Nº 2628 - Janeiro de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os militares… São o diabo?
Coronel Tirocinado
Óscar Gomes da Silva

1. Desde sempre, as sociedades humanas preocuparam-se com a sua defesa, tendo esta missão sido confiada a uma parte dos seus elementos integrantes.

Não foram eles – militares – que se impuseram à sociedade, antes foi esta que, por necessidade, criou a Instituição Militar.

Nada impede que a guerra seja um fenómeno que procuremos extirpar como causador de grandes males e terríveis desgraças.

“…É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema…” – assim expressou o Padre António Vieira.

Enquanto a mentalidade humana não se modificar de modo a alcançar a paz interior, as nações não poderão dispensar os militares, já que as Forças Armadas são a condição sine qua non da sua independência e integridade territorial.

 

2. Em Portugal, como noutros países, há pessoas que não gostam dos militares, que se opõem à existência da Instituição Militar e a consideram dispensável, o bode expiatório dos males do mundo, um sorvedouro dos dinheiros públicos.

Há que respeitar tal opinião, facilmente expressa e divulgada nas democracias pluralistas, como silenciada é nos regimes totalitários.

As críticas fundamentadas e construtivas são de aplaudir, condenáveis são as acusações torpes, as calúnias fantasistas e as afirmações injustas que merecem repúdio por parte de quem se esforça por cumprir honestamente e sem alardes a sua missão. Acredito que esse complexo antimilitar possa ser explicado sem grande dificuldade se analisado no âmbito da psicologia individual de Adler.

 

3. António Feliciano de Castilho escreveu páginas de invulgar candura sobre a desnecessidade dos exércitos, resolvendo tudo o que respeita à defesa nacional com ingenuidade e lirismo. Entendia ele que Portugal não devia ter Exército, “tanto ele pesa no orçamento, com os soldados e comedoria da soldadesca, com os uniformes, os armamentos, o calçado, a remonta e sustento da cavalaria, as fábricas de pólvora e balas, os arsenais, os quartéis, as obras de fortificação, as marchas e as conduções de bagagens, os transportes por mar, os roubos e os extravios do material, as secretarias, os comissariados, as inspecções, os tribunais militares, as boticas, os médicos, os cirurgiões, os enfermeiros, os moços, os inválidos, as músicas”…

Cruz Malpique, comentou perguntando “(…) mas não vale mais a independência nacional do que a economia que se pudesse fazer com a sua supressão? Suprimi-lo não seria dar margem a que a própria nação corresse o risco de ser suprimida?...”

 

4. Servi o Exército durante mais de 40 anos, desde que abracei a carreira das armas e jamais me considerei um “autómato” ou possuidor de “alma de escravo”. Nem creio que os meus soldados tivessem sentido o mesmo.

 

Camões foi soldado e escreveu:

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.

(Os Lusíadas, X, 153)

“Saneie-se a Instituição Militar” – dizem – sem ter em conta que as Forças Armadas são o espelho da Nação e que não chega saneá-las deixando a Nação por sanear.

 

5. Se, porventura, se afirmasse que “os jornalistas são um bando de incompetentes, ou que os políticos são uma cáfila de corruptos”, estar-se-ia a revelar ignorância, insensatez, má fé e injustiça.

Os seres humanos são imperfeitos, em todos os grupos ou classes profissionais existem “os competentes e os incompetentes”, “os honestos e os desonestos”, “os bons e as ovelhas ronhosas”.

Dizia, ainda, Castilho, que o mancebo, tão depressa é incorporado no Exército, deixa de ser uma individualidade para ser um “número”…

“(...) com violenta mão lhe limam à pressa todo o cunho da sua personalidade, rentearam-lhe o cabelo como a todos os seus camaradas, vestiram-no e calçaram-no como todos eles, constrangeram-no a tomar a mesma figura e movimentos e dar os mesmos passos contados, a comer à mesma hora e a acordar ao som metálico da mesma corneta (…)”.

Poderia, acaso, ser de outro modo? Se os militares formassem uma multidão heterogénea onde cada um puxasse a brasa à sua sardinha, então teríamos, seguramente, bandos armados.

Concordo com Gaston Courtois quando afirma que “a disciplina bem compreendida não mata a personalidade, harmoniza os homens coordenando-lhes os esforços”.

 

6. O “nó górdio” desta questão reside na educação. É no seio da família e nos bancos das escolas e universidades que as crianças e os jovens do nosso País devem adquirir não somente os conhecimentos científicos, mas, particularmente, a formação cívica indispensável à construção de uma Nação digna, forte e prestigiada.

Convém lembrar que o comportamento atentatório dos mais elevados valores éticos, por parte de alguns militares, contribui para o desprestígio da Instituição a que pertencem. Para eles, está reservada a oportuna e justa punição.

Escreveu Lamartine que “(…) os militares exercem a nobre profissão das armas, mas fazem-no quaisquer que sejam as condições. Eles passam de um regime para outro, de um império para uma monarquia, de uma monarquia para uma república, não como cortesãos mas como servidores (…)”.

A vida militar não é fácil nem cómoda, a instrução e o treino não são uma brincadeira de garotos. A preparação para a defesa implica, evidentemente, riscos que apropriadas medidas de segurança procuram atenuar e reduzir. A instrução militar tem que ser dura, sem deixar de ser humana.

Ser militar significa aderir a um penoso e exigente noviciado, onde se renunciam afectos e direitos, onde a liberdade de análise expira na fronteira do interesse nacional.

Defender a paz é dever que importa ser cumprido por todos, em especial, por aqueles que detêm as rédeas do poder político. Só que defender a paz não é defender a submissão, a renúncia, a escravidão.

Não são as Forças Armadas que impedem a paz, os militares não são, não têm que ser, nenhuns belicistas. Eles têm que estar preparados para a guerra, mas não têm que amar a guerra. Quem decide estabelecer a paz ou fazer a guerra é o poder político. A este compete, com sentido de Estado, edificar um aparelho militar adaptado ao País, motivado, bem treinado, armado e equipado, de forma a estar apto ao cumprimento das diversas missões que lhe sejam atribuídas.

Como ficou referido, foi a sociedade que criou as Forças Armadas. Terá que ser a sociedade a acabar com elas, se o poder político legítimo assim o julgar apropriado e conveniente.

Os militares serão capazes, certamente, de exercer outra profissão e, então, a sociedade poderá descansar em paz.

 

Nota bibliográfica

Albuquerque, Mouzinho de. Carta ao Príncipe Real D. Luis Filipe.

Bouthoul, Gaston. O Fenómeno Guerra.

Malpique, Cruz. Filosofia de Espada à Cinta.

Martelo, David. O Exército Português na Fronteira do Futuro.

Rodrigues António dos Reis. Apologia do Exército.

Selvagem, Carlos. Portugal Militar.

Silva, Oscar Gomes da. Paz, Guerra e Forças Armadas.

Vieira António, Padre. Sermões.

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Coronel Tirocinado

Óscar Gomes da Silva

Nasceu em Goa, Estado Português da Índia (EPI). Em consequência da invasão por Forças Armadas da União Indiana, caiu prisioneiro de guerra. Representou o Exército Português em diversas atividades de âmbito internacional. Colaborou em várias publicações das Forças Armadas. Tem alguns livros publicados, o último, em 2020, O Mundo da Índia, a Índia no Mundo, Linda-a-Velha: DG Edições.

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by COM Armando Dias Correia