Nº 2607 - Abril de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Detenção e prisão de militares
Coronel
Carlos Manuel Gervásio Branco

Introdução

Nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP) todos tem direito à liberdade e à segurança e ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória[1].

Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade nalgumas situações taxativamente previstas, entre as quais se encontram a detenção e a prisão como adiante veremos.

Com recurso ao Código do Processo Penal (CPP) e ao Código Penal (CP) começamos por fazer uma breve diferenciação entre as figuras da “detenção” e da “prisão” no âmbito penal, para, em momento posterior, analisar a sua aplicação aos militares que, embora como os demais cidadãos possam estar sujeitos a este tipo de medidas, nalgumas situações e em certos casos mediante regras e formalismos diferentes e específicos.

Assim, a “detenção” de uma pessoa tem por finalidade[2]:

– a sua apresentação, a julgamento sob forma sumária no prazo máximo de quarenta e oito horas;

– para ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou ainda

– para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual.

Já a “prisão” pode assumir duas formas distintas quanto ao seu fundamento: a de “prisão preventiva”[3], ou seja, efectuada antes de uma condenação; e a de “prisão efectiva”[4], como pena aplicada após o julgamento.

Quanto à “prisão preventiva” que, de acordo com a Constituição, tem natureza excepcional, pode ser aplicada se se considerarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coacção menos gravosas, e desde que haja fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de “prisão”, de máximo superior a cinco anos, ou, no caso de terrorismo ou criminalidade altamente organizada, de três anos; ou se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.

E, por último, a “prisão efectiva” como medida punitiva que visa a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes, bem com a futura reinserção do agente na sociedade, terá a duração máxima de 25 anos.

 

Aplicação aos Militares

Feita esta breve abordagem aos conceitos da “detenção” e da “prisão”, no âmbito do direito penal, passemos à sua aplicação aos militares que, realce-se, possuem uma natureza própria e distinta da dos demais agentes e funcionários do Estado, o que justifica algumas especificidades na sua execução.

A condição do militar[5] é distinta, desde logo, pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra; pela permanente disponibilidade para o serviço, seja em termos temporais seja em termos de mobilidade territorial, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais do militar e da sua família; pela restrição, constitucionalmente prevista, de alguns direitos e liberdades; pela fixação de princípios deontológicos e éticos próprios em matérias muito importantes e sensíveis, como sejam o caso da hierarquia, subordinação e obediência, exercício do poder de autoridade, desenvolvimento de carreiras, treino e formação profissional.

Todavia, uma nota para referir que a pena disciplinar de “detenção” que constava no Regulamento de Disciplina Militar (RDM), até 2009, passou a designar-se por “proibição de saída”[6] e, tal como sucedia com a anterior designação, consiste na permanência continuada do militar punido no aquartelamento ou navio a que pertença, durante o seu cumprimento.

Para além daquela pena disciplinar, aos militares pode ainda ser aplicado um outro tipo de prisão fora do âmbito penal. Trata-se da denominada “prisão disciplinar”[7], em consequência de uma infracção disciplinar que, tal como a “privação de saída”, é uma medida disciplinar no âmbito do RDM[8] com pleno acolhimento constitucional, como expressamente consta na alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.

Retomando a questão das penas de “detenção” e “prisão” no âmbito criminal, façamos agora uma breve retrospectiva da situação para constatar como se regiam estes institutos, quando os militares eram possuidores de um foro especial, ou seja, até à aprovação da Constituição de 1976 e, com maior desenvolvimento, após a revisão de 1997.

Nos termos do Estatuto do Oficial do Exército (EOE)[9] de 1971, o oficial nas situações de activo, reserva e reforma só podia aceitar a intimação de prisão quando emanada de autoridade militar competente. Quando lhe fosse dada ordem de prisão por autoridade civil, o oficial deveria revelar imediatamente a sua identidade e colocar-se à disposição da autoridade militar, comunicando-lhe a ocorrência. Nos crimes a que correspondia pena que, segundo o Código de Processo Penal, não admita caução, nos crimes consumados, frustrados ou tentados contra a segurança do Estado, e nos casos de flagrante delito a que correspondia pena maior, o oficial podia ser detido por autoridade civil, mas esta deve promover a sua imediata entrega à autoridade militar.

Como antes referido, a Constituição de 1976 veio eliminar o foro especial militar para os militares e, em consequência, o regime previsto no EOE foi alterado pela Lei n.º 58/77, de 5 de Agosto, o que constituiu uma transformação profunda da situação até então vigente:

ARTIGO 1.º

1. As penas de prisão aplicadas pelos tribunais comuns a militares dos quadros permanentes, em qualquer situação, e a outros militares ou agentes das forças militarizadas, enquanto na efectividade do serviço, e que não tenham por efeito a sua expulsão das forças armadas ou militarizadas, serão substituídas, na própria sentença que as aplicar:

    a)  pena de prisão até um ano, pela de prisão militar por igual tempo;

    b)  A pena de prisão por tempo superior a um ano, por igual tempo de presídio militar.

2. As penas militares aplicadas nos termos do número anterior serão cumpridas nos respectivos estabelecimentos penais militares e em conformidade com os respectivos regulamentos.

ARTIGO 2.º

1. Fora do caso de flagrante delito, a captura de militares ou agentes das forças militarizadas no activo ou na efectividade de serviço deverá ser requisitada aos seus superiores hierárquicos pela autoridade judiciária ou tribunal competente.

2. Os militares ou agentes das forças militarizadas detidos ou presos preventivamente permanecerão nas prisões militares, à ordem das autoridades civis competentes.

3. Os superiores hierárquicos referidos no n.º 1 serão responsáveis, sob pena de desobediência, pela apresentação oportuna dos militares ou agentes das forças militarizadas detidos ou presos nas condições do número anterior, perante as autoridades civis competentes, sempre que estas exijam a sua presença.

Embora o foro especial tenha sido eliminado, mantiveram-se, até hoje, algumas regras específicas que reproduzem em parte o que dispunha a citada Lei de 1977 e que foram transpostas para os actuais estatutos militares.

Actualmente, de acordo com o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR)[10] e com o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR)[11], fora de flagrante delito, a detenção de militares na situação de activo ou na efectividade de serviço é requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias ou de polícia criminal competentes nos termos previstos na legislação processual penal aplicável.

Já os militares detidos ou presos preventivamente mantêm-se em prisão militar à ordem do tribunal ou autoridade competente, nos termos previstos na legislação processual penal aplicável.

Da comparação entre os EOE de 1971 e a Lei n.º 55/77, com o EMFAR actualmente em vigor, pode verificar-se que as principais diferenças respeitam ao facto do oficial deixar de só poder aceitar intimação de prisão quando emanada de autoridade militar competente, de em situações de flagrante delito, as autoridades civis deixarem de ter que fazer a sua entrega imediata às autoridades militares e de, aquando da condenação em pena de prisão por tribunais comuns (aqui leia-se por crimes comuns), a mesma deixar de ter que ser cumprida em estabelecimento penal militar (por omissão do EMFAR).

Estas diferenças resultam fundamentalmente do facto de, após a eliminação do foro especial, não terem sido acauteladas certas situações em sede estatutária.

É que, enquanto vigorou o foro especial para os militares, a generalidade das normas relativas ao direito processual e penal militares, assim como as normas com elas estatutariamente conexas, constavam nos sucessivos códigos de justiça militar que foram sempre oscilando entre o foro pessoal e o material, embora este último muito abrangente, ao contrário do que sucede actualmente com o Código de Justiça Militar (CJM) de 2003[12], que se restringe aos crimes estritamente militares e que, por essa razão, deixou de fora muitas das regras e procedimentos cuja justificação se mantêm, mas que deveriam constar nos estatutos dos militares, facto que acarreta fundadas dúvidas e algumas lacunas.

A este propósito, abro aqui um parênteses para verificar como o Estatuto dos Magistrados Judiciais[13] trata estas questões:

“Artigo 15.º Foro próprio 1 – Os magistrados judiciais gozam de foro próprio, nos termos do número seguinte. 2 – O foro competente para o inquérito, a instrução e o julgamento dos magistrados judiciais por infracção penal, bem como para os recursos em matéria contra-ordenacional, é o tribunal de categoria imediatamente superior àquela em que se encontra colocado o magistrado, sendo para os juízes do Supremo Tribunal de Justiça este último tribunal.

Artigo 16.º Prisão preventiva 1 – Os magistrados judiciais não podem ser presos ou detidos antes de ser proferido despacho que designe dia para julgamento relativamente a acusação contra si deduzida, salvo em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos. 2 – Em caso de detenção ou prisão, o magistrado judicial é imediatamente apresentado à autoridade judiciária competente. 3 – O cumprimento da prisão preventiva e das penas privativas de liberdade pelos magistrados judiciais ocorrerá em estabelecimento prisional comum, em regime de separação dos restantes detidos ou presos”.

Para além das regras estatutárias militares antes mencionadas, também o CJM contém normas próprias relativas ao cumprimento das penas[14], donde se extrai que a sua execução será efectuada em estabelecimento prisional militar e que a mesma será regulada em legislação própria, na qual serão fixados os deveres e direitos dos reclusos.

Contudo, será bom relembrar que o actual CJM só se aplica aos crimes estritamente militares, o que, numa leitura estrita, nos poderia levar a questionar se o cumprimento de penas de prisão por crimes comuns também se enquadraria neste normativo.

Será talvez por cautela a este respeito que o EMGNR, ao contrário do EMFAR[15], no artigo sobre detenção e prisão de militares da Guarda[16], não se limita às questões da “detenção” e da “prisão preventiva” e alarga-as à prisão em cumprimento de penas e outras medidas privativas da liberdade “que deve ser assegurado em instalações próprias da Guarda ou das Forças Armadas”.

Ainda quanto aos crimes estritamente militares, mencionar que, em caso de flagrante delito, qualquer oficial deve proceder à detenção do arguido[17].

Por outro lado, também o RDM[18] veio aflorar, sem no entanto ir tão longe como o anterior EOE, o dever de comunicação com os superiores, sempre que um militar seja detido por qualquer autoridade, devendo aquelas facultarem todos os meios para o efeito.

Resta saber se as autoridades civis têm conhecimento desta norma do RDM ou se teria sido melhor que constasse no EMFAR.

Embora não se insira nos conceitos da detenção e da prisão, a “obrigação de apresentações periódicas”, prevista no artigo 198.º do Código do Processo Penal[19] faz igualmente parte do elenco das medidas de coacção e estas também revestem uma especificidade própria quando impostas a militares na efectividade de serviço, conforme se pode comprovar pela leitura do artigo 121.º do CJM:

“Os militares na efectividade de serviço cumprem a obrigação de apresentação periódica que lhes tenha sido imposta apresentando-se ao comandante, director ou chefe da unidade, estabelecimento ou órgão em que prestem serviço, cabendo a este último manter informados os competentes órgãos de polícia criminal ou autoridades judiciárias”.

Uma outra diferenciação relativamente a normas processuais comuns é a que se refere às notificações[20] para comparência em tribunal ou perante o Ministério Público, a Polícia Judiciária Militar (PJM) ou para a prática de qualquer acto processual que são feitas nos termos do Código de Processo Penal com certas especificidades.

Assim, as notificações aos militares na efectividade de serviço nas Forças Armadas e outras forças militares são requisitadas ao comandante, director ou chefe da unidade, estabelecimento ou órgão em que o militar notificando preste serviço e efectuadas na pessoa do notificando por aquele ou por quem o substitua ou ainda por militar de maior graduação ou antiguidade para o efeito designado; não se conseguindo, é lavrado auto da ocorrência e remetido à entidade que emitiu a notificação, com exposição fundamentada das diligências efectuadas e dos motivos que as frustraram.

Pode questionar-se se estes dois normativos, por constarem do CJM, apenas respeitam aos crimes estritamente militares e às diligências com eles conexas ou se, pelo contrário, se aplicam também a diligências e situações decorrentes de processos de crime comum, justificados pela condição militar e pela natureza própria das Forças Armadas e outras forças militares, como pessoalmente defendo.

Embora o CJM, no seu artigo 1.º, diga expressamente que o Código se aplica aos crimes estritamente militares, inclino-me para a segunda solução, porquanto, nos termos do seu artigo 15.º[21], o cumprimento da pena de prisão imposta a militares é efectuada em estabelecimento penal militar, sem que, até hoje, tenha sido questionada a sua aplicação também a penas decorrentes de crimes comuns. Até porque, visando a pena a reintegração do militar na sociedade, o seu cumprimento em estabelecimento prisional militar facilita a sua reintegração profissional como militar.

Da mesma maneira que se preconiza uma forma diferenciada de execução da pena de prisão imposta a militares, por maioria de razão também parece justificar-se uma diferenciação na medida de coacção “obrigação de apresentações periódicas”[22] que seja efectuada na respectiva unidade ou órgão militar onde o militar presta serviço e não em qualquer dependência policial ou esquadra de polícia.

Também no que respeita às notificações, a justificação afigura-se semelhante, ao que acresce que, nos termos do CPP, também os funcionários públicos podem ser notificados nos respectivos serviços[23] e porque o cumprimento dos deveres inerentes às funções exercidas pelo militar notificado terem de ficar assegurados.

E é precisamente na decorrência da conjugação do dispositivo relativo às notificações com os normativos constantes no EMFAR e no EMGNR antes referidos e cuja justificação se encontra na especificidade da Instituição Militar e nos seus princípios enformadores, como sejam os da hierarquia, da disciplina e da coesão, que se explica que os “mandados de detenção” emitidos contra militares na efectividade de serviço sejam formalmente cumpridos por militares hierarquicamente superiores aos visados, embora não se encontre nenhuma norma que expressamente o explicite.

Mas é, sobretudo, a partir deste ponto que parece existir alguma indefinição quanto aos procedimentos subsequentes, designadamente as escoltas que deverão acompanhar os visados já sob detenção à presença do juiz, bem como, caso a “detenção” se mantenha ou a “prisão preventiva” seja decretada, as referentes ao seu acompanhamento ao estabelecimento prisional, que, recorde-se, terá que ser o militar.

É que, ao contrário do que sucede com todos os procedimentos anteriores à formalização da detenção fora do flagrante delito e bem assim no que concerne ao cumprimento de penas de prisão por parte de militares das Forças Armadas e da GNR, como anteriormente vimos, que estão clarificados em letra de lei, o processo e as regras relativas à formalização da ordem de prisão e as escoltas e outras diligências decorrentes das situações mencionadas, não o estão.

Certamente porque a tradição e os princípios da hierarquia e da disciplina sempre presentes no quotidiano da Instituição Militar têm imperado, mas parece que nem sempre assim vem sucedendo com a resultante violação daqueles princípios e o subsequente desprestígio dos militares objecto daquelas situações e da própria Instituição.

Não se afigura, pois, consentâneo com o prestígio das Forças Armadas que os militares detidos sejam objecto de escolta por parte de entidades civis ou que o seu acompanhamento e transporte não seja compatível com os princípios da hierarquia e da disciplina, nomeadamente em termos das diferentes categorias e dignidade dos postos dos militares visados.

A este propósito, relembrem-se duas normas estatutárias, a que respeita ao direito que todo o militar tem a honras militares[24] e a relativa ao decoro militar e à respeitabilidade e dignidade perante as Forças Armadas e a sociedade[25].

Uma última nota para relembrar que os oficiais generais das Forças Armadas[26], assim como outras categorias e entidades, quando arrolados como testemunhas têm, nos termos do Código do Processo Civil, a prorrogativa de depor por escrito se o preferirem.

 

Execução da prisão

A justificação para a forma diferenciada da execução da pena de prisão imposta a militares, cujo cumprimento se efectuará em estabelecimento prisional militar, regulada por legislação própria[27], comporta uma multiplicidade de razões, entre as quais se destaca uma mais fácil reintegração na vida militar após o cumprimento da pena, donde, a continuação da sujeição do detido às normas e princípios militares seja fundamental.

Assim e a este respeito, importa não perder de vista que os detidos, embora cerceados do direito à liberdade, não perderam a qualidade de militares nem os deveres[28] e direitos inerentes às respectivos categorias e postos, sob pena de se desvirtuar a razão da manutenção de estabelecimentos penais militares e de se pôr em causa os princípios da hierarquia, da disciplina e da coesão.

A este propósito, convém não esquecer que apenas os militares que não tenham perdido essa qualidade[29] é que podem cumprir as penas de prisão nos estabelecimentos penais militares.

Donde, resulta claramente que o regulamento próprio no qual são fixados os deveres e direitos dos reclusos militares não deve ser uma cópia dos regulamentos prisionais civis, caso contrário subverte-se o que o legislador quis que fosse diferente e específico.

O militar condenado a pena de “prisão”, ao qual não tenha sido aplicada a pena acessória ou que não tenha sido disciplinarmente separado do serviço, incorre na suspensão de funções militares enquanto durar o cumprimento da pena, ficando na situação de inactividade temporária, não contando o tempo de prisão como tempo de serviço militar[30].

No que tange à situação dos militares presos quanto à prestação de serviço, consideram-se “fora da efectividade”[31].

Contudo, parece haver alguma confusão a este respeito quando se consulta o EMFAR, cujo n.º 2 do artigo 150.º diz que o militar no cumprimento de medidas de coacção privativas da liberdade se mantém na efectividade de serviço, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 45.º que, por sua vez, vem dizer que o militar no cumprimento de pena de “prisão” criminal, incluindo o tempo do cumprimento de medida de coacção privativa da liberdade que antecedeu a decisão condenatória, se considera fora de efectividade de serviço. Pode, no entanto, entender-se que, respeitando o princípio da presunção de inocência, enquanto durar o cumprimento da “prisão preventiva”, considera-se o arguido na efectividade de serviço, tempo que, em caso de condenação, passará a ser tido como ocorrido fora da efectividade.

Acresce que, nos termos do RDM, os militares fora da efectividade de serviço não estão obrigados ao cumprimento dos deveres militares[32], salvo para os do activo e reserva naquela situação que continuam sujeitos aos deveres de aprumo e de disponibilidade.

Como justificar a manutenção do cumprimento de penas em estabelecimentos penais militares se os reclusos não estiverem sujeitos aos deveres militares?

E é precisamente em consequência das situações acima mencionadas que podemos deparar-nos com questões normalmente não tratadas e que se relacionam com o cumprimento dos deveres militares, o direito ao uso de uniforme ou à própria remuneração, enquanto durar o cumprimento da pena.

A lei determina que o direito à remuneração só cessa com a cessação do vínculo[33].

No entanto, o direito à remuneração suspende-se nas situações de ausência ilegítima, deserção e noutras previstas na lei[34].

Importa, pois, averiguar se nessas outras situações se encontra a de cumprimento da pena de prisão.

Se esta questão não se colocava até à entrada em vigor do actual RDM, a verdade é que, a partir do momento em que o RDM de 2009 incluiu efeitos pecuniários nalgumas penas – na “prisão disciplinar”[35] e na “suspensão de serviço”[36], a situação tende a assemelhar-se ao que se passa com a generalidade dos restantes servidores do Estado que, durante o cumprimento de penas de prisão, para além de naturalmente suspensos de funções, a lei obriga a que se lhes apliquem os efeitos das sanções disciplinares constantes dos respectivos estatutos disciplinares, o que, na prática, significa redução de vencimentos e a perda de todos os subsídios auferidos à data da condenação[37].

É que, ao contrário do que sucedia no RDM de 1977 e em todos os anteriores, em que, ao militar punido com as penas de “prisão disciplinar” ou “prisão disciplinar agravada”[38], lhe era descontado o tempo de serviço do cumprimento da pena, mas sem prejuízo do direito às respectivas remunerações, o actual RDM, tanto na “prisão disciplinar” como na nova pena disciplinar de “suspensão de serviço”, preconiza como efeitos, para além da perda do tempo de serviço, a perda de suplementos e subsídios e, ainda, de dois terços do vencimento auferido à data, o que constitui uma alteração substancial relativamente ao regime anterior e que, estou certo, constitui uma surpresa para a generalidade dos militares habituados a que o vencimento do militar fosse intocável.

A questão que se pode colocar é a de saber se a aplicação das penas de prisão decorrentes de sentença judicial produzem os mesmos efeitos pecuniários que os antes referidos no actual regulamento de disciplina, como sucede com a função pública, a PSP e outros organismos e entidades civis, relativamente aos respectivos diplomas disciplinares ou se, pelo contrário, aquelas penas são completamente independentes e em nada interferem.

Na realidade, o dispositivo do CJM[39] que se refere à “suspensão do exercício de funções militares”, ao contrário do correspondente artigo do CP[40] sobre a mesma matéria, nada diz acerca da ligação dos efeitos da sanção disciplinar de suspensão a esta situação.

Contudo, não devemos perder de vista que, aquando da entrada em vigor do actual CJM (2003), o RDM não previa quaisquer efeitos pecuniárias das penas disciplinares, ao contrário do que vem sucedendo desde 2009, equiparando-se neste aspecto aos estatutos disciplinares civis.

Assim sendo, inclinamo-nos para considerar que, neste âmbito, se aplica aos militares o mesmo regime que aos restantes servidores do Estado, por duas ordens de razões.

Se os efeitos pecuniários se produzem relativamente às penas disciplinares, por maioria de razão teriam que se justificar para as penas criminais, que por natureza punem condutas mais graves.

E, ainda, porque numa leitura conjugada do artigo 67.º do CP que trata esta matéria para os funcionários públicos, com o disposto no artigo 21.º do CJM, ambos relativos a suspensão do exercício de funções, parece poder vir a dar razão a esta tese, muito embora o normativo do CJM não contenha um dispositivo igual ou semelhante ao constante no n.º 2 do citado artigo 67.º do CP que remete para os efeitos das sanções disciplinares, porque, reitere-se, quando o CJM entrou em vigor tal não era possível, porquanto o RDM, à data, não preconizava efeitos pecuniários das penas, como actualmente sucede.

O que antes foi referido relativamente ao RDM e aos militares das Forças Armadas tem aplicação com as necessárias adaptações ao RDGNR e aos militares da GNR, ao que acresce o facto de, no sistema remuneratório da GNR, figurarem diversos suplementos que apenas são devidos enquanto haja exercício efectivo de funções[41], o que, na prática, se traduz numa substancial quebra de remunerações durante o período de cumprimento de pena ou no que respeita aos suplementos, mesmo no de prisão preventiva.

Aqui chegados, cabe referir que só a partir do momento em que a condenação da pena de “prisão” se torna definitiva é que a “suspensão do exercício de funções militares” opera, ou seja, se aceite a tese anteriormente apresentada, só após aquela condenação é que o militar perde o direito aos suplementos, subsídios e a dois terços do vencimento.

Mas se o militar, entretanto, esteve sujeito a “prisão preventiva”, o tempo da mesma é descontado no cômputo geral da pena, com o inconveniente de que terá que repor com efeitos retroactivos os suplementos, subsídios e dois terços do vencimento que, no entretanto, foi recebendo, o que constitui um verdadeiro problema para os militares na já difícil situação de reclusos.

Existe ainda uma outra questão relacionada com a condenação definitiva de um militar que merece alguma atenção e que é a que se prende com o facto do cumprimento das penas de prisão em estabelecimento militar apenas operarem enquanto o recluso mantiver a sua qualidade de militar.

Se ao mesmo for aplicada uma pena acessória de “expulsão”[42] ou se, em sede disciplinar, for considerado que não reúne as condições estatutárias para a “reforma compulsiva”[43] ou se a excepcional gravidade do seu comportamento se revelar incompatível com a permanência nas Forças Armadas, verifica-se a perda da condição militar[44] e consequente o respectivo abate aos quadros e, nestes casos, o cumprimento da pena de prisão não fará sentido que se mantenha no estabelecimento militar.

Donde, decorre a questão de saber para que estabelecimento prisional deverão estes ex-militares ser transferidos.

No que respeita aos ex-militares da GNR, o seu Estatuto[45] dá a resposta, remetendo para o estabelecimento prisional destinado a elementos das forças de segurança, mas quanto aos ex-militares das Forças Armadas o EMFAR é omisso.

Esta como as demais questões levantadas ao longo deste pequeno texto carecem de respostas legais em sede estatutária, sob pena do tempo tornar irrelevante a condição militar para estes aspectos e desnecessária a continuação de um estabelecimento penal próprio para militares.

 

Conclusões

Após a eliminação do foro especial para os militares, a subsequente reforma do sistema de justiça e disciplina não acautelou suficientemente algumas práticas e situações decorrentes da condição militar inerentes aos princípios enformadores das Forças Armadas, o que vem criando incerteza e insegurança jurídica e levado a excessos ou a situações incompreensíveis que põem em causa a dignidade dos militares e o prestígio das próprias Forças Armadas.

 

 


[1] Artigo 27.º da CRP.

[2]    Artigo 254.º do CPP.

[3]    Artigo 202.º do CPP.

[4]    Artigo 42.º da CP.

[5]    Lei n.º 11/89, de 1 de Junho (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar).

[6]    Artigo 33.º do RDM.

[7]    Artigo 35.º do RDM.

[8]    Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de Julho.

[9]    DL n.º 176/71, de 30 de Abril.

[10]    DL n.º 90/2015, de 29 de Maio.

[11]    DL n.º 30/2017, de 22 de Março.

[12]    Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro.

[13]    Lei n.º 21/85.

[14]    Artigo 15.º do CJM.

[15]    Artigo 22.º – “1 – Fora do flagrante delito, a detenção de militares na situação de activo ou na efectividade de serviço é requisitada aos seus superiores hierárquicos pelas autoridades judiciárias ou de polícia criminal competente, nos termos previstos na legislação processual penal aplicável. 2 – Os militares detidos ou presos preventivamente mantêm-se em prisão militar à ordem do tribunal ou autoridade competente, nos termos previstos na legislação processual aplicável”.

[16]    Artigo 25.º – Os números 1 e 2 são iguais aos do artigo 22.º do EMFAR, mas foi-lhe aditado um número 3, com a seguinte redacção: “3 – O cumprimento da prisão preventiva e das penas e medidas privativas de liberdade por militar da Guarda é assegurado em instalações próprias ou das Forças Armadas”.

[17]    Artigo 124.º, n.º 1 do CJM.

[18]    Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de Julho.

[19]    Artigo 198º “1 – Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a 6 meses, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de se apresentar a uma entidade judiciária ou a um certo órgão de polícia criminal em dias e horas preestabelecidos, tomando em conta as exigências profissionais do arguido e o local em que habita. 2 – A obrigação de apresentação periódica pode ser cumulada com qualquer outra medida de coacção, com a excepção da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva”.

[20]    Artigo 120.º do CJM.

[21]    (Execução da pena de prisão): “O cumprimento da pena de prisão aplicada a militar é efectuada em estabelecimento prisional militar”.

[22]    Artigo 121.º do CJM.

[23]    Artigo 114.º n.º 2 do CPP.

[24]    Artigo 17.º do EMFAR e 19.º do EMGNR.

[25]    Artigo 14.º n.º 4 do EMFAR.

[26]    Artigo 624.º (Prerrogativas de inquirição) “1 – Gozam da prerrogativa de ser inquiridos na sua residência ou na sede dos respectivos serviços: a) O Presidente da República; b) Os agentes diplomáticos estrangeiros que concedam idêntica regalia aos representantes de Portugal. 2 – Gozam de prerrogativa de depor primeiro por escrito, se preferirem, além das entidades previstas no número anterior: a) Os membros dos órgãos de soberania, com exclusão dos tribunais, e dos órgãos equivalentes das Regiões Autónomas e do território de Macau; b) Os juízes dos tribunais superiores; c) O provedor de Justiça; d) O Procurador-Geral da República e o vice-procurador-geral da República; e) Os membros do Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior do Ministério Público; f) Os oficiais generais das Forças Armadas; g) Os altos dignitários de confissões religiosas; h) O bastonário da Ordem dos Advogados e o presidente da Câmara dos Solicitadores. 3 – Ao indicar como testemunha uma das entidades designadas nos números anteriores, a parte deve especificar os factos sobre que pretende o depoimento”.

[27]    Artigo 15.º n.º 2 do CJM

[28]    Contudo, ver o artigo 5.º do RDM: 2 – “Os militares que se encontrem fora da efectividade de serviço, não estão obrigados ao cumprimento dos deveres militares, salvo quanto ao disposto nos números seguintes. 3 – Pela sua condição de militares, os militares, no activo e na reserva, fora da efectividade de serviço estão sujeitos à disponibilidade própria da sua situação, nos termos previstos no respectivo Estatuto, e ao dever de aprumo, quando façam uso de uniforme, nos termos legalmente admitidos”.

[29]    Ver por exemplo: Artigos 36.º e 37.º do RDM ou n.º 4 do Artigo 25.º do EMGNR.

[30]    Artigo 21.º do CJM.

[31]    Artigo 45.º do CJM.

[32]    Artigo 5.º n.º 2 do RDM.

[33]    Artigo 2.º n.º 3 do DL n.º 296/2009, de 14 de Outubro (FFAA) e Artigo 2.º n.º 2 do DL n.º 298/2009, de 14 de Outubro (GNR).

[34]    Artigo 2.º dos citados DL.

[35]    Artigo 47.º do RDM de 2009 (Efeitos da pena de suspensão de serviço) “A pena de suspensão de serviço implica para todos os militares: a) A possibilidade de transferência, nos termos do artigo anterior; b) A perda de igual tempo de serviço efectivo; c) A perda, durante o período da sua execução, de suplementos, subsídios e de dois terços do vencimento auferido à data da mesma; d) A impossibilidade de ser promovido durante o período de execução da pena”.

[36]    Artigo 48.º (Efeitos da pena de prisão disciplinar) “A pena de prisão disciplinar implica, para todos os militares: a) A possibilidade de transferência da força, unidade, estabelecimento, órgão ou serviço a que o militar pertencer, nos termos do disposto no artigo 46.º; b) A perda de igual tempo de serviço efectivo; c) A perda, durante o período da sua execução, de suplementos e subsídios e de dois terços do vencimento auferido à data da mesma; d) A impossibilidade de ser promovido durante o período de execução da pena”.

[37]    Artigo 67.º (Suspensão do exercício de função) “1 – O arguido definitivamente condenado a pena de prisão, que não for demitido disciplinarmente de função pública que desempenhe, incorre na suspensão da função enquanto durar o cumprimento da pena. 2 – À suspensão prevista no número anterior ligam-se os efeitos que, de acordo com a legislação respectiva, acompanham a sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções”.

[38]    Artigo 51.º do RDM de 1977.

[39]    Artigo 21.º (Suspensão do exercício de funções militares) “1 – O militar definitivamente condenado a pena de prisão e ao qual não tenha sido aplicada pena acessória ou que não tenha sido disciplinarmente separado do serviço incorre na suspensão do exercício de funções militares, ficando na situação de inactividade temporária enquanto durar o cumprimento da pena. 2 – O tempo em cumprimento da pena de prisão não conta como tempo de serviço militar”.

[40]    Artigo 67.º (Suspensão do exercício de função) “1 – O arguido definitivamente condenado a pena de prisão, que não for demitido disciplinarmente de função pública que desempenhe, incorre na suspensão da função enquanto durar o cumprimento da pena. 2 – À suspensão prevista no número anterior ligam-se os efeitos que, de acordo com a legislação respectiva, acompanham a sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções”.

[41]    Artigo 6.º n.º 3 do DL n.º 298/2009, de 14 de Outubro.

[42]    Artigo 19.º do CJM (Expulsão) “1 – A pena acessória de expulsão consiste na irradiação do condenado das fileiras das Forças Armadas ou de outras forças militares, com perda da condição militar, assim como do direito de usar medalhas militares e de haver recompensas, tornando-o inábil para o serviço militar”.

[43]    Artigo 36.º do RDM.

[44]    Artigo 37.º do RDM.

[45]    Artigo 25.º (Detenção e prisão) “4 – O disposto no número anterior não se aplica ao militar a quem, nos termos do artigo 98.º, tenha cessado definitivamente o vínculo com a Guarda, cujas penas privativas de liberdade podem ser cumpridas em estabelecimento prisional destinado a elementos das forças de segurança”. 

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2019-10-01
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by CMG Armando Dias Correia