“A Guiné é defensável e deve ser defendida? se sim, vamos escolher o melhor general disponível para a governar, vamos continuar a fazer o esforço de lá manter os homens necessários e de procurar dotá-los do material possível. Se não, prepararemos a retirada progressiva das tropas, para não prolongar um sacrifício inútil, designando um oficial – general, possivelmente um brigadeiro, para liquidar a nossa presença.”
Marcello Caetano, a Costa Gomes
Depoimento, pág. 180
No dia 28 de Abril de 2011, deixou o número dos vivos o General José Manuel Bettencourt da Conceição Rodrigues. Foi o melhor general de todo o século XX português. A afirmação só me compromete a mim e não pretende ser desmerecedora para qualquer outra figura.
Bethencourt Rodrigues nasceu no Funchal, em 5 de Junho de 1918 – era também conhecido pelo “Zé da Ilha”, uma daquelas designações que enchem o mundo da camaradagem militar –, ia completar 93 anos, em 5 de Junho. Bethencourt Rodrigues gostava de viver e teve uma vida cheia, e não se lhe conhecem vilanias.
A sua carreira militar foi brilhante e culminou com a nomeação, em Setembro de 1973, para Governador e Comandante-Chefe da então Província da Guiné, onde o golpe de Estado ocorrido a 25 de Abril de 1974 o foi encontrar. Declarando não desejar aderir ao golpe de estado em curso, veio preso para Lisboa com outros oficiais.
Já na Metrópole e nada havendo de que o acusar, foi, apesar disso, saneado pela mão do próprio General António de Spínola, apesar de não fazer parte da lista de 42 oficiais generais que foram afastados compulsivamente do serviço activo. Por decisão da Junta de Salvação Nacional, passou à reserva em 14 de Maio desse ano. Enfim, comportamentos que contam para o passivo da “revolução”…
Desde essa data, Bethencourt Rodrigues remeteu-se ao anonimato, não intervindo em nada, não se queixando de nada e recusando qualquer eventual cargo público, sendo excepção ter escrito um livro com outros três notáveis generais, com o sugestivo titulo “África, Vitória Traída” – onde disseram um par de verdades – e de ter redigido um artigo para o semanário “O Jornal” em que repunha a verdade dos factos a propósito das declarações de um senhor almirante, sobre o que se tinha passado aquando da sua saída da Guiné.
Apenas aceitou ser Presidente da Direcção da sua muito querida Revista Militar, cargo que ocupou durante 10 anos e do qual saiu por vontade própria, pois entendia que as pessoas não deviam ficar demasiado tempo à frente das instituições. Uma das muitas atitudes de lucidez que lhe conheci.
Bethencourt Rodrigues entrou para a então Escola do Exército, em 1936. Cursou Infantaria – a “Rainha das Batalhas” – sendo o 1.º classificado do seu curso; entrou para o então Corpo de Estado-Maior, em 1951, com a classificação de “distinto”; frequentou o ”Command and General Staff College”, em Fort Leavenworth, EUA, em 1953; foi adido de Defesa em Londres; comandou o Regimento de Artilharia N.º 1; foi Chefe de Estado-Maior do Quartel-General (QG), em Angola, no início da guerra subversiva – onde esteve na origem da formação das primeiras unidades “Comando” – mais tarde, comandou a frente leste, em Angola (1970-73), onde as tropas sob a sua liderança esmagaram as forças inimigas e praticamente acabaram com a guerrilha, ao mesmo tempo que se promovia uma notável acção psico-social. E ainda teve tempo para, no intervalo da sua intensa actividade militar, ter feito parte do último governo do Professor Salazar, como Ministro do Exército, transitando para o primeiro governo do Professor Marcello Caetano, entre 1968-70, na sequência do curso de Altos Comandos, onde obteve a classificação de “muito apto”.
Finalmente – não cabe neste escrito fazer a radiografia de toda a sua folha de serviços –, quando a situação se tornou delicada no teatro de operações da Guiné, o governo foi procurar o melhor general disponível para tão ingente tarefa e escolheu-o, a ele. Não escolheu um “oficial general de baixa patente” para liquidar a situação…
A situação era, de facto, delicada, mas menos por acção do inimigo. É certo que a última grande ofensiva do PAIGC, congeminada em Conakri por instrutores cubanos e soviéticos, e iniciada dois meses depois do assassinato de Amílcar Cabral (20/01/1973), sem dúvida levado a cabo por elementos da ala mais dura e marxista do movimento que aquele liderava, tinha deixado marcas nas tropas portuguesas. Mas foram estas que ganharam a “batalha”, não o PAIGC…
Mais grave teria sido o ambiente de desmoralização e até de revolta que tocou alguns oficiais do QG, em Bissau, originadas nas desavenças entre o Comandante-Chefe, António de Spínola, e o Chefe do Governo, Marcello Caetano.
Foi esta a situação (muito resumida) que o novo governador, Bethencourt Rodrigues encontrou quando chegou a Bissau. Não se pode ter certezas quanto ao evoluir de acontecimentos históricos que são subitamente interrompidos, mas estamos em crer que o novo Comandante-Chefe iria sair vitorioso dos desafios com que se confrontava, a não ser que parte dos oficiais que lá serviam decidissem não cumprir com os seus deveres militares.
E tal convicção radica-se na afirmação supra de o considerar o melhor general português do século XX. Porque o afirmamos?
Bethencourt Rodrigues tinha um porte distinto e obteve sucesso em todas as missões de que foi incumbido e reunia em si um conjunto de características raras de se juntarem na mesma pessoa.
Ao chegar ao topo da carreira, este oficial possuía, em simultâneo, a competência operacional e de comando de tropas, tanto em tempo de paz como em campanha, e uma elevada aptidão para trabalhos de planeamento e estado-maior. Bethencourt Rodrigues conhecia o género humano, sabia escolher os homens e não era afectado pela lisonja. E para um homem que tinha ocupado os maiores cargos, não se lhe vislumbrava uma ponta de afectação ou de vaidade.
Tinha uma enorme capacidade de trabalho e a sua integridade e carácter eram à prova de bala. Era um português inteiro e, num país de tricas e azedumes constantes, gozava do raro privilégio ao respeito geral. De facto nunca ouvi “dizer mal” do general em qualquer ambiente. Bethencourt Rodrigues nunca prejudicou o seu país, ilustrou-o, e nunca manchou a Honra da Instituição Militar. Foi até condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma.
E das muitas virtudes militares que possuía, quero destacar uma: a Probidade que já alguém definiu como o “asseio da alma”! Ora, tudo isto configura uma personagem notável que, infelizmente, as novas gerações de oficiais e sargentos já não conhecem.
A sua memória está apenas registada numa das salas de aulas do actual Instituto Universitário Militar, em Pedrouços, onde foi ilustre professor.
Permito-me afirmar que é curto e tal falha merece ser colmatada. Nada melhor para o fazer do que condecorá-lo a título póstumo, com a Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito. Seria da mais elementar justiça fazê-lo.
Com a morte do general Bethencourt Rodrigues, a Infantaria perdeu um dos mais dilectos descendentes do seu Patrono, o grande Nuno de Santa Maria; o Exército viu desaparecer um dos seus comandantes mais ilustres e a Nação ficou pobre de um dos seus melhores filhos.
Eu perdi um exemplo e um amigo.
Guardarei, porém, um orgulho: o de poder dizer que o conheci e com ele privei.
Foi das melhores coisas que me aconteceram na vida.
E tem-me feito muita falta.
Tenente-coronel João José Brandão Ferreira
Sócio efetivo da Revista Militar