O Coronel David Martelo, é um dos mais destacados autores militares em Portugal, que vem privilegiando os temas da defesa e da história militar nas suas dezenas de obras publicadas. Entre as mais recentes, destaca-se “25 de abril: do golpe militar à revolução na forma tentada”, editado em 2020.
Este livro constitui a concretização de um sonho antigo, na sequência de estudos já efetuados pelo autor sobre o General António de Spínola e na ausência de obras de atores próximos do presidente da junta de salvação nacional.
Para além de um prólogo e de um epílogo, acompanhados pelas siglas, por uma cronologia e por uma rica e especifica bibliografia (maioritariamente em língua francesa), David Martelo organizou o livro em 8 capítulos. O primeiro, denominado Guerra da Argélia, com o enquadramento da Guerra da Argélia e das posições do general De Gaulle. Os seguintes, dizem respeito aos Sete Tempos da Guerra, entre a chegada ao poder por De Gaulle e a transferência de poderes, Tempos (ou fases) esses em que vai fazendo as comparações entre os processos de decisão na Argélia, na pessoa de De Gaulle e em Angola, Guiné e Moçambique, na pessoa de António de Spínola. Daí, a conclusão que faz parte do subtítulo do livro: a lição perdida por Spínola. Lição perdida também por Salazar, Marcelo Caetano e pelos militares de direita que impediram o caminho natural dos acontecimentos, aliás, planeado em 1961, pelo General Botelho Moniz e também pelo então Tenente-Coronel Costa Gomes (da Geração NATO que infelizmente daria origem à geração MATO).
E porquê esta comparação? Porque, segundo o autor, só encontramos uma situação análoga à descolonização portuguesa de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, com a guerra da Argélia, que teve lugar entre 1 de novembro de 1954 e março de 1962 (em que a França chegou a mobilizar 500.000 homens – Portugal chegou a reunir nos três TO cerca de 150.000). A Argélia não era considerada uma colónia, contrariamente aos casos de Marrocos e da Tunísia. E entre os atores, os que tiveram papel de destaque, na criação de condições para a Paz foram os Generais Charles de Gaulle e António de Spínola.
Vejamos então, muito sinteticamente, os 7 tempos:
1.º Tempo: Da chegada ao poder – acenando a uma política de continuidade; a prudente ambiguidade; o primeiro passo de ambos, De Gaulle e Spínola – “foi tranquilizar os colonos”, com o pensamento na continuidade!
2.º Tempo: Da ilusão de que a simples mudança do regime levaria à paz; a renovação institucional representava para ambos o futuro, mas a realidade não seria bem assim. Terminar os combates e admitir um colonialismo democrático (mesmo com eleições livres) não implicou a Paz;
3.º Tempo: Da oferta da «paz dos bravos» aos guerrilheiros (aqueles que deram início à luta que lhe ponham fim); no caso de Portugal, o protagonista foi Costa Gomes (discurso em Angola, a 4 de maio, e depois corrigido na cidade da Beira); oferta para os Movimentos de Libertação deporem as armas, sem resultados nos dois casos, pois foi entendido como rendição;
4.º Tempo: Da admissão da autodeterminação, com exigências democráticas; aceitação da independência (mas com dúvidas) em França, com o discurso de De Gaulle, a 16 de setembro de 1959, na TV (finalmente, o governo francês admitiu a ideia de uma “Argélia argelina” como se fosse o 25 de abril, com a retirada da alínea c) – claro reconhecimento dos povos à autodeterminação em Portugal, que estava no programa do MFA): Em Portugal, só com a Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, a situação seria esclarecida (perderam-se 93 dias de paz com muitos mortos). Outra questão diz respeito ao “Nó Górdio” da descolonização – dar o exclusivo da representatividade aos movimentos de libertação que combateram as tropas da França e de Portugal (PAIGC, FRELIMO, FNLA, UNITA e MPLA);
5.º Tempo: Da fórmula para obter o cessar-fogo, ou da ilusão de que o cessar-fogo pudesse ser o ponto de partida; Em França, ainda teve lugar o referendo de 1961, que deu legitimidade ao avançar do processo para De Gaulle. A maioria dos franceses queria a paz. Muitas mortes e barricadas e golpes militares (como a dos 4 generais);
6.º Tempo: Da aceitação de que o cessar-fogo só podia ocorrer mediante a cedência às exigências do(s) partido(s) que guerreava(m) a potência colonial;
7.º Tempo: Da negociação da transferência de poderes (negociações e paz – França, com Évian 1962; Portugal, com Lusaca, para Moçambique e Alvor, para Angola). O referendo em França com a vitória do SIM com 99,72% e a independência a 3 de julho de 1962 (a que se seguiriam ainda o linchamento de 700 europeus por elementos armados do ELN – o maior massacre da guerra). A 29 de setembro de 1962, Ben Bella seria eleito presidente do conselho.
Quando analisa a guerra da Argélia, com o êxodo dos europeus – 500.000 só nos meses de maio a julho (de 1.020.000 civis europeus para 180.000 em novembro de 1962 – já com o país independente), e o registo trágico de perto de 500.000 mortos, temos noção clara de que a descolonização das colónias portuguesas foi menos complexa e que deveríamos ter aprendido noutros níveis que não só na decisão política.
Para a escrita deste livro, David Martelo socorreu-se de duas obras essenciais:
– De Gaulle: Mémoirs d'Espoir 1958-1962; livro onde Gaulle escreve todo o percurso que teve para resolver o problema da Argélia (Da Guerra à Paz);
– António de Spínola: Portugal e o Futuro (22Fev74); livro que marca a sua visão do futuro para Portugal.
David Martelo destaca, como se fossem pressupostos assumidos:
– que o empenhamento dos dois heróis militares era uma garantia de Fidelidade à Pátria!
– que para terminarem a Guerra e darem lugar à Paz: De Gaulle dispôs de muito Tempo; Spínola dispôs de pouco Tempo;
– e que o Cessar-Fogo era uma linha de partida para alguns e uma meta de chegada para outros.
Da leitura cuidada da obra destacamos, ainda, a utilização de citações das principais obras para argumentar os seus Tempos da História da Guerra da Argélia (condutora do discurso do livro), as citações da troca de correspondência entre Marcello Mathias (embaixador de Portugal em Paris) e Salazar (escrevia o que sabia que Salazar queria ouvir, mas não deixava de dar alertas para a situação nacional) e a importância da sequência ideal das políticas de descolonização (reconhecimento da independência; libertação de prisioneiros, reconhecimento dos interlocutores; cessar-fogo; eleições livres; negociações; entrega do poder).
No epílogo sublinha algumas mensagens importantes como:
– em termos comparativos, foi a todos os títulos extraordinário o comportamento das tropas portuguesas em África;
– as ditas «descolonizações vergonhosas» foram, todas elas, antecedidas de uma guerra, entre 8 e mais de 13 anos; a «vergonha» decorre da eclosão da guerra e não do 25 de abril, que se destinava justamente a pôr fim ao conflito;
– só por cegueira política ou má-fé se pode censurar a descolonização sem culpabilizar os responsáveis da colonização que não quiseram compreender que a existência da vaga referida por De Gaulle impunha evitar, a todo o custo, que se criassem condições para a eclosão de um conflito armado;
– 93 dias perdidos entre o programa do MFA e a Lei n.º 7/74 foi um enorme erro político. Sem eles, como previsto pelo MFA, teria diminuído a ansiedade, as atitudes de indisciplina das tropas portuguesas, as desconfianças dos ML e a mais rápida obtenção dos indispensáveis cessar-fogos.
Para David Martelo, “Nem França, nem Portugal souberam reconhecer, que a resistência armada aos desejos independentistas, redundaria em pura perda de tempo, de vidas e de bens”.
A terminar, destaca que Spínola não aprendeu com os Tempos do processo da Argélia, mesmo tendo menos tempo. Aplicou o mesmo método esperando resultados diferentes! E por isso não fez mais do que confirmar o princípio anunciado por Friedrich Hegel: “A história ensina-nos que ninguém aprende com a História”.
Mas nós aprendemos com a História do livro de David Martelo!
A Revista Militar agradece a amável oferta do livro e felicita o Coronel David Martelo e a editora “Edições Sílabo”.
Major-general João Vieira Borges
Vogal da Direção da Revista Militar
Vogal da Direção da Revista Militar. Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar.