere que o interesse português não deve ser descartado e que a embaixada deve tentar saber mais pormenores sobre as intenções portuguesas, nomeadamente, se existe alguma ligação à Rodésia, que também usava o avião e que estava a braços com problemas de sobressalentes, depois de ter declarado a independência unilateral em 1965, não reconhecida pela Grã-Bretanha[27]. Na resposta, a embaixada britânica informa que não existe qualquer garantia que os portugueses possam dar quanto à reexportação dos aviões para outro estado (ex: Rodésia) e que, aparentemente, os Canberra, ficariam estacionados na metrópole, embora tenha a percepção dos problemas que esta venda podia acarretar[28]. Em finais de Julho de 1968, John Snodgrass, diplomata do Foreign Office, responde dando conta que o assunto foi discutido a nível interno e confirma o que Gorham já tinha dito antes, ou seja, que era muito difícil uma decisão ministerial favorável à venda dos aviões a Portugal. Do ponto de vista de Snodgrass, os portugueses podiam usar facilmente o argumento da “agressão externa” para empenhar os Canberra em África, devido ao facto de os movimentos de guerrilha em Angola e Moçambique estarem baseados em países vizinhos e receberem um forte apoio destes, o que podia ser encarado como uma “agressão externa”. Existia ainda a hipótese de justificar a venda dos aviões no âmbito da NATO, todavia, Portugal nunca tinha requerido no contexto da Aliança Atlântica qualquer bombardeiro semelhante ao Canberra. Em síntese, o diplomata britânico via com grande dificuldade uma justificação aceitável pelo Governo de Londres para que a venda fosse autorizada, além disso, existia o risco de algum material sobressalente ser fornecido à Rodésia através de Portugal[29]. Embora, no passado, os governos conservadores de Macmillan e de Douglas-Home tivessem sido mais compreensivos em relação à venda dos Canberra a Portugal, era agora óbvio que o novo Governo trabalhista do primeiro-ministro Harold Wilson não estava minimamente interessado em vender qualquer tipo de equipamento militar a Portugal, muito menos bombardeiros que poderiam vir a ser usados em África.

 

 


[1]    Memorando do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, “Supply of Canberra Bombers for Portugal”, 19 de Março de 1962, National Archives, CP (62) 54, CAB/129/109.

[2]    Idem.

[3]    Idem.

[4]    Idem.

[5]    Ministério dos Negócios Estrangeiros, “Vinte Anos de Defesa do Estado Português da Índia (1947-1967)”, volume IV, 1968, n.º 1528, pp. 378-393.

[6]    Memorando do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, “The Anglo-Portuguese Alliance”, 10 de Abril de 1962, National Archives, CP (62) 60, CAB/129/109.

[7]    Reunião do Gabinete do primeiro-ministro de 10 de Maio de 1962, National Archives, CC (62) 32, CAB/128/36.

[8]    Reunião do Gabinete do primeiro-ministro de 29 de Março de 1962, National Archives, CC 24 (62), CAB/128/36.

[9]    Memorando do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, “Supply of Canberra Bombers for Portugal”, 31 de Outubro de 1962, National Archives, CP (62) 173, CAB/129/111.

[10]    Memorando CP (62) 54, CAB/129/109.

[11]    DELVE, Ken et al. English Electric Canberra, Midland Counties Publications, 1992, p. 10.

[12]    DELVE et al. op cit., pp. 98-99.

[13]    Memorando do Secretário de Estado da Commonwealth e do Secretário de Estado das Colónias, “Tropical Africa”, 20 de Junho de 1963, National Archives, CP (63) 106, CAB/129/114.

[14]    Carta da Embaixada Britânica em Lisboa para o Foreign Office, 13 de Março de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[15]    Memorando de K.D. Jamieson, Foreign Office, “Canberras for Portugal”, 29 de Março de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[16]    Idem.

[17]    Minuta de Lord Privy Seal, “Canberras for Portugal”, 2 de Abril de 1963, e resposta do primeiro-ministro de 5 de Abril, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[18]    Telegrama da Embaixada Britânica em Lisboa para K.D. Jamieson, Foreign Office, 22 de Maio de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[19]    Carta do Ministério da Aviação para o Ministério da Defesa, “Supply of Canberras to Portugal”, 30 de Maio de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[20]    Carta do Ministério da Defesa para o Ministério da Aviação, 5 de Junho de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[21]    Carta de G.McD. Wilson, Secretário Assistente da Divisão de Exportações e Indústria Electrónica do Ministério da Aviação para A.C. Duguid da English Electric Aviation, 25 de Junho de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[22]    Memorando de D.S.L. Dodson “Canberras for Portugal”, 15 de Agosto de 1963, National Archives, CP (63) FO 371/169461.

[23]    Informação nº 1380 do Secretário de Estado da Aeronáutica para o Presidente do Conselho, 5 de Setembro de 1964, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH).

[24]    Carta do Adido Militar da Embaixada Britânica em Lisboa para o Ministério da Tecnologia, “Canberra Aircraft and the Portuguese Air Force”, 17 de Abril de 1968, National Archives, FO 179/621.

[25]    Idem.

[26]    Carta do Ministério da Tecnologia para o Departamento de Defesa do Foreign Office, “Canberra-Portugal”, 2 de Maio de 1968, National Archives, FO 179/620.

[27]    Carta do Departamento Central do Foreign Office para a Embaixada Britânica em Lisboa, “Supply of Canberra Aircraft to Portugal”, 8 de Maio de 1968, National Archives, FO 179/620.

[28]    Carta da Embaixada Britânica em Lisboa para o Departamento Central do Foreign Office, “Canberra Aircraft for Portugal”, 15 de Maio de 1968, National Archives, FO 179/620.

[29]    Carta do Foreign Office para a Embaixada Britânica em Lisboa, “Canberra Aircraft for Portugal”, 26 de Julho 1968, National Archives, FO 179/620.

 

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