Nº 2608 - Maio de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Ainda Tancos
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

1. Elementos de análise

O roubo de armamento dos paióis de Tancos, para além da surpresa e estupefacção que causou, deu origem a múltiplas interrogações: Qual o material que foi roubado? Que quantidade de armas e munições? Qual o destino do material roubado? Que uso iria ser feito desse material? Quem efectuou ou colaborou nesse roubo? Quem são os responsáveis pelo que aconteceu? Como foi recuperado esse material? E, finalmente, como é possível que isto tenha acontecido numa instituição que tem por missão defender-nos, utilizando as armas de que dispõe?

Muita gente e quase toda a comunicação social fizeram julgamentos primários e precoces na tentativa de dar respostas àquelas perguntas, mas aquilo que realmente se passou ainda não é do conhecimento público. A Comissão Parlamentar de Inquérito, os órgãos de investigação e a Justiça deverão vir a encontrar respostas para muitas daquelas perguntas.

Em artigo publicado na Revista Militar, de Junho/Julho de 2017, recordámos o desinvestimento que ao longo de vários anos tem vindo a ser feito no Exército, podendo, com elevada probabilidade, encontrar-se aí uma relação de causalidade com aquilo que veio a acontecer nos paióis de Tancos.

Em artigo publicado na Revista Militar, de Fevereiro/Março de 2018, lembrámos os conceitos de comando e responsabilidade, porque certamente naquele evento houve falhas no exercício de comando a vários níveis, e uma ausência de indicação e assumpção da responsabilidade, o que causou, para além do roubo em si, um grande desgaste na imagem do Exército. Se o Exército não é definível por aquilo que ali se passou, como tem sido afirmado por entidades altamente responsáveis, o que ali sucedeu não é admissível numa instituição que tem por missão a segurança e defesa do país e dos seus cidadãos.

Creio que os elementos abordados naqueles dois artigos são importantes para encontrarmos algumas respostas a algumas das perguntas que inicialmente formulámos. Porém, ainda não surgiu com alguma ou mesmo mediana clareza a resposta à pergunta “como foi possível que aquilo acontecesse?” Com o presente trabalho procurarei encontrar uma resposta para aquela pergunta.

A razão fundamental da existência das Forças Armadas é o país poder dispôr de um aparelho militar que, pela capacidade que deve ter para realizar o combate, garanta a sua defesa. Aliás, mesmo quando não acontece o combate, se ele possuir essa capacidade é, só por si, um instrumento dissuasor para certas ameaças. Porém, para que tenha essa capacidade, na guerra ou na paz, o aparelho militar tem que dispôr de unidades operacionais, como navios de guerra, esquadras de aviões, e unidades terrestres de vários escalões (no nosso caso, do pelotão à brigada).

Porque as unidades operacionais não são de «geração espontânea», têm que ser «construídas» com base nos recursos humanos e materiais de que necessitam para poderem utilizar eficazmente a força. Mas, para que tal suceda, tem que existir uma organização de tempo de paz, com estabelecimentos, unidades e orgãos, que consigam, pelo recrutamento do pessoal, instrução e formação dos seus quadros; pela obtenção e manutenção dos materiais que utilizam; pela organização, normas de funcionamento e disiplina; pela administração dos recursos finaneiros; gerar o produto operacional que, decorrendo de decisões políticas e estratégicas, se deseja ter.

Por estas razões, têm que existir duas organizações militares, intimamente ligadas: uma, operacional, com as unidades aptas a realizar o combate; outra, de tempo de paz, implantada territorialmente no espaço nacional, a qual garante a «construção» e manutenção das unidades operacionais.

A unidade territorial modular do Exército em tempo de paz é, desde há alguns séculos, o regimento. Os regimentos estão sediados em várias localidades do território nacional, e é neles que nasce e se desenvolve o produto operacional, das armas a que pertencem, que é necessário para o sistema de forças. Deve notar-se que o regimento não é apenas uma unidade militar que ocupa instalações numa localidade, ele é também um símbolo da defesa, um elo de ligação à população local e às autoridades civis, e é um chamamento ao serviço nas fileiras, tão necessário desde que o voluntariado substituiu a conscrição.

Dado o número elevado de regimentos, para que pudesse haver capacidade de comando e controle sobre os mesmos, existia também, desde há muito, um escalão intermédio, entre o comando do Exército e as unidades, estabelecimentos e órgãos. Eram as zonas militares nos arquipélagos e as regiões militares no território continental.

As regiões militares, cujo número no último século variou de três a cinco, permitiam, com a direção exercida pelo seu quartel-general e com as unidades sob o seu comando, o contacto estreito com as autarquias e autoridades sediadas na região e com as respectivas populações. Ainda que o dispositivo militar do Exército tenha sofrido alterações, particularmente com o fim da guerra do ultramar, esta malha territorial de regiões militares, com as unidades, estabelecimentos e órgãos a elas pertencentes, garantia em permanência, com rigor e acções inspectivas e disciplinares próximas, um eficaz exercício do comando.

A supressão das regiões militares decorreu certamente de raciocínios estreitos, de induções viciosas e de visões empresariais e economicistas. Argumenta-se que existem muitas empresas com larga implantação territorial que não necessitam destes escalões intermédios, mas tal deve-se ao facto de as empresas terem por finalidade o lucro, ser relativamente fácil a supervisão e não terem por finalidade a segurança e defesa do país, nem a complexidade inerente à Instituição Militar. Nas organizações com preocupações não iguais, mas deste género, para que a direcção se exerça com o conhecimento atempado daquilo que acontece, com a oportunidade das reacções e correcção dos desvios, há uma malha territorial com escalões de direcção intermédios entre a direcção superior e os elementos subordinados de base.

Por outro lado, argumenta-se que já existiam comandos funcionais, e que a Marinha e a Força Aérea não dispõem de outros escalões para além desses comandos. Quanto aos comandos funcionais, de pessoal, logística e operacional, se é certo que um ou outro estabelecimento e órgão pode estar sob o comando completo de um desses comandos como um órgão de recrutamento para o comando de pessoal, ou um depósito geral de material para o comando de logística, o regimento como unidade territorial de base não pode depender desses comandos por ser constituído por elementos de todos eles. No regimento, o comando do pessoal apenas deve ter uma intervenção no âmbito dos recursos humanos; o comando logístico, no âmbito do material; o comando operacional, no «output» operacional que ele gera. Isto é, as unidades, estabelecimentos e órgãos não totalmente dependentes de um comando funcional têm preocupações e missões que ultrapassam a competência dos comandos funcionais. O pessoal existente está muitas vezes aquém daquele que deveria existir, em quantidade e qualidade, de acordo com os quadros orgânicos; tem material oneroso e diversificado a seu cargo; tem um “output” operacional a “produzir”; tem instalações em que vive e desenvolve a sua actividade; dispõe de meios financeiros para administrar.

Quanto ao paralelismo com aquilo que se passa na Marinha e na Força Aérea, só o desconhecimento das especificidades dos ramos pode justificar tal raciocínio. Se as Forças Armadas existem para garantir a defesa do país, há uma característica ímpar que distingue o Exército dos outros ramos – a sua territorialidade. De facto, o «território» da Marinha é o mar territorial, ou do teatro de operações onde é utilizada e estende-se pelo espaço marítimo para além dele. O «território» da Força Aérea é o espaço acima do território ou do teatro de operações onde é empregue, e também a sua acção se estende pelo espaço aéreo envolvente. Além disso, a Marinha e a Força Aérea dispõem de um número relativamente reduzido de importantes meios de combate muito sofisticados com armas que são utilizadas pelas respectivas guarnições, sendo portanto escasso o pessoal que as utiliza para que se atinjam níveis elevados de eficiência e eficácia. Contrariamente, o Exército, dispondo embora de alguns meios sofisticados, desenvolve a sua acção principal com o combatente singular e sendo o único ramo que tem capacidade para conquistar e ocupar o território e controlar populações, necessita de muito mais pessoal. Por estas razões, a Marinha e a Força Aérea têm um dispositivo em tempo de paz com um número reduzido de bases e instalações que podem ser eficazmente comandadas e controladas pelos comandantes dos respectivos ramos.

Diferentemente, o Exército em função do quantitativo de pessoal de que necessita, tem que dispor de número elevado de unidades subordinadas que estão implantadas em todo o território nacional. Este dispositivo, ocupando todo o espaço territorial português, dá-lhe também algumas características únicas: a proximidade com a população fortalece a ligação Exército-Nação e Nação e Defesa; a ligação entre a população é factor de conhecimento das Forças Armadas e até estimula o recrutamento; a proximidade com as autoridades civis e organizações locais facilita a intervenção do Exército em situações de crise e catástrofe; a vantagem de dispor de meios de dissuasão e até de intervenção em ameaças que surjam nessas áreas, do terrorismo a situações de crise; dispõe de instalações que facilitam o crescimento por mobilização; a proximidade de pontos sensíveis que podem necessitar de uma atenção especial.

Por experiência pessoal, lembro o atempado apoio da Região Militar do Sul e das suas unidades quando das inundações de 1997 pelos trabalhos de engenharia e de construção, montagem de pontes, limpeza de linhas de água e transporte e armazenagem de meios necessários ao apoio da população. É certo que existem outras organizações que podem responder a algumas destas situações, mas o Exército, com uma malha territorial densa, tem a vantagem de executar tarefas com elevada prontidão e disciplina.

Na organização do Exército em tempo de paz, actualmente em vigor, os regimentos estão sob o comando das brigadas para as quais geram as sub-unidades operacionais. Parece-nos estranho que uma unidade operacional tenha sob o seu comando unidades do dispositivo de tempo de paz por várias razões: primeira, o comando da brigada deve estar dimensionado para comandar apenas as suas sub-unidades orgânicas; segunda, a atenção da brigada deve estar voltada para as suas sub-unidades operacionais que os regimentos geram; terceira, porque exercendo o comando dessas unidades, mas também das unidades que as geram, parece excedida a sua capacidade de comando e controle; quarta, porque, se a brigada ou o seu comando for empregue fora do território nacional, falta um escalão que comande os regimentos.

Além disso, a extinção das Regiões Militares acabou com a malha territorial então existente sendo substituída por “teias de aranha” irradiando das brigadas para os regimentos, que se cruzam, sem que haja uma territorialidade ali expressa. Por exemplo, a brigada de intervenção rápida comanda regimentos que vão de São Jacinto, Tomar, Serra da Carregueira, Estremoz, Leiria e Tancos; a brigada de intervenção, os regimentos de Vila Real a Viseu, Braga, Queluz, Vendas Novas e Espinho.

 

2. Conclusões

2.1. Debate necessário

O título deste artigo, “Ainda Tancos”, faz-nos lembrar um outro saído há muitos anos, também na Revista Militar “Ainda os submarinos”, porque há assuntos que se arrastam ao longo de anos e nos preocupam. Esse outro artigo, originou uma resposta de um Sr. Almirante em que este procurava rebater a nossa argumentação.

Se este artigo de hoje provocar também uma refutação, isso será positivo, e essa é uma das virtudes da Revista Militar, na qual inclusivamente já houve um “debate” entre um oficial do Exército e o próprio rei de Portugal, ainda que aquele não soubesse quem era o seu opositor. De qualquer modo, julgamos que o trecho que hoje apresentamos tem argumentos suficientes para que se deva repensar a organização e o dispositivo do Exército em tempo de paz.

2.2. A Instituição Militar

A Instituição Militar é caracterizada por ser uma organização fortemente hierarquizada e pela essencialidade da sua missão; por dispor do monopólio da violência organizada; pela quantidade de pessoal que a serve; pelo material que possui, usa e está à sua responsabilidade; pelo seu dispositivo, com unidades, estabelecimentos e órgãos implantados em todo o território nacional; pela prontidão que dela se espera, pela variedade e imediatividade das respostas e pela disciplina rigorosa que tem que praticar para que as missões a seu cargo sejam cumpridas.

2.3. O poder político

No nosso país, os “fazedores” de opinião pública conscientes, sabedores, patriotas e serenos são escassos (apesar de também haver jornalistas competentes), e assiste-se a uma acção insidiosa de um pseudo-jornalismo que não distingue entre a notícia e a informação, que sublinha o episódio e esquece a substância, que procura o sensacionalismo mas não se preocupa com a verdade, que não pensa que a defesa nacional deve garantir a segurança das pessoas e bens e do território nacional e, pretendendo ser “anti-militarista”, o que seria correcto, é apenas anti-militar, o que é lamentável.

Com o quadro descrito forma-se uma opinião pública que vê as Forças Armadas apenas como uma organização consumidora de recursos o que tem reflexos na actuação do poder político no que diz respeito à política de defesa nacional. Por estas razões a Instituição Militar e particularmente o Exército são vítimas de visões economicistas “à outrance”, com a redução incompreensível de efectivos, incumprimento das leis de programação militar, alienação de instalações e alteração da estrutura orgânica, aspectos que são lesivos da sua funcionalidade.

2.4. A Região Militar

A Região Militar como escalão intermédio entre o comando do Exército e as unidades caracterizava-se essencialmente por:

Manter o comando do Exército informado dos elementos da situação que exigiam a sua acção e facilitavam a tomada de decisão nas importantes tarefas de obtenção e estado dos recursos, a racionalização das estruturas na melhoria dos procedimentos.

Exercer o comando completo das unidades da sua região militar, de que se sublinhava a acção inspectiva e disciplinar, estabelecendo ligação com os comandos funcionais no que se referia às áreas de responsabilidade daqueles.

Directamente e através das unidades da região militar, estreitavam a ligação com as autoridades civis, outras organizações ali existentes e a população, procurando transmitir um espírito de defesa e a apetência da juventude para servir nas Forças Armadas.

Tendo como preocupação a preparação e orientação das unidades quadros e tropas, maximizavam a utilização dos recursos disponíveis e mantinham com as unidades do seu comando uma ligação permanente de presença e de supervisão das actividades, limitações, funcionamento administrativo e operacionalidade.

Apoiavam as autoridades civis com oportunidade, em situações de crise ou catástrofe.

2.5. Escalões de Comando

Actualmente, o comando do Exército tem como comandos subordinados os comandos funcionais: de pessoal, de logística, operacional, e a direcção financeira. O comandante operacional, comandante das forças terrestres, comanda as brigadas e as forças nas zonas militares. Os comandantes das brigadas comandam, além das sub-unidades operacionais das brigadas, os regimentos do continente que as geram.

2.6. Críticas

A coexistência das regiões militares e de comandos funcionais, que ocorreu durante alguns anos, não foi isenta de críticas. Dizia-se que havia comandos a mais, que por vezes ocorriam tensões entre eles, e que se tornava menos importante o valor da malha territorial. Para nós, não havia comandos a mais, mas agora há a menos, como prova Tancos; as tensões não eram graves e até sublinhavam o interesse dos vários comandos pelos assuntos das unidades, estabelecimentos e órgãos; e a malha territorial não perdeu valor, função das modernas ameaças e maior frequência de momentos de crise e catástrofe, o que a torna ainda mais importante.

2.7. O Erro e “Tancos”

Entendemos que a extinção das regiões militares foi um erro porque destruiu um patamar que permitia ao comandante do Exército um exercício do comando eficiente e eficaz sobre as unidades territoriais e diminuiu a ligação Exército-Nação. A extinção das regiões militares pode ter sido a principal razão para ter acontecido o roubo de material militar em Tancos, mas, o mais importante é que, se não for restabelecido um escalão territorial intermédio há uma maior probabilidade de no futuro acontecerem novos “Tancos”. De facto, não se pode exigir a um comandante de brigada que comande simultaneamente as suas unidades operacionais orgânicas e vários regimentos dispersos por todo o território nacional, porque isso excede a sua capacidade de comando e controlo.

2.8. As Linhas Vermelhas

Nas relações dos chefes militares com a direcção política há linhas vermelhas que não podem ser excedidas. Se não forem apresentadas ou sendo-o forem ultrapassadas, surgem diversos inconvenientes para o funcionamento da estrutura e dos estabelecimentos, unidades e órgãos, para o valor do Exército, para a operacionalidade da força, para o prestígio das Forças Armadas, e para a defesa de Portugal.

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2019-11-06
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by COM Armando Dias Correia