Um homem de talento faz tudo o que quer.
Um homem de génio só faz o que pode.
O génio provoca, de certo modo, uma limitação: quase que a genialidade se sobrepõe à personalidade, por assim dizer comandando-a, não a deixando desviar-se, obrigando-a a concentrar-se na sua essência própria e a continuamente manifestar essa essência em actos e palavras.
E assim, tudo o que o homem de génio faz e pensa e sente só adquire sentido quando a essa genialidade se reporta: fora da torrente do génio aparece-nos simplesmente um homem normal, talvez mais ensimesmado, menos comucativo do que o vulgar, ou então um homem agitado, insubmisso, desigual, por vezes inconsequente, amiúde desrazoável.
Camões, Einstein e, quem sabe?, Fernando Pessoa, podem constituir exemplo demonstrativo.
Luiz de Camões foi inquestionavelmente um homem de génio. O seu estro poético, irradiante, portentoso, avassalador, mas não raro ágil e subtil, tudo repercutia – e é ele o grande autor da biografia autêntica de Camões de que tão pouco se conhece.
O Dr. José Hermano Saraiva1 designa este modo camoniano de expressão, a partir de uma realidade esfumada ou disfarçada a toques de mistério e fantasia, por «especulação concreta», considerando autobiográfica a maior parte da obra de Camões, sobretudo para a explicação da sua vida sentimental.
A dificuldade está numa leitura, numa chave, que nos permita a descriptação...
Por mais estranho que pareça poucas datas firmes balizam a vida de Camões mas apuraram-se como verosimilmente exactas, ou com aproximação suficiente, as seguintes:
– 1525 – Ano do nascimento.
– 1548? – Partida para Ceuta.
– 1552 (16 de Junho) – Prisão por ferimentos a Gaspar Borges Corte Real.
– 1553 (23 de Fevereiro) – Perdão de Gaspar Borges Corte Real.
– 1553 (17 de Março) – Carta de perdão do Rei em que também se menciona que Camões o vai servir na Índia. (Vd. Anexo I).
– 1553 (24 de Março) – Embarque para a Índia2.
– 1568/1569 – Estadia em Moçambique de regresso do Oriente3.
– 1571 – (24 de Setembro) – Alvará real para a publicação dos «Lusíadas» e pouco depois licença da Inquisição. (Vd. Anexo II).
– 1572 – Publicação dos «Lusíadas».
– 1580 – Morte de Camões.
Luiz de Camões inicia, portanto, o seu serviço militar com 23 anos, na guarnição de Ceuta, provavelmente durante todo o período normal de uma comissão deste tipo, o qual era de 2 anos. Após uma estadia em Lisboa, de cerca de 3 anos, parte para a Índia aos 28 anos, onde permanece 16 anos, regressando ao Reino com 44 anos de idade. Morre em Lisboa com 55 anos, infeliz e pobre, como aliás o foi quase sempre.
Teve como se vê pela fita do tempo, 18 anos de serviço militar activo, 2 em Ceuta e 16 na Índia – o que lhe proporcionou uma experiência e lhe deu uma temática, únicas pela intensidade pela vastidão, pela diversidade. É nesta experiência, assim como na experiência das longas viagens por mar, permitindo-lhe ver com os próprios olhos a faina de bordo e, quantas vezes, sofrer-lhe as agruras, que principalmente assenta a sua poesia épica: constitui ela também a rampa de lançamento de descrições, de imagens, de estados de alma, a ressumarem verdade, a prenderem-nos à acção, a maravilharem-nos com o espectáculo – conferindo ao Poema uma nova dimensão de universalidade.
Os «Lusíadas» dão-nos sem dúvida um testemunho sério – mas são igualmente um extraordinário documentário, de pura e fantástica beleza.
Luiz de Camões era um homem de imensa erudição.
Não interessa para agora investigar como e onde a obteve mas é facto incontestado que a possuía e que profusamente a utilizou: os «Lusíadas» constituem prova concludente.
Os homens de ciência do séc. XIX, tão ciosos do rigor científico, empenharam-se na análise dessa erudição multifacetada e publicaram trabalhos do tipo da «Astronomia dos Lusíadas», «Fauna dos Lusíadas», «Flora dos Lusíadas», «Armas dos Lusíadas», e tantos outros em que focaram os mais variados temas científicos na obra de Camões.
Todos realçaram a exactidão dos conceitos, a propriedade dos termos, a actualidade do saber.
Para além de afincado estudo, todavia, essa erudição assentava em dois pilares fundamentais:
– a observação, a percepção da realidade.
– a experiência pessoal, a participação directa nos acontecimentos.
e sobre eles firmou Camões, praticamente, toda a sua construção poética, todo o seu colorido de expressão, como manifestamente se deduz dos versos dos Lusíadas.
Tentaremos, rapidamente, mostrar, citando o Poema, como era profundo, minucioso e íntimo o seu contacto com a realidade e como, em muitos passos ou comentários de carácter militar que refere, nos faz reviver os factos, nos ilustra a acção, nos descreve uma cena – que, no fundo, relata claramente a sua experiência própria, pessoal. Só quem possuir o dom de comunicabilidade de Camões, e viu e sentiu na sua carne uma operação militar, pode captar-lhe os autênticos frémitos de vida, e, reconstituindo-a, agora pela lembrança, projectá-la para o futuro a vibrar num feixe de luz.
Camões também tinha o génio da evocação.
a) São múltiplos e já conhecidos os exemplos da atitude do «vi, claramente visto», ao longo do Poema, mas pareceu útil apresentar alguns versos demonstrativos do processo descritivo geral da narrativa para depois se aquilatar do valor do depoimento especificamente militar.
É curiosa e incisiva a observação incidental, de pormenor, como, por exemplo,
O ramoso coral, fino e prezado,
Que debaixo das águas mole crece
E, como é fora delas, se endurece.
Canto II, Evt. 774
Onde começa a boca do afamado
Mar Rôxo, que do fundo toma as cores.
X, 97
ou em episódios de defesa contra ataques gentios e mouros quando os atacantes são afundados nas suas almadias, se aterram com o estrondo dos tiros e as nuvens de setas:
Quem se afoga nas ondas encurvadas,
Quem bebe o mar e o deita juntamente.
I, 92
As bombardas horrisonas bramavam,
.............................................................
Amiudam-se os brados acendidos,
Tapam com as mãos os Mouros os ovidos,
Iv, 100
Ali verão as setas estridentes
Reciprocar-se, a ponta no ar virando,
Contra quem as tirou: que Deus peleja
Por quem estende a fé da Madre Igreja.
X, 40
ou ainda nas atitudes de Vasco da Gama
Que presentes me trazes valerosos,
Sinais de tua incógnita verdade?
.....................................................
Que sinal nem penhor não é bastante
As palavras de um vago navegante.
VII, 62
O regimento, em tudo obedecido,
De seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.
II, 83
Mas nada ultrapassa a larga visão da navegação calma
Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argenteas ondas Neptuninas;
As Estrelas Céus acompanhavam
Qual campo revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como por longo tempo costumava.
I, 58
ou das tempestades do mar, da manobra das velas, das âncoras, das bombas de esgotamento, das
...............................................
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem
..........................................................................
V, 16
ou ainda do espanto das trombas de água, da tragédia dos mastros a quebrarem-se sob as vergastadas do vento, do alagamento das naus, da confusão de toda a gente a trabalhar no convés no meio da escuridão pois que apenas
A noite negra e feia se alumia
Co’os raios em que o Polo todo ardia!
VI. 76
Há, evidentemente, ao longo dos Lusíadas pequenos quadros cheios de humor, como aquele em que refere as aventuras de Veloso amigo, que deve ser uma personagem real pois vem designado pelo nome em 6 estâncias do Poema, e aquele que descreve a fuga dos moiros, julgando descoberta a sua traição aos portugueses, a saltarem das naus para o mar, «como em selvática alagoa as rãs», «sós de cabeças na água lhe aparecem», que abundantemente demonstram a mestria e o realismo do Poeta. Porém, o que talvez mais encante é a descrição das grandes cenas, como a batalha de Aljubarrota ou as visitas à entrada de Vasco da Gama em Quilôa, Mombaça e Melinde, autênticos frescos cheios de cor e movimento, que quase nos dão a ilusão de uma reportagem da televisão em directo.
Desculpem-me mais uma citação. O Rei de Melinda dirige-se, no seu barco, à nau de Vasco da Gama para o cumprimentar
Com um redondo amparo alto de seda,
Numa alta e douradas hastea enxerido,
Um ministro a solar quentura veda
Que não ofenda e queime o Rei subido.
Música traz na proa, estranha e leda,
De áspero som, horríssimo ao ouvido,
De trombetas arcadas em redondo,
Que, sem concerto, fazem rodo estrondo.
II, 96
e Vasco da Gama vem recebê-lo no mar, nos seus batéis, «com lustrosa e honrada companhia», assim vestido:
De botões de ouro as mangas vem tomadas,
Onde o sol, reluzindo, a vista cega;
As calças soldadescas recamadas
Do metal que a Fortuna a tantos nega;
E com pontas do mesmo, delicadas,
Os golpes do gibão ajunta e achega;
Ao Itálico modo a aurea espada;
Pluma na gorra, um pouco declinada.
II, 98
E a narração continua sempe deliciosa, sempre rica de pormenores, contada por quem viu recepções iguais e nada inventa: é uma cena real.
Outra cena real, e essa bem pungente, é a do naufrágio de Luiz de Camões, na foz do «Mecom rio», no «Cambbija», que assim é relatado:
Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vem do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
X, 128
Parece pois legítimo afirmar-se que Luiz de Camões mostra, ao longo dos Lusíadas, um agudo sentido de observação e um conhecimento directo da realidade – e que, em muitos passos, é autobiográfico.
b) Luiz de Camões congeminou em Lisboa, muito provavelmente, a ideia de um poema épico mas parece ponto assente que o escreveu em grande parte na Índia, acrescentando-o e ordenando-o depois em Lisboa, quando regressou em 1569. Ganharam assim os Lusíadas em realismo e beneficiaram da experiência do soldado, embora da sua estadia em Ceuta – devem ter sido 2 anos – nada expressamente conste.
As únicas referências directas a operações militares, autenticamente autobiográficas, aparecem na Lírica de Camões5 – Elegia VI, «O Poeta Simónides, falando» e a Canção XIII, «Vinde cá meu tão certo secretário» – e referem-se, a primeira, à conquista de uma ilha que o rei de Porcá possuía, e a segunda à «fúria rara de Marte» que lhe ocasionou a perda de um dos olhos.
As duas composições assim rezam, na parte relevante:
– Elegia VI
Uma ilha que o rei de Porcá tem,
E que o rei da Pimenta lhe tomara,
Fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com uma grossa armada, que juntara
o Viso-Rei, de Goa nos partimos
Com toda a gente de armas que se achara.
E com pouco trabalho destruímos
A gente no curvo arco exercitada;
Com morte, com incêndios os punimos.
Era a ilha com águas alagada,
De modo que se andava em almadias;
Enfim, outra Veneza trasladada.
Nela nos detivemos sós dous dias,
Que foram para alguns os derradeiros,
Pois passaram da Estige as ondas frias.
– Canção XIII
O destino
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora exp’rimentando a fúria rara
De Marte, que nos olhos quis que logo
Visse e tocasse o acerbo fruto seu
(E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo);
.......................................................
Este «escudo meu» é evidentemente a face e fica-se com a impressão de que o ferimento foi produzido pelo fogo, possivelmente uma explosão pela culatra de arma própria ou explosão acidental fazendo saltar faúlhas e esquírolas de ferro: parece de excluir um empate direto de tiro inimigo.
Nas poesias líricas citadas não se descortina um propósito primordialmente militar, talvez porque domina a autobiografia sentimental, e será nos Lusíadas, por via indirecta e interposta pessoa, que havemos de colher a lição do soldado, apurada e afinada pelo génio de Camões.
É possível distinguir, ao longo do Poema e em estrofes nitidamente diferenciadas, três níveis de acção: o do soldado puro, da fileira, que reage ao imediato; o de quem presenciou e participou em espectáculos bélicos e aproveita a descrição deles para situações similares; o do militar que convive com os comandos, que sente as responsabilidades globais e abarca paisagens de conjunto.
Camões defrontou certamente nos seus primeiros tempos de soldados, nas várias operações militares em que tomou parte, ciladas, emboscadas, ardis e perfídias, que muito devem tê-lo causticado, e de que dá repetido testemunho no Poema. Conta, por exemplo, que os mouros, pela calada da noite, nadavam para as naus para lhes cortar as amarras ou, sob falsos pretextos, retinham portugueses em terra para os libertar a troco de resgate e, em certo passo diz:
Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça,
Poem uns poucos diante por negaça.
I. 86
Assim também o devem ter sentido, 400 anos depois, os nosso soldados de África!
O prestígio da bandeira, a emoção que desperta no soldado ao vê-la ondular e assinalar o comando, estão bem expressos nos versos dedicados a D. João de Castro:
......... Castro, que o estandarte
Português terá sempre levantado,
Conforme sucessor ao sucedido,
Que um ergue Diu, outro o defende erguido.
X, 67
O conhecimento das armas na sua imensa variedade era perfeito e só podia provir de quem as manejou assiduamente. Luiz de Camões nunca falha na citação de um modelo, no apropriado de uma designação e é bem pertinente a referência às «minas encobertas» quando uma delas, uma «mina secreta», no cerco de Diu, provoca a morte de D. Fernando de Castro, filho de D. João de Castro:
Fernando........................................
onde o violento fogo, com ruído,
Em pedaços os muros no ar levanta,
Será ali arrebatado e ao Céu subido.
X, 70
A descrição de um combate naval provém flagrantemente de uma testemunha de ouvido e vista, de um combatente que registou na sua retina pormenores que escapam a um observador menos empenhado.
Oiçamo-lo num passo entre muitos:
Das grandes naus do Samorim potente,
Que encherão todo o mar, co’a a ferrea pela,
Que sai com trovão do cobre ardente,
Fará pedaços leme, mastro, vela.
Depois, lançámos arpeus ousadamente
Na capitania imiga, dentro nela
Saltando a fará só com lança e espada
De quatrocentos Mouros despejada.
X, 28
Tão ao vivo é a descrição que nos julgamos a conversar com Luiz de Camões, numa roda de amigos, e a ouvi-lo contar as suas aventuras no Ultramar!
Mas há também o queixume do soldado cansado, um pouco desiludido mal compreendendo a razão de tantos trabalhos:
Porque tantas batalhas, sustentadas
Com muito pouco mais de cem soldados,
Com tantas manhas e artes inventadas,
................................................................
X, 20
que não deixa de lamentar num misto de tristeza e de revolta
«O grande esforço mal agradecido.»
X. 22
Por qual de nós, militares, não perpassou um sentimento semelhante – e há bem poucos anos?
Nas zonas de operações, nos acampamentos, ao cair da noite, já finda a tarefa do dia e ainda não preparada a que vai seguir-se-lhe, as vozes eram as mesmas a verberar a incompreensão e o desinteresse da retaguarda, e, embora se soubesse o porquê de tantas batalhas, censurava-se a falta de apoio, a tibieza da consideração social, a frouxidão do agradecimento ao «grande esforço».
Afirmava-se, todavia, a esperança num comportamento, duma disciplina que tornaria a nossa sociedade mais coesa e a todos irmanaria pois que, de acordo com Camões, todos deveriam servir nas fileiras:
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.
X, 153
Mas o ser soldado devia ter marcado Luiz de Camões e ele sentiu-o bem quando exaltou nos seus camaradas a fidelidade ao comando e o dom total à missão nestes belos versos:
Para vos servir, a tudo aparelhados,
De vós tão longe, sempre obedientes;
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar resposta, prontos e contentes.
X, 148
E já veterano de guerras, cheio de experiência, curtido em mil recontros, acha-se com autoridade para emitir uma opinião:
Tomai conselho só de experimentados
Que viram largos anos, largos meses,
Que, posto que em scientes muito cabe,
Mais em particular o experto sabe.
X, 152
Era o mesmo medo dos nossos soldados de África aos novatos, aos «maçaricos».
Mas Luiz de Camões vive também outras experiências guerreiras, comparticipa certamente em expedições de grande vulto, e deixa rasto dessa visão nas estrofes maravilhosas dos Lusíadas em que conta a História de Portugal.
Abandona o terra a terra, o incidente do combate, o pelejar com «cem soldados» e transpõe do Oriente para Ocidente – sem falsear a verdade – o movimento e o colorido das grandes operações militares.
Aplica novamente a sua experiência à narração, obtém por realidade trasladada uma imagem verosímil, e reconstitui luminosamente a acção.
Por exemplo, a marcha de D. Afonso IV para o Salado:
Lustra co’o Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos ajaezados.
A canora trombeta embandeirada
........................................................
Vai às fulgentes armas incitando,
Pelas concavidades retumbando.
III, 107
ou a reacção dos portugueses à gritaria castelhana em Aljubarrota:
Respondem as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes e atambores;
Alférezes volteiam as bandeiras,
Que variadas são de muitas cores.
IV, 27
A descrição de uma frase da batalha de Aijubarrota reproduz certamente uma cena vivida noutras longitudes mas mantém ajustado o realismo e prova de que quem a descreve a viu.
Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê e de seu propósito mudado.
IV, 42
No episódio da Ilha dos Amores nota-se uma transição entre a experiência pura de combate e o planeamento de uma operação de guerra: aparece-nos o que hoje poderíamos chamar um esboço de guerra psicológica.
Lançam-se rumores, boatos, desnorteia-se o inimigo por intermédio de uma Deusa
Que com cem olhos vê, e, por onde voa
O que vê, com mil bocas apregoa.
IV, 44
e procura-se criar uma impressão favorável, antecipada, a favor dos portugueses:
Vão-a buscar e mandam-na diante,
Que celebrando vá, com tuba clara,
Os louvores da gente navegante,
.......................................................
Já murmurando, a Fama penetrante
Pelas fundas cavernas se espalhava;
Fala verdade, havida por verdade,
Que junte a Deusa trás Credulidade.
Revela-se aqui a intuição do génio – e o conhecimento do homem e dos seus defeitos.
Mas, por outro lado, as cenas de amor com os Portugueses naquela ilha maravilhosa devem ser a reconstituição exacta do que semelhantemente se passava com as tropas na Ásia: são repetição do já acontecido.
Terminada uma operação militar, regressada a força a quartéis e dispensada de mais serviço – qual o alferes ou tenente que o não viu? – a soldadesca, ou a marinhagem, corre para os botequins e para as tabernas, busca companhia que também a procura, e vive umas horas à solta.
Libertos os soldados da pressão da disciplina, da tensão da segurança e do combate, do peso do ambiente que o inimigo cria, e reintegrados num meio que lhes é amável e acolhedor, dá-se, por assim dizer, uma explosão de episódica animalidade, de exuberante contentamento, de prazer e entusiasmos colectivos.
Que há que estranhar, portanto, esta nota bem realista de Camões?
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama,
Que tanto corno a vista pode a fama.
IX, 47
Mas Luiz de Camões certamente que não viveu na Índia apenas vida de soldado. Em 16 anos de estadia teve oportunidade de conviver com gente grada, com experientes capitães, com responsáveis pela governação, com militares e comandantes ilustres.
Moveu-se em plano mais elevado do que o da simples execução e aprendeu as sujeições, as implicações e as consequências que só se tornam aparentes no plano da concepção das operações militares.
Neste último plano colheu ensinamentos que são lição para os altos comandos de todos os tempos: coados pelo seu génio, vasados em forma sintética, quase que os podemos arvorar em normas de Estado-Maior.
Não se limitou só ao mérito da experiência nos combatentes, e aconselhou aos comandantes
Os mais experimentados levantai-os
Se, com a experiência, tem bondade
Para vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.
X, 149
Deu valor à prevenção e, a propósito de Vasco da Gama, assinalou com elogio:
Tudo temia; tudo, enfim, cuidava.
VIII, 86
Reconheceu, sem restrições, a necessidade do estudo das ciências militares
Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e sciente,
...................................................................
Porque quem não sabe arte, não na estima.
V, 97
E formulou um conceito lapidar para o Alto Comando:
Voar com o pensamento a toda a parte,
Adivinhar perigos e evitá-los
Com militar engenho e subtil arte,
Entender os imigos, e enganá-los,
Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
O capitão que diga: Não cuidei.
VIII, 89
Camões foi um soldado, como tantos milhares de soldados portugueses, que se bateu pela sua Pátria e a defendeu.
Mas por si só, pelo seu génio, estimulado, informado e aguçado por um serviço militar de anos, conquistou para a cultura portuguesa uma vitória absoluta – que há de perdurar pelos tempos fora para honra e glória de Portugal.
Um génio, um soldado, um triunfo, para todo o sempre.
Perdão de D. João III a Luiz de Camões6
(Leitura de Dr.ª D. Maria Francisca Andrade, a quem muito agradeço)
Dom Johão etc. A todollos corregedores ouuidores juizes e justiças oficiaes e pesoas de meus Reinos e senhorios a quem esta minha carta de perdão for mostrada e o conhecimento della com dereito pertençer saude faco uos saber que Luis Vaaz de Camões filho de Symão Vaaz caualeiro fidalguo de minha casa morador em esta cidade de Lixboa me enuiou dizer per sua piticam que elle estaa preso no tronquo desta cidade por ser culpado em hũa deuassa que se tirou sobre o ferimento de Goncallo Borges que tinha careguo dos meus arreos por se dizer que andando o dito Goncallo Borges passeando a cauallo no Resio desta çidade dia de corpore Christi na Rua de Sancto Antão alem de São Dominguos defronte das casas de Pero Vaaz que dous homens emmascarados a cauallo se puseram a pessear e zombar com o dito Goncallo Borges e que na dita zombarya vieram aver briguas e arrancar e que elle sopricante acudira em fauor dos ditos emmazcarados conhecendo os por serem seus amiguos. E que de preposito com hũa espada ferira ao dito Goncallo Borges de hũa ferida no pescoço junto do cabello do toutiço estando eu nesta cidade com minha corte e casa da Sopricacam e leuando outros em sua companhia e o dito Goncallo Borges he são e sem aleijão nem desformidade e lhe tem perdoado como se mostra do perdão junto a sua piticam e elle sopricante he homem mancebo e pobre e me vay este anno seruir a India, enuiando me elle sopricante pedir por merçe ouuesse por bem de lhe perdoar a culpa que no dito caso tem da maneira que diz e o estormento de perdão que apresentou pareçia ser feito e asynado per Antonyo Vaaz de Castel Branco puplico tabaliam das notas em esta cidade de Lixboa e seus termos aos XXiij dias do mes de Feuereiro do anno presente de mil bº cinquoenta e tres annos pello qual se mostraua Gonçallo Borges que tem careguo dos meus areos por ser já são da ferida em aleijão nem desformidade pera que o senhor Deus lhe perdoe seus peccados de sua boa liure vontade perdoar ao dito Luiz Vaaz de Camões toda sua justiça que contra elle podia ter e o não queria por ello acusar nem demandar crimemente nem ciuelmente lhe perdoaua toda injurya dano coregimento e todo o que contra elle per dereito podese alcançar comtanto que o dito sopricante se liure do dito caso a sua custa e despesa e me pedia por merçe lhe perdoase minha justiça segundo que todo isto milhor e mais compridamente em o dito estromento de perdam se conthem. E eu vendo o que me elle sopricante asy dizer e pedir enuiou se asy he como elle diz e hy mais não ha visto hũ pareçe com meu passe querendo lhe fazer graça e merçe tenho por bem e me praz de lhe perdoar a culpa que tem no caso conteudo em sua petiçam pelo modo que nella declara visto o perdam da parte que apresenta e paguara quatro mil reais pera piedade e porquanto loguo pagou os ditos quatro mil reais pera piedade ao bispo de Sancthome do meu conselho e meu esmoler segundo dello fuy çerto por hũ seu asynado e per outro de Alexandre Lopez meu capellão e escrivam do dito carguo que os sobre elle caregou em recepta. Vos mando que o mandeis soltar se por al não per preso. E daqui em diante o nam prendaes nem mandeis prender nem lhe façaes nem cousintaes ser feito mal nem outro algũ desaguisado quanto he por Rezão do contheudo em sua petiçam em esta minha carta declarado perque minha merçe e vontade he de lhe asy perdoar pela guisa que dito he. O que asy compry hũs e outros e al não façaes. Dada em esta minha cidade de Lixboa aos sete dias do mes de Março e feita aos dez do dito mes. El Rey nosso senhor o mandou per Dom Goncalo Pinheiro Bispo de Viseu e per o doutor Joham Monteiro chanceler do mestrado de nosso senhor Jhesu Christo ambos do seu conselho e seus desembarguadores do Paço e pitições. Francisco Martinz a fez per per Antonio Godinho anno do nascimento de nosso senhor Jhesu Christo de mil bº Liij anos e eu Antonio Godinho a fiz escreuer.
Comçertada Pero d Oliveira; Concertado Luis
Carualho; Pero Gomez
Parecer da Mesa do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição,
ordenado por alvará real de 24 de Setembro de 1571,
autorizando a impressão dos Lusíadas
Vi por mandado da santa e geral inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luiz de Camões, dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram na Ásia e Europa, e não achei neles coisa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceu que era necessário advertir os Leitores que o Autor para encarecer a dificulidade da navegação e entrada dos Portugueses, na Índia, usa de uma ficção dos Deuses dos Gentios. E ainda que santo Agostinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos livros que compôs de Ordine, às Musas Deusas. Todavia como isto é Poesia e fingimento, e o Autor como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deuses na obra, conhecendo-a por tal, e ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os Deuses dos Gentios são Demónios. E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Em fé do qual assinei aqui.
Frei Bartolomeu Ferreira.
Manuscrito do Museu Britânico sobre as Naus da Índia, 18-I-1979
_________________________________________
* Republicação, Revista Militar N.º 6, junho de 1979, pp. 301-324.
** NOTA – Este artigo reprodus uma comunicação à Academia Portuguesa da História, no inverno passado. Presidente da Direção da Revista Militar.
*** Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1958-1969). Ex-Presidente da Direção da Revista Militar (1969-1980).
1 Elementos Para Uma Nova Biografia de Camões, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, tomo XIX, 1978, pág. 11. Agradeço reconhecido ao Dr. José Hermano Saraiva a generosidade das suas indicações e o cuidado com que me guiou através da bibliografia camoniana.
2 No Livro das Armadas (manuscrito existente na Academia das Ciências de Lisboa) diz-se que em 1553 partiu Fernão da Crus da Cunha para a Índia com 2 naus:
– «Loreto» com D. Payo de Noronha.
– «S. Bento» com Fernão da Cruz Cabral da Cunha.
A «Loreto» invernou em Moçambique e veio a Goa a 30 de Agosto de 1554. A «S. Bento» tornada para Portugal se perdeu na terra do Natal.
Num manuscrito português, «Relação das Naus e Armadas da Índia cora os sucessos delas que se puderam saber, para notícia e instrução dos curiosos, e amantes da História da Índia», que recentemente li no «British Museum», consta que em 23-3-1553 partiram para a Índia 4 naus com o Capitão Mor Fernão de Alvares Cabral tendo sido depois perdidas. 2. Segundo alguns biógrafos foi na nau «S. Bento» que Camões embarcou para a Índia. Neste ano de 1553 não houve mais embarques.
3 Acerca da estadia de Camões em Moçambique conta Diogo do Couto, amigo de Camões, que ele era tão pobre que «comia de amigos». Havia perdido tudo no naufrágio nas costas de Moçambique – e havia-lhe também desaparecido um livro, intitulado «Parnaso», com poesias e estudos de diversa natureza.
4 Todas as citações do Poema são tiradas da edição dos «Lusíadas» de Afonso Lopes Vieira e Doutor José Maria Rodrigues, impressa a Imprensa Nacional de Lisboa.
5 «Lírica de Camões», edição crítica pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Imprensa da Universidade de Coimbra, 932, pág. 308 e pág. 361.
6 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. João III, Liv. 20, fl. 296 V.º.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1958-1969). Ex-Presidente da Direção da Revista Militar (1969-1980).