Nº 2644 - Maio de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Algumas Notas sobre a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul
Tenente-general PilAv
António de Jesus Bispo

Introdução

Decorrem atualmente as comemorações oficiais relativas ao centenário da Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, segundo um calendário igual ao da Travessia, ou seja, de 30 de Março a 17 de Junho, com participações de elevado nível por parte de entidades qualificadas para o efeito; os eventos comemorativos têm tido um elevado significado e uma dignidade correspondente.

É sempre difícil avaliar o impacte que este grande esforço comemorativo terá na opinião pública, designadamente a tomada de consciência quanto ao pioneirismo, à complexidade, ao risco e ao voluntarismo dos participantes e o que representou e deverá continuar a representar para a imagem de Portugal no Mundo.

O cidadão normal que faz a viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro em avião comercial, nos dias de hoje, em pouco mais de oito horas de voo, terá a percepção das dificuldades e da grandeza da missão de há cem anos atrás, feita em sessenta e duas horas e vinte e seis minutos de voo?

Fizemos esta mesma rota da Travessia, na década de sessenta do século passado, em avião de transporte DC-6 da Força Aérea Portuguesa, como passageiro e membro de uma delegação portuguesa em missão oficial de comemoração do evento, que comportava, entre múltiplas atividades, o lançamento de um ramo de flores próximo dos Penedos de S. Pedro e S. Paulo; temos de memória ter notado alguma apreensão e o extremo cuidado da tripulação quanto ao acerto da navegação para passagem à vertical do ponto exacto onde os aviadores amararam naquele dia 18 do mês de Abril de 1922; tratou-se verdadeiramente de um ponto no imenso oceano, com referência geográfica muito pouco conspícua (altitude dos penedos cerca de 18 metros), e o erro de navegação nesta data de 1922 foi considerado nulo pelos intrépidos marinheiros aviadores, no final de um percurso de mil seiscentos quilómetros percorridos em onze horas e vinte um minutos. Diga-se, desde já, que esta amaragem fazia parte do plano de navegação, não tendo sido forçada, como se verá adiante.

Como referimos, são muitos os livros, as publicações, os artigos e os eventos produzidos neste período de comemoração que vai terminar no dia 17 de Junho; foi neste dia, no ano de 1922, que os aviadores chegaram ao Rio de Janeiro. Face a esta profusão é quase impossível trazer uma perspetiva nova sobre essa realidade, designadamente sobre o sentido da missão, a sua complexidade e o sucesso alcançado; resta-nos com este texto sublinhar a grandiosidade do feito e prestar homenagem à memória dos marinheiros aviadores que o cumpriram com os meios disponíveis, à altura. A comemoração em curso é plenamente justificada, e constitui certamente elemento importante para o reforço da identidade nacional.

O presente texto não pode dispensar, evidentemente, matéria de natureza técnica, tratada de forma muito genérica, intencionalmente dirigida ao leitor não especialista. Temos conhecimentos e experiência sobre matéria aeronáutica, mas sobre navegação aérea astronómica apenas temos os conhecimentos básicos fornecidas durante a formação inicial. Em todo o caso, julgamos necessário recorrer a este conhecimento elementar, dispensável para os profissionais, porque só conhecendo o contexto se poderá fazer uma avaliação correta da grandeza do empreendimento.

 

A rota

Em primeiro lugar, descrevamos a rota, de forma esquemática, para que se saiba do que se vai tratar. O primeiro troço teve início a 30 de Março, com partida da doca do Bom Sucesso, em Lisboa, e fim em Las Palmas no Arquipélago das Canárias, após cerca de oito horas e meia de voo e mil e trezentos quilómetros percorridos. O segundo troço teve início em Gando, nas Ilhas Canárias, no dia 5 de abril, e fim em S. Vicente, no Arquipélago de Cabo Verde, numa distância de cerca de 1570 quilómetros, voados em cerca de 10 horas e quarenta e cinco minutos. O terceiro troço teve início na Ilha de S. Tiago, em Cabo Verde, no dia 18 de Abril, com destino aos Penedos de S. Pedro e S. Paulo, um minúsculo arquipélago a 627 quilómetros de Fernando de Noronha, após 1680 quilómetros percorridos, em cerca de onze horas e vinte minutos de voo. Em 5 de Junho, quase dois meses depois, tem lugar o quarto troço entre Fernando de Noronha e o Recife, numa distância de cerca de 550 quilómetros, em 4 horas e meia de voo. A partir daqui, seguiram a costa brasileira, com paragens na Baía, em Porto Seguro, Vitória, amarando finalmente no Rio de Janeiro, a 17 de Junho. Foram percorridos cerca de oito mil e trezentos quilómetros, em sessenta e duas horas de voo. A velocidade média ao longo de todo o percurso foi de 130 quilómetros por hora.

Tudo foi executado como planeado, com os seguintes desvios: no segundo percurso, em vez da descolagem de Las Palmos optou-se por Gando, por uma questão de encurtamento da distância; pelas mesmas razões, em vez da descolagem de S. Vicente (onde se tinha amarado para manutenção do hidroavião) optou-se por S. Tiago. Na amaragem junto aos Penedos, devido às condições de mar, a aeronave ficou danificada e sem condições de prosseguir viagem. Foi providenciada uma segunda aeronave que deveria descolar de Fernando Noronha, voltar aos Penedos sem amarar e prosseguir para o Recife; neste trajeto, a 300 quilómetros de Fernando Noronha, e já de volta, sofreu falha de motor obrigando a uma amaragem de emergência, tendo os marinheiros aviadores sido resgatados por um navio cargueiro inglês, cerca de nove horas depois do acidente; dado que também esta aeronave se tinha perdido, foi enviada uma terceira aeronave que completou a missão sem problemas.

 

A motivação

Feita a descrição muito genérica da Travessia, propomo-nos apresentar algumas questões com ela relacionada. Desde logo, sugerir algumas pistas para entendermos a motivação de Sacadura Cabral, o proponente, o planeador, o preparador e o executante do projeto, em conjunto com Gago Coutinho.

Em primeiro lugar, tratava-se de competição patriótica: ser Portugal o primeiro País a demonstrar a viabilidade da ligação aérea entre a Europa e a América do Sul, através do vasto espaço aéreo oceânico. Note-se que o Atlântico Norte já tinha sido atravessado, em Maio de 1919, por um avião da Marinha Americana em condições muito mais favoráveis: avião quadrimotor com uma tripulação de seis elementos, com meios de comunicação rádio, tendo a navegação sido apoiada por vários navios dispostos ao longo da rota a uma distância uns dos outros, de tal forma que minimizavam os possíveis erros de navegação; de notar que dos quatro hidroaviões saídos dos Estados Unidos só um chegou a Lisboa. Ainda no mesmo ano, dois aviadores ingleses tinham feito o trajeto da Terra Nova, no Canadá, para a Irlanda, em voo direto, num avião quadrimotor. As distâncias percorridas nestes voos transatlânticos eram muito inferiores à distância a percorrer no Atlântico Sul pelo frágil hidroavião monomotor português, e os problemas de navegação a resolver eram muitíssimo mais fáceis do que no plano português. O ambiente em Portugal, assim como no resto do Mundo, era de grande entusiasmo pelos progressos da Aviação, e em particular pela possibilidade do voo transatlântico num meio mais pesado do que o ar; servirá de exemplo a receção popular ao Comandante americano Reed, após amaragem no Tejo, no dia 29 de Maio de 1919, no final da travessia do Atlântico Norte com paragem nos Açores (de Lisboa seguiram para Inglaterra, mas este percurso já não teria história), a condecoração deste aviador com o grau de oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor Lealdade e Mérito, assim como a divulgação deste feito pelos jornais portugueses e estrangeiros. Um dia antes deste evento, Sacadura Cabral submete a despacho do Ministro da Marinha um requerimento pedindo autorização para realizar a travessia e o fornecimento dos meios adequados para o efeito; a motivação patriótica está bem patente neste requerimento, assim como a de fazer progredir a Aviação Militar e estimular a Aviação Civil. A Travessia passou a ser uma causa nacional, a avaliar pela celeridade do despacho da proposta para a realizar, pelo apoio incondicional do Governo e pelo entusiasmo popular – a Primeira Travessia teria de ser efetuada por Portugal, fazendo uma associação à epopeia dos Descobrimentos.

O desafio tecnológico foi outro tipo de motivação, num aspeto particular, o da navegação aérea de precisão autónoma, isto é, utilizando apenas os meios a bordo, tal como nos navios em navegação oceânica. Para cumprir este desafio, Sacadura Cabral recorreu ao seu ex-chefe e grande amigo Gago Coutinho. Este desafio correspondia a querer fazer melhor, ganhar a competição, tanto a nível internacional como a nível nacional; era evidente a corrida, neste aspeto, entre a Aviação Naval e a Aeronáutica Militar.

A motivação política está demonstrada pela data escolhida, exatamente no ano da comemoração do centenário da independência do Brasil, contribuindo assim para o reforço da amizade entre os dois Países. Tal intenção foi expressa ao Presidente do Brasil em visita a Portugal em 1919, que aceitou, desde logo, o projeto com entusiasmo. O facto do mês escolhido ter sido Março e não Setembro teve a ver, essencialmente, com as condições meteorológicas, em particular o regime de ventos mais favorável.

Finalmente, a motivação para “estimular a Aviação Civil” designadamente através da demonstração de que poderia ser possível o transporte aéreo a ligar os dois continentes. Este foi, no entanto, um fim que não foi realizado, na medida em que não foram desenvolvidos esforços imediatos nesse sentido; contudo, poucos anos mais tarde, uma companhia francesa ligava os dois continentes para transporte aéreo de correio, utilizando Fernando de Noronha como um dos pontos de apoio. Muito mais tarde, em 1939, foi efetuada a ligação entre os Estados Unidos e a Europa utilizando hidroaviões Boeing 314 Clipper, com amaragem no Tejo e cais de embarque em Santa Apolónia. Uma das razões por que o hidroavião não tenha tido um grande êxito em transporte aéreo transoceânico a longo prazo, talvez tenha residido no aparecimento de soluções alternativas, tais como aviões com um grande alcance e com o desenvolvimento da infraestrutura aeronáutica e o aumento da fiabilidade da tecnologia aeronáutica. A utilização dos aviões bombardeiros como aviões de transporte, com grandes alcances e capacidade razoável, surgiu logo a seguir ao fim da Primeira Guerra Mundial. Diga-se, no entanto, que o hidroavião ainda hoje é explorado em algumas geografias, especialmente onde não é possível ou rentável construir superfícies de aterragem.

 

A escolha do meio aéreo

Depois de resolvidas todas as dúvidas quanto ao traçado da rota a percorrer, e se apontou para aquele que acima se referiu, e de se assumir a viabilidade do projeto, o próximo passo consistiu na aquisição dos meios. É evidente que as capacidades dos meios acessíveis também constituiriam fator de seleção da rota; em qualquer caso, tratou-se de optar por um percurso direto, sempre sobre o mar. As opções via Dacar ou Bolama constituíam percursos mais longos, mas com uma parte sobre terra.

Como é sabido, o primeiro voo com um meio mais pesado do que o ar, com sucesso, data de 1903; estávamos, portanto, a cerca de 19 anos desta demonstração, período relativamente curto para a consolidação ou maturidade plena de uma tecnologia; é certo que, entretanto, tinha ocorrido a Primeira Guerra Mundial, onde o avião se estreou como arma, de forma mais ou menos organizada, mas com um deficiente conceito de emprego, e onde sofreu uma evolução relativamente acelerada. Refira-se, a propósito, que a primeira utilização do avião como arma ofensiva ocorreu dois anos antes do começo da Primeira Guerra Mundial, em operações em África.

Contudo, a aplicação do meio aéreo em ambiente marítimo só foi considerada a partir de 1910, e só um número reduzido de fabricantes se dedicou a esta área, até à entrada na guerra onde o hidroavião teve alguma participação, inclusive no caso português (reconhecimento marítimo e vigilância, luta anti-submarina, guerra de minas). Apesar destas condicionantes, até 1920 foram fabricados cerca de duzentos tipos de hidroaviões em todo o Mundo, incluindo protótipos e experimentais; uma grande parte deles teve uma vida muito curta, apesar de terem sido registados, dado o obsoletismo provocado pela evolução tecnológica ou o seu fraco desempenho.

À altura em que Sacadura Cabral começa a fazer pesquisa no mercado aeronáutico, existiam duas opções: o hidroavião de casco, o flyingboat” ou o hidroavião de flutuadores, o “floatplane”. Tratava-se de aquisição de meios especificamente vocacionados para a missão que iriam desempenhar, e de não afetar os meios já em exploração ou previstos para o Centro de Aviação Marítima; por essa altura, estes meios eram dos tipos F.B.A., Donnet-Denhaut, Tellier Hispano-Suiza, Felixstowe. Todos eles eram do tipo “flyingboat” com motores desenvolvendo entre 100 a 200 cavalos de potência, com exceção do Felixstowe, e não tinham capacidade para executar a missão pretendida. Em todo o caso, o princípio foi o de selecionar os meios especificamente para a missão.

Estes dois tipos gerais tinham características bastante diferentes. O “flyingboat” deverá conciliar a hidrodinâmica com a aerodinâmica e, em princípio, necessita de mais potência para efetuar a descolagem fazendo aumentar a respetiva corrida que, em certas condições, é um fator crítico; é, no entanto, muito mais robusto. O “floatplan” é mais ágil, por princípio, nas fases de descolagem e amaragem, mais leve, mas também mais frágil, especialmente na amaragem. Sendo os flutuadores a primeira componente a bater na água, fica mais suscetível a danificação, deixando entrar água com implicações sérias durante o voo; esta situação ocorreu logo na segunda etapa, em Cabo Verde, onde se teve que esvaziar um deles, o que não foi tarefa fácil. É verdade que o “floatplane” é mais afetado pela ondulação, na descolagem e amaragem, tem um coeficiente de arrastamento ou resistência aerodinâmica maior em voo e, portanto, um desempenho aerodinâmico menos eficaz relativavamente a um “flyingboat” de iguais dimensões. Apesar de todos estes factores, haveria que ter em conta os custos, que eram inferiores, em geral, para o caso dos “floatplane”.

Provavelmente, tendo em consideração estes factores, e o orçamento disponível, Sacadura Cabral optou por um “floatplane”, o Fairey IIID F400, que foi especialmente desenvolvido a partir da configuração básica, para cumprir com os requisitos da execução da Travessia; por este motivo, o fabricante batizou o hidro de “transatlantic”, designação que não veio a ser adotada por Portugal, tendo as autoridades escolhido o nome de Lusitânia. A designação F400 corresponde à especificação pretendida por Sacadura Cabral, relativa especialmente ao peso básico, peso máximo, potência, quantidade de combustível e desempenho aerodinâmico. Refira-se, a propósito, que foi dispensado o equipamento de TSF por razões de alívio de peso; durante todo o percurso não houve qualquer comunicação com o exterior da aeronave. Esta versão F400 comportava algumas pequenas modificações estruturais para aumentar a estabilidade da aeronave.

A motorização pretendida recaiu no Rolls Royce Eagle VIII. Quase que poderíamos dizer que foi a partir do motor que se escolheu o hidro. Isto, porque Sacadura tinha uma grande confiança neste motor, em especial. Naquele tempo não se usava o critério estatístico “tempo médio entre falhas”, como hoje se torna obrigatório, não só na indústria aeronáutica. Sacadura já tinha voado com este motor, quando do “ferry” do hidro Felixstowe, de Inglaterra para Portugal. Os aviadores que tinham efetuado a travessia entre a Terra Nova e a Irlanda, assim como o avião que tinha feito a ligação entre a Inglaterra e a Austrália, já tinham usado este motor com bons resultados. Para além desta experiência, havia notícia de outros voos, com o mesmo motor, e com grande sucesso, assim como uma elevada credibilidade da marca, uma das mais experientes do Mundo à altura. Esta crença justificou que não se tivesse optado por outro tipo de motor, designadamente o “Napier Lion”, muito mais potente, sensivelmente com o mesmo peso e que iria ser instalado no Fairey. Apesar desta confiança, que nestes termos nunca pode ser total, o motor falhou com o segundo avião, entre Fernando de Noronha e os Penedos, obrigando a amaragem de emergência como se irá referir; nas circunstânias deste acidente, é de admitir como hipótese que a causa da falha poderá ter estado nas impurezas do combustível.

O Fairey IIID com a configuração pretendida disporia de uma potência de 360 cavalos (há publicações não oficiais que referem entre 375 a 380 hp), e um consumo de combustível da ordem de 20 galões por hora de voo. Estes dados eram importantíssimos, porque, conjugados com a velocidade terreno (neste caso velocidade em relação à superfície do mar), permitiriam calcular o combustível necessário, e a viabilidade da missão, tendo em conta um depósito da ordem dos 330 galões (este número não é preciso, dado que existem referências de valores inferiores) que nunca se enchia totalmente. De acordo com as especificações técnicas, disponíveis nos documentos atuais, não oficiais, o alcance deste hidroavião seria da ordem dos 2000 quilómetros. Sobre estes pontos importa relembrar o relato de Sacadura Cabral no trajeto entre S. Tiago e os Penedos, quando põe em dúvida a possibilidade de alcançar o destino previsto por falta de combustível:

calculo que durante a noite, devido à elevada temperatura que faz, houve evaporação de gasolina e por essa razão e pelo facto de ter hidroplanado muito tempo, teríamos descolado, quando muito com 235 galões de gasolina, isto é, com menos de 12 horas de voo e, para conseguir percorrer este lapso de tempo de 918 milhas que separam Porto Praia dos Penedos, seria necessário marchar a 76 milhas à hora, velocidade que temos estado longe de conseguir porque o vento tem sido fraco. A situação não se apresenta agradável, mas decidimos continuar para ver o que faz o vento”.

Sacadura fez duas tentativas para descolar de S. Tiago, só o conseguindo à terceira; se os números que acima apontámos estiverem corretos, haveria uma discrepância de mais de 75 galões nesta observação de Sacadura. Uma hipótese de explicação seria um reabastecimento incompleto, ou uma limitação deliberada de peso para garantir a descolagem, e um consumo adicional pelas corridas de descolagem. Quanto a este ponto, deveremos fazer uma observação: à descolagem deveria ter-se em atenção o peso do avião versus a potência disponível em face das condições ambientais, e limitação do espaço para a corrida tendo em conta a direção e intensidade do vento; muito embora a dimensão do mar seja “infinita”, as descolagens efetuavam-se normalmente em baías onde a ondulação seria, em princípio, mais fraca, e neste caso havia ainda um outro fator a considerar e que era a existência de obstáculos, especialmente quando se era obrigado a descolar para terra. Algumas vezes, a velocidade que se conseguia atingir na corrida era insuficiente para criar a sustentação aerodinâmica que compensasse o peso, e a potência desenvolvida não conseguia vencer a resistência; por mais que se “corresse” não se conseguia ir para o ar naquelas circunstâncias; entretanto, gastava-se muito combustível dado o regime do motor.

Em qualquer caso, trouxemos este tema à colação apenas para chamar a atenção quanto aos limites e riscos da missão, havendo a necessidade de ponderar todas as condicionantes, sendo o alcance calculado o fator crítico mais importante, especialmente até aos Penedos.

Sacadura Cabral, acompanhado de outro marinheiro aviador, acompanhou a construção da aeronave, na fábrica, em Inglaterra, e efetuou todos os testes em voo, depois de se ter qualificado. Conforme acontece nestas situações, surgiram alguns problemas na aceitação, que não vale a pena aqui referir, e que não prejudicaram em nada o decorrer da missão. Aceitou-se a aeronave também pela pressão do tempo e daí não adveio qualquer problema especial. É preciso relembrar que a missão tinha de ser realizada entre Março e Abril devido ao regime de ventos favoráveis nessa altura.

 

Os métodos de navegação

Entretanto, a questão da navegação estava resolvida e testada com êxito no voo à Madeira, conforme iremos referir adiante, o que quer dizer que tudo estava pronto para a partida. Entretanto, convém tecer algumas considerações elementares.

O problema da navegação aérea, outrora como hoje, consiste na resolução gráfica do que se designa por triângulo das velocidades; a diferença está em que os meios da atualidade são substancialmente diferentes, e há cem anos a navegação aérea era feita visualmente com referência a acidentes geográficos, essencialmente. Na realidade, o computador de navegação baseia-se no mesmo conceito de operação para a resolução do triângulo de velocidades; há uma diferença fundamental que consiste no facto de a posição do avião ser agora calculada, a cada instante, pela integração do vetor aceleração a que a aeronave está sendo sujeita, e/ou pela triangulação de vetores emitidos por uma rede de satélites à semelhança do que acontece com o posicionamento de dispositivos terrestres (ex., telemóvel); esta luxúria não existia no passado.

Como se sabe, mas é bom lembrar nesta circunstância, esse triângulo consiste no vetor velocidade em relação à massa de ar, no vetor velocidade do vento e no vetor velocidade em relação ao terreno, neste caso, à massa de água, sendo este último vetor o resultado da soma geométrica dos outros dois.

O primeiro vetor implicava a manutenção do rumo previsto, e de uma indicação de velocidade constante. Não existiam compensadores aerodinâmicos sofisticados, e muito menos pilotos automáticos, o que significa que este requisito teria de ser cumprido exclusivamente à força de músculo. Neste capítulo não haveria auxiliares, o que devido à instabilidade natural das máquinas voadoras deste tempo, esta pilotagem durante o tempo de voo de cada troço, representava um esforço extraordinário. Para além das dificuldades estruturais, havia ainda o problema da estabilização da bússola magnética, a chamada agulha, face à trepidação. Conviria manter uma velocidade correta e um rumo contínuo, sem variações aleatórias, para efeitos de cálculo da navegação; apesar de existirem duas bússolas a bordo, a manutenção do rumo deveria ter alguma dificuldade.

A direção e velocidade do vento era um fator determinante para uma navegação precisa, porque a deriva provocada na aeronave corresponderia a um erro enorme ao fim de algumas horas de voo se a trajetória não fosse corrigida; neste caso, algumas dezenas de quilómetros. No voo visual sobre terra sem ajudas artificiais de navegação, existem as referências geográficas que nos ajudam a calcular a distância lateral a que nos situamos da rota, e a partir desta distância poderemos calcular, empiricamente, a deriva e corrigir o rumo; no voo sobre o mar as referências são muito raras, e nestas condições primárias impunha-se inventar um método para a determinação da direção e velocidade do vento, para correção do rumo e da velocidade terreno da aeronave. Para resolver este problema entra aqui a Matemática, muitas vezes não referida, embora tenha sido determinante para o sucesso da missão, particularmente demonstrado especialmente no troço entre S. Tiago e os Penedos. Vale a pena lembrar, de forma muito ligeira ou superficial, a forma como se ultrapassou esta dificuldade, que a não ser resolvida corresponderia a uma aventura inconsciente e potencialmente suicida.

A investigação levada a cabo por Gago Coutinho com a ajuda de Sacadura consistiu, em primeiro lugar, no equacionamento do problema geométrico. Sem o auxílio do desenho é um pouco difícil explicar, mas apelamos à paciência do leitor para imaginar o esquema.

Em primeiro lugar, impunha-se determinar a deriva da aeronave, ou seja, o desvio ou abatimento da rota. Antes disso, torna-se necessário definir certas variáveis, para que a explicação seja mais fácil para os leitores que não estejam familiarizados com esta matéria. Assim, o rumo da aeronave é a direção magnética a que o avião esta apontado, ou seja, a direção magnética do seu eixo longitudinal, tal com é indicado pela bússola, e que é previamente obtido para efeitos de planeamento, na leitura da carta pelo ângulo que a reta que une o início e fim do troço de navegação faz com o Norte geográfico corrido da declinação magnética no lugar. A rota significa a projeção real da trajetória da aeronave sobre a superfície da Terra; isto significa que a aeronave poderá estar alinhada num dado rumo e a seguir uma direção diferente no terreno; isto é, a aeronave poderá estar a progredir “de lado” por efeito do arrastamento provocado pelo vento. É fundamental perceber esta ideia elementar para compreender a problemática da navegação.

O primeiro passo seria estimar o ângulo de deriva, ou seja, o arrastamento, o que só seria possível com a ajuda de uma referência externa. Ficaríamos com uma ideia aproximada sobre a direção do vento, se nos empurrava muito ou pouco, para a esquerda ou para a direita, mas não poderíamos determinar a sua velocidade, nem precisar a sua direção e, portanto, não poderíamos fazer a correção precisa do rumo; apenas poderíamos fazer correções aproximadas e necessariamente sucessivas.

Para a estimativa do ângulo de deriva utilizou-se uma boia de fumo que deveria cair no mar tanto quanto possível à vertical da aeronave e se ia observando durante o tempo possível; nas asas ou no estabilizador horizontal de cauda estavam pintadas linhas guia para estimar o desvio da rota (o arrastamento provocado pelo vento), ou seja, a deriva da aeronave, alinhando essas guias com a posição da boia. Com esta medição já poderíamos desenhar uma rota estimada, mas ainda assim de forma muito grosseira; o prolongamento do lado do ângulo de deriva dá uma indicação de uma rota possível. Aliás, o fumo já dava uma indicação do vento.

Para determinar a direção e velocidade do vento era necessária uma segunda medição da deriva, lançando nova boia, e rodando a aeronave para o lado para onde sopra o vento e alinhando-o num rumo 45º desfasado do primeiro; a interceção destes dois rumos corresponderia a um ponto, que ligado à interceção das duas rotas calculadas por este processo (prolongamento do lado do ângulo da deriva), daria uma reta que correspondia à medida da direção e velocidade do vento. Este era o problema. Para o resolver aplicar-se ia o cálculo trigonométrico, dominado por ambos os marinheiros aviadores. Repete-se: o vetor que liga a interceção dos dois rumos com a interceção das duas rotas possíveis corresponde à dimensão e direção do vento.

 

O corrector de rumos

Contudo, com as condições existentes a bordo seria muito difícil efetuar o cálculo. Impunha-se, portanto, instrumentar o problema através de um dispositivo que, com a introdução dos dados das duas observações das boias de fumo, permitisse uma leitura imediata do valor da direção e intensidade do vento e da correção a proceder quanto ao rumo, assim como a indicação da velocidade terreno. Poderemos dizer que se tratava de um computador de navegação, a que os seus autores chamaram de corretor de rumos. Com esta informação o navegador poderia efetuar facilmente os cálculos da navegação e determinar com relativa precisão as posições que a aeronave ia assumindo, assim como a previsão das posições futuras cumprindo a execução do plano de navegação.

Em termos muito simples, este corretor consistia em dois ponteiros que rodavam cada um em torno de um eixo fixo a uma prancheta; cada ponteiro era alinhado com o valor do desvio correspondente marcado na escala da barra lateral do instrumento. Com esta marcação, os dois ponteiros cruzavam-se na prancheta. Nesta prancheta estavam desenhados vários semicírculos concêntricos e barras laterais, e linhas guia, com valores relativos à deriva, à velocidade da aeronave, à velocidade e direção do vento, ao rumo da aeronave e à velocidade terreno da aeronave (corrigida do vento). Rodando os dois ponteiros de modo a fazer coincidir cada um deles com os valores respetivos das estimativas de derivas obtidas com a observação, inscritos na escala lateral, obtinha-se uma interseção dos ponteiros; desse ponto de interceção seguiam-se as linhas guia do desenho para a leitura de resultados.

Os dados a ter em consideração eram os seguintes: primeiro o rumo do avião, primeira leitura do ângulo de deriva, segundo rumo do avião, segunda leitura do ângulo de deriva. Os resultados obtidos por leitura, a partir do ponto de interceção dos dois ponteiros, e seguindo os círculos concêntricos da prancheta, e as ordenadas e abcissas, eram os seguintes: direção do vento, velocidade do vento, correção ao primeiro rumo (que era o rumo planeado) e correção para a velocidade terreno.

Insistimos nesta descrição literal do problema geométrico da navegação aérea para sublinhar a enorme importância da invenção do corretor de rumos. Sem este instrumento teria sido muito difícil, se não mesmo impossível realizar a Travessia, especialmente para aqueles troços onde não existia um acidente geográfico relevante no destino ou suas proximidades, ou qualquer outro apoio para a identificação da posição da aeronave, como, por exemplo, um navio numa posição determinada. A amaragem nos Penedos foi o exemplo mais significativo da importância deste dispositivo.

 

A navegação astronómica

Na literatura sobre a Travessia insiste-se muito no facto de se ter demonstrado a possibilidade de utilização da navegação astronómica em meios aéreos, o que é uma verdade indesmentível.

A descrição deste método de navegação não é comportável neste artigo, pela extensão necessária e desproporcionada e pelo facto do autor não ser um especialista nesta área; ficamo-nos por um comentário muito breve e superficial.

As limitações existentes a bordo eram várias, desde logo, a indisponibilidade de um sistema que fornecesse simultaneamente o tempo horário em Greenwich e a bordo, para a determinação da longitude; o facto de só se dispor de um astro, neste caso o Sol, impossibilitaria a marcação do triângulo de posição com várias observações; a instabilidade, trepidação, da posição do navegador a bordo dificultaria a precisão na medição com o sextante. Para determinar a posição seria necessário, teoricamente, saber o ponto da superfície terrestre da vertical do astro (o ponto onde a linha do astro para o centro da Terra, interceta a superfície terrestre), o que se obtinha pela leitura do Almanaque, com a entrada do tempo exato para a observação; neste tempo, deveria efetuar-se uma leitura da altura do astro (ângulo medido a partir do horizonte entre o observador e o astro) – o ângulo entre a vertical do astro, que é a referência de navegação, e a vertical da posição do observador, corresponde à distância entre estas duas posições, transformando ângulos em milhas (em carta de escala uniforme, um grau equivale a 60 milhas); de referir que esta grandeza angular é o complemento da altura do astro medida na posição do observador. Isto significava que o observador se encontrava num ponto de um círculo cujo raio era igual a esta distância, não se sabendo determinar qual seria esse ponto. Para resolver esta ambiguidade ter-se-ia que considerar uma posição estimada, por um outro processo qualquer, e marcar o azimute do astro; foi este problema particular que Gago Coutinho resolveu desenvolvendo um método específico que aqui não vamos desenvolver.

A rota do avião estava a ser permanentemente calculada com o apoio do corretor de rumos. É evidente que existia aqui alguma imprecisão, pelos erros de visualização da deriva com as boias de fumo, e erros normais de pilotagem na manutenção permanente do rumo correto. Contudo, a precisão global foi provada de forma incontestada, e ela resultou da integração dos dois métodos, a nosso ver. Refira-se, a propósito, que os levantamentos com o sextante eram feitos de quarenta em quarenta minutos, aproximadamente, e que se dispunha de cerca de trinta boias de fumo a bordo. Os levantamentos com o sextante foram sempre executados com o horizonte natural visível.

Os marinheiros aviadores sempre tiveram a noção de que a navegação seria efetuada com a integração destes dois métodos e com o cálculo estimado permanente. No trajeto para os Penedos, onde todas as dúvidas seriam possíveis, Gago Coutinho foi perentório no comentário a Sacadura, manifestando não ter qualquer dúvida de que estavam no caminho certo e iriam atingir o ponto final da navegação no tempo exato, o que aconteceu.

 

O ensaio prévio

Definidos os parâmetros fundamentais quanto ao plano da missão e às formas da sua execução, importava proceder ao respetivo teste real, efetuando um voo mais curto. Para o efeito, foram efetuados vários voos locais utilizando diferentes aeronaves, e culminando com o planeamento de uma viagem de ida e volta ao Arquipélago da Madeira. Do anterior, em Outubro de 1920, dois outros aviadores portugueses tinham tentado efetuar este percurso sem sucesso; quando julgaram ter alcançado o Arquipélago depararam-se com condições meteorológicas adversas que obrigaram a regressar e a amarar por falta de combustível, junto a um navio mercante que os recuperou. Esta experiência, muito criticada por Sacadura Cabral, foi uma aventura audaz, não autorizada pelas autoridades oficiais, sem meios que permitissem uma navegação precisa; contudo, mereceu o aplauso da comunicação social e, devido a esta pressão, levou a que os seus autores tivessem sido agraciados com o grau de oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor Lealdade e Mérito.

A viagem de Sacadura Cabral e Gago Coutinho à Madeira, com uma tripulação acrescida de mais um piloto e um mecânico a bordo, realizada em Março de 1921, teve por objetivo fundamental confirmar os resultados dos métodos de navegação estudados e já postos em prática, agora numa distância mais alargada. Foi praticada a navegação integrada, tendo sido confirmada a sua precisão num voo de cerca de sete horas. O hidroavião utilizado foi o Felixstowe F3. Segundo o relato de Sacadura, durante a descolagem de Porto Santo, no regresso a Lisboa, no momento da rotação, a fuselagem bateu na água com violência tendo-se quebrado; uma das boias de fumo soltou-se e em contacto com a água incendiou-se, tendo o incêndio envolvido todo o hidroavião, sem consequências físicas para a tripulação que regressou a Lisboa de navio. Sacadura assumiu a responsabilidade pelo acidente e pediu que o resto da tripulação fosse louvada pelo feito alcançado na viagem entre Lisboa e a Madeira.

Nesta data de Março de 1921, estava, portanto, desenvolvido e testado o sistema de navegação integrada, ou seja, um ano antes do início da Travessia.

 

O contracto de aquisição de aeronaves

Faltava adquirir as aeronaves, realizar a instrução necessária dos pilotos e mecânicos, e planear todos os meios de apoio não só antes da partida, mas em todos os pontos de amaragem e descolagem ao longo da rota. Para este efeito, Sacadura Cabral, que tinha andado pela Europa a adquirir aeronaves sobrantes da guerra, sai para Inglaterra, em Setembro de 1921, para assinar um contracto com a empresa Fairey relativo à aquisição de aeronaves. O hidro Fairey adquirido chegou a Portugal, embarcado em navio mercante, em meados de Janeiro de 1922.

Em relação à seleção da aeronave já fizemos uma breve referência. Deve dizer-se que Sacadura Cabral já tinha uma grande experiência da indústria aeronáutica europeia, desde os contactos que tinha estabelecido para a aquisição de aeronaves para a Aeronáutica Militar, e para o Centro de Aviação de Marinha. Neste sentido, fez visitas para consulta em França e Itália, onde não encontrou nenhum meio que pudesse dar satisfação aos requisitos, tanto em termos de desempenho como em termos de prazos de entrega. Seguiu para Inglaterra onde consultou a Vickers e a Fairey, tendo optado por um modelo desta última. O seu primeiro requisito era uma configuração com dois motores, que foi abandonado por razões orçamentais. Já vimos a opção pelo tipo de motor, baseada fundamentalmente na confiança que o Rolls Royce Eagle VIII lhe proporcionava pela experiência anterior.

Quanto ao alcance, havia uma situação marginal. O hidroavião Fairey IIID, já com as alterações introduzidas, especificação F400, tinha um alcance teórico de 2414 quilómetros, e a distância entre S. Vicente e Fernando Noronha era de cerca de 2600 quilómetros. Com a alteração da rota inicial para S. Tiago-Penedos, a distância passava a ser de 1680 quilómetros, já dentro dos parâmetros do avião.

O combustível necessário para o voo de maior distância já reprogramado (1680 Km) seria de 1045 litros, o que estava dentro das margens previstas. Nas melhores condições (enchimento bem efetuado, bombas a funcionar) o combustível disponível seria de 886 litros no tanque da fuselagem, 110 litros no tanque de reserva e 500 litros nos flutuadores, o que daria um total de 1496 litros; teoricamente, deveria ser seguro, na prática, foi muito marginal (Sacadura disse que amararam nos Penedos com dois ou três litros de gasolina).

Fornecem-se estes números retirados de várias publicações não oficiais para sublinhar que as margens de segurança não eram exageradas. Salvo no caso já referido do troço entre S. Tiago e os Penedos, não houve outras dificuldades quanto a requisitos da aeronave, o que significa que a navegação fora precisa.

Até aos Penedos, o voo decorreu com pequenos incidentes (derrame de óleo, eventualmente por tampa mal fechada, falha da bomba de trasfega, o que obrigou a trasfega manual durante um certo tempo, flutuadores parcialmente danificados que deixavam entrar água aumentando o peso e dificultando a pilotagem, falha da bússola durante um certo tempo entre Gando e S. Vicente, um cabo de fixação do flutuador partido); no final deste percurso ocorreu o acidente que já relatámos, e sensivelmente a meio do trajeto entre Fernando Noronha e Penedos ocorreu uma falha de motor, também já referida, que obrigou à utilização de uma terceira aeronave.

Como também já anotámos, o contracto com a Fairey contemplava o acompanhamento pelo contratante dos trabalhos de fabricação da aeronave. Foi o próprio Sacadura, acompanhado pelo piloto Ortins de Bettencourt, que estiveram destacados na fábrica para verificar o cumprimento da especificação F400, e que procederam ao treino e qualificação na aeronave e aos voos de experiência. Lembra-se que esta especificação, especialmente concebida para esta missão, consistiu em flutuadores maiores, uma extensão da asa para uma maior envergadura, depósitos de combustível suplementares, alteração do habitáculo para a tripulação; todas estas modificações, que não deveriam exceder o peso máximo à descolagem de 3500 quilos, iriam alterar o comportamento aerodinâmico e consequentemente uma técnica de pilotagem específica, para além duma maior corrida de descolagem (os espaços para a descolagem, que eram as baías, condicionados pela direção do vento e pelos obstáculos naturais, não eram infinitos, ao contrário do que seria de supor). Parece-nos oportuna esta lembrança para sublinhar o extremo cuidado do planeamento, no sentido de exigir ao fabricante a construção de uma “nova aeronave” que cumprisse os requisitos da missão.

O habitáculo era exíguo, obrigando a uma conceção especial para acomodação dos pilotos, da sua reduzida bagagem pessoal, da mesa do navegador onde se faziam os cálculos, dos instrumentos, das boias de fumo, da prancheta do corretor de rumos, dos mapas, dos registos de navegação, tudo isto obrigava a uma disposição muito bem estudada para uma utilização que tinha de ser expedita. A comodidade pessoal a bordo não constituía requisito.

 

O plano geral

O planeamento da missão comportava naturalmente o plano de voo, que já referimos, mais o apoio nos terminais de cada troço da Travessia. Foram destacados três navios, os cruzadores República, 5 de Outubro e Bengo; os dois últimos iriam até Cabo Verde, o República iria até ao destino final da Travessia. Estes navios transportavam combustível, peças de substituição, pessoal técnico especializado e material diverso, e serviam de alojamento para os marinheiros aviadores durante a escala.

Os procedimentos da busca e salvamento em águas internacionais ainda eram rudimentares; diga-se, a propósito, que, na atualidade, o alerta está montado de tal forma, com o apoio de satélite, que basta acionar um botão no meio aéreo ou naval em perigo, em qualquer ponto do oceano para ativar todo o sistema de salvamento de forma imediata e automática. No voo entre Fernando Noronha e os Penedos ocorreu uma amaragem de emergência por falha de motor; o cruzador República deu o alerta pelo rádio, quando foi ultrapassada a hora de chegada do hidro a Fernando de Noronha; os marinheiros aviadores foram recolhidos por um navio inglês, nove horas depois do acidente. Em todo o caso, esta não foi matéria específica de planeamento, apenas foi considerada a possibilidade de assistência de uma forma um tanto aleatória; é preciso recordar que nunca fora prevista a instalação de meios TSF a bordo, e só poderia ser dado o alerta em caso de emergência se o hidroavião não atingisse o destino dentro de um prazo razoável em relação ao previsto.

 

Apontamento final

As comemorações do Centenário da Primeira Travessia do Atlântico Sul são perfeitamente justificadas, por se ter tratado de um feito notável, pioneiro, facto importante no reforço da consciência nacional, e que mereceu inscrição nas páginas da nossa História. Tratou-se de uma missão pensada, estudada e planeada com método, em que se assumiram conscientemente os riscos, com um forte apoio do Governo, pressionado por uma opinião pública entusiasta e por grande apoio popular.

A exploração desta demonstração não teve lugar de forma imediata, tanto a nível nacional como internacional, talvez explicável pela sua complexidade ou pela não existência de condições económicas ou sociais que justificassem o risco. Cinco anos mais tarde, uma tripulação de dois pilotos, um navegador e um mecânico fizeram a travessia, com um troço de Cabo Verde-Fernando Noronha em voo noturno, num hidroavião bimotor, com o propósito de efetuar a circum-navegação do globo, repetindo a proeza de Fernão de Magalhães; depois de chegarem ao Brasil e de terem sido recebidos em apoteose, receberam ordem do Governo Português para regressar a Lisboa. Em 1928, tem lugar uma travessia aérea do Atlântico Sul sem escalas, efetuada por um bimotor com tripulação italiana e há notícias de idênticas travessias a partir desta data.

Os dois marinheiros aviadores portugueses personificaram os valores da coragem, audácia, tenacidade, rigor e sentido de missão, e representavam ali a vontade do Povo Português.

Sacadura Cabral planeava igualmente um voo semelhante, mas atravessando os Estados Unidos. Faleceu num acidente aéreo no Mar do Norte quando transportava um avião para Portugal.

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by COM Armando Dias Correia