Nº 2676 - Janeiro de 2025
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Crise e o Nuclear (“Coup de semonce”)
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

“Coup de semonce”*

1. Introdução

A ameaça por parte do Kremlin do uso de armas nucleares, no contexto da situação internacional que vivemos e com a guerra de agressão da Rússia na Ucrânia, fez-me recordar acontecimentos e experiências relacionados.

Nos artigos que escrevo, uso, por vezes, a primeira pessoa do singular e, outras vezes, a primeira pessoa do plural. A primeira do singular, quando pretendo expressar ideias muito próprias ou experiências pessoais. A primeira do plural, quando aquilo que escrevo representa muito do colectivo, do saber conjunto, da pertença, da Instituição Militar, do Exército, da nossa doutrina. Chego por vezes até a empregar um quase “nós-majestático” quando refiro o povo português1.

Faço notar, também, que, por vezes, nem sequer escolho conscientemente se escrevo em nome do “eu” ou do “nós”. Mas, com a idade, inclino-me a revisitar mais a nossa experiência de vida, o que faz emergir o “eu”, apesar de o mais importante ser o “nós”, quer seja Portugal, a Europa, a Instituição Militar, a política, a estratégia, a guerra ou a paz.

Julgo que neste escrito as conclusões e sugestões constantes das notas finais são importantes para o “nós”, mas, porque são decorrentes de uma narrativa de experiências pessoais, tive de fazer um uso muito pronunciado do “eu”.

Normalmente escrevo para a Revista Militar por pensar que aquilo que trato, as minhas reflexões sobre assuntos históricos, estratégicos e militares, possa ter algum interesse para quem nos leia e porque, além disso, julgo que, como dizia António Sérgio, estes escritos poderão produzir alguma “agitação intelectual”. O escrito de hoje, em Dezembro de 20242, tem um fio condutor forte mas muito sinuoso, lembra recordações, fala de aprendizagem e ensino militar superior e termina com uma tentativa de súmula didáctica.

 

2. Grandes Marcos e pequenos sinais

Após uma critica cerrada que a comunicação social fez às minhas declarações na TSF e na RTP, quando eu disse ser mentira as mortes que diziam ter havido na NATO, resultantes do uso de munições de urânio empobrecido, vários jornalistas assediaram dirigentes políticos, pretendendo saber a sua opinião sobre o assunto, nomeadamente porque vivíamos um agitado período de eleições presidenciais. Lembro-me de que foram bastante infelizes nas respostas que deram, e o Dr. Jorge Sampaio, Presidente da República, que desconhecia o que eu dissera, quando interpelado, disse “não comento cabos de guerra”. Quase de imediato recebi telefonemas pedindo para eu comentar aquela frase. Respondi que ela não se referia a mim, porque eu era apenas o Chefe de Estado-Maior do Exército e “cabos de guerra” eram pessoas como César, Gustavo Adolfo, Frederico da Prússia, Napoleão Bonaparte e outros conhecidos chefes militares. Uns dias mais tarde o Dr. Jorge Sampaio, pessoa com a qual tive uma excelente relação, após uma reunião do Conselho Supe-
rior de Defesa Nacional, pediu-me desculpa e explicou-me que acabara de sair de uma reunião difícil ligada à sua possível reeleição, quando fora confrontado com aquela pergunta.

A excitação da comunicação social arrefeceu mas, mais tarde, fui chamado à Polícia Judiciária e constituído arguido. Apresentada a minha defesa, provou-se que aquilo que a comunicação social difundia acerca das minhas declarações na TSF e RTP não era afinal aquilo que eu dissera e a juíza proferiu um “despacho de não pronúncia”.

A memória desta resposta ao jornalista, na qual mencionei Bonaparte, fez-me recordar algo que sempre me intrigou naquela personagem, e também o contacto que tive durante dois anos com uma potência que tem capacidade nuclear, quando frequentei o Curso Superior de Guerra na École Militaire, em Paris. De facto, sendo Napoleão um génio militar que se distinguiu em numerosas campanhas e batalhas, como a de Austerlitz, um verdadeiro líder, por conseguir que as suas ideias e objectivos passassem a ser também as dos seus subordinados, e, sendo alguém que não era alheio ao narcisismo, considerou o Code Napoléon como a sua glória. O Código é, de facto, um marco notável na administração de uma unidade política. Reparo, todavia, que todos nós, por vezes também a latere da nossa principal actividade e nas devidas proporções, vivemos momentos, ocasiões e pequenos factos que pensamos serem merecedores de alguma reflexão, particularmente no actual ambiente de crise e guerra a que assistimos.

 

3. Curso Superior de Guerra – Acto I

A “promoção”3 de 1978/80 tinha cinquenta oficiais franceses, que tinham conseguido a sua admissão por concurso, e ainda outros cinquenta, que tinham obtido um brevet téchnique em diversas áreas, como mísseis, comunicação social, direito, áreas de engenharia, etc.; e dezoito oficiais estrangeiros. Os oficiais estrangeiros, com excepção daqueles que tinham uma formação militar adquirida em França, como o do Senegal que até pertencera ao exército francês, o do Líbano4 e o da Costa do Marfim5, eram bastante críticos do “chauvinismo” dos franceses, mas eu era mais moderado, porque “chauvins”, por razões de nacionalismo, são quase todos. Mas também é verdade que nos franceses nota-se mais. O oficial belga, porque os belgas são, como os alentejanos, objecto de anedotas, disse numa sessão em plenário que “o melhor negócio do mundo era comprar franceses ao preço que eles valem e vendê-los ao preço que eles julgam que valem”…

A “promoção” era dividida em grupos de catorze a quinze estagiários, tinha apenas um professor, durante seis meses, que orientava os trabalhos, designava os responsáveis pela sua direcção, ouvia as apresentações e avaliava as intervenções orais e os trabalhos escritos. Quase diariamente havia uma sessão em anfiteatro sobre o assunto que estava a ser tratado, normalmente por conferencistas exteriores à ESG (Escola Superior de Guerra).

Os trabalhos eram feitos em comité, ou pela “construção” de Quartéis-Generais quando se tratava de temas tácticos. Os comités e a maioria dos subcomités eram dirigidos pelos oficiais para isso designados e, muito raramente, eram atribuídas aos oficiais estrangeiros funções de direcção. Igualmente, nos trabalhos tácticos os oficiais franceses ocupavam as principais funções de estado-maior e os estrangeiros eram apenas adjuntos duma repartição ou de uma direcção. Esta secundarização dos oficiais estrangeiros era natural, por se tratar de um curso em que os oficiais eram classificados para ascender na carreira e desempenhar as principais funções na estrutura hierárquica militar francesa6. Mas, apesar deste ambiente, notei sempre que havia uma certa consideração pelo oficial português, certamente devido à impressão deixada pelos portugueses de anteriores “promoções” que, como eu, tinham feito em Portugal, durante três anos, um muito exigente curso de estado-maior, e eram professores no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), em Pedrouços7. Lembremos apenas que o então Coronel Firmino Miguel teve que interromper o seu curso, em 1974, porque foi nomeado Ministro da Defesa Nacional.

Esta consideração notava-se em “pequenas-grandes” coisas, como no fim de um debate perguntarem qual era o meu parecer, ao ponto de, num dia em que assistíamos a um exercício de militar, o general comandante da ESG8, diante de toda a assistência, ter-se virado para mim e ter dito: “Comandante Barrento, gostava de conhecer a sua opinião”. Respondi que aquilo era o que nós na recente guerra em África tínhamos pretendido fazer, mas no exercício a que assistíamos a utilização, comando e controlo dos helicópteros era feita pelo comandante da força. Nós, no Ultramar, tínhamos tido de coordenar com a Força Aérea, ramo a que os helicópteros pertenciam. Este pequeno diálogo sucedeu, certamente, pelo facto de termos terminado há pouco tempo uma longa guerra contra-subversiva, cuja doutrina vários países desejavam conhecer.

Uma outra situação sucedeu quando o professor do grupo me abordou para saber se eu poderia substituir o oficial francês que estava designado para comandante da artilharia no Quartel-General de uma Divisão que ia realizar um exercício de postos de comando na região de Les Andelys, porque nesses dias ele tinha que fazer os saltos nocturnos que os paraquedistas eram obrigados a fazer anualmente9. Aceitei o convite, fiz os meus reconhecimentos, conhecia bem as características dos materiais e dos radares e fiz o estudo da situação de artilharia como aprendera, com manobra de observação, manobra de materiais e manobra de fogos. Porque este estudo era bem mais claro e lógico que o francês, as minhas propostas foram ouvidas com alguma surpresa e o General-Comandante, que fora ao campo ouvir as apresentações, fez-me algumas perguntas.

Note-se que nos anos de 1960, face ao desenvolvimento das armas nucleares nos EUA e na URSS, o valor da dissuasão, em que o General de Gaulle investira, perdera credibilidade, pois deixava de ter lógica, se é que alguma vez a teve, uma política do “tout ou rien”. A França parecia ter sido apanhada em “flagrante delito” de não dissuasão. Para resolver este impasse, sem ferir o seu orgulho nacional, teve que desenvolver uma arma que lhe permitisse num primeiro tempo do conflito advertir da sua intenção de utilizar o arsenal nuclear estratégico. Foi este o caminho para a génese da doutrina de emprego das armas nucleares tácticas10. Mas a Divisão que trabalhávamos no nosso tema táctico não tinha armas nucleares, por estas não existirem neste escalão. Caso tivesse, teria de no meu estudo aplicar os conhecimentos que adquirira no IAEM na cadeira de “Técnica de Emprego e de Armas Nucleares”.

 

4. Curso Superior de Guerra – Acto II

Num dos semestres, do segundo ano do curso, frequentámos um curso “inter-ramos” das Forças Armadas, o que nos permitiu ter um conhecimento alargado dos meios, bases e problemas da Marinha e da Força Aérea, inclusivamente as suas possibilidades nucleares. No outro semestre, então já só com os cinquenta “oficiais-concurso”, fizemos individualmente estágios nos Quartéis-Generais das Regiões Militares, num Regimento de qualquer arma11 e numa Prefeitura. Para além dos estágios, estudámos e tratámos de grandes temas como “a situação internacional e geopolítica” “o potencial humano para o Exército”, “o desenvolvimento tecnológico da área militar”, “a reanálise do ensino militar superior” e alguns temas, como o da intervenção da Instituição Militar numa situação de crise.

Neste último tema que durou cerca de duas semanas, o cenário era o de uma situação de crise entre a União Soviética e a China, por ambas as potências pretenderem a posse e utilização de umas ilhas no mar da China. Constituíram-se dois grupos, um para cada uma das suas superpotências e numa primeira fase aquilo que se pretendia era que estudássemos o potencial estratégico de cada uma das superpotências. Após este estudo, os dois grupos apresentavam as suas conclusões, procurando sublinhar as capacidades disponíveis e também as principais limitações. Numa segunda fase, cada um dos grupos estudava as propostas, que deveria apresentar ao poder político de cada uma das superpotências, tendentes a resolver o diferendo, procurando evitar que se chegasse à situação de guerra.

Apesar de, na direcção dos grupos, nos temas e nas funções superiores dos estados-maiores das unidades tácticas, as nomeações recaírem sempre sobre os oficiais franceses, fui nomeado para a direcção do grupo (cerca de trinta e cinco oficiais) da URSS.

O estudo de potencial militar, de cada uma das superpotências, foi feito com os dados conhecidos e com debates prolongados dentro de cada grupo, seguindo-se a exposição do resultado dos estudos feitos a toda a “promoção”. A última fase foi a da apresentação das medidas que estes “estados-maiores” das duas superpotências apresentavam às respectivas direcções políticas.

Nas propostas que apresentei, incluí uma panóplia variada de acções, como a mobilização, as alterações do dispositivo militar, os reforços de certas unidades, a deslocação de meios navais, a movimentação de aviões, alterações no estado de alerta, acções de guerra electrónica, etc. A minha última proposta, que só deveria ocorrer se as outras não tivessem evitado a guerra, era a de lançar uma arma nuclear de baixa potência numa zona não habitada do deserto de Gobi. Esta proposta, que era como um “coup de semonce”, foi recebida com surpresa e deu origem a um prolongado debate.

No final da intervenção, apresentei aquilo que no meu entendimento são princípios a ter em conta na gestão das crises e que devem estar sempre presentes antes de efectuar qualquer acção. Chamei a estes princípios “Os dez mandamentos da crise”, e isso deu origem a um documento que a ESG passou a incluir num futuro dossier sobre a gestão de crises. Também em Portugal, o general Loureiro dos Santos pediu-me para que os “mandamentos” fossem incluídos no seu livro de estratégia, apesar de ele não concordar com o “décimo” que dizia “no mínimo evitar o conflito nuclear”, argumentando que isso ia para além da crise, porque já havia guerra. No meu entender, não tinha razão, porque podia acontecer sem que houvesse guerra, sendo apenas um acto de dissuasão para a evitar. Mas, caso já tivesse começado a guerra, temos de admitir que há níveis de guerra diferentes e manter a guerra ao nível convencional é melhor do que subir para o patamar nuclear.

 

5. Notas Finais

– Apesar dos traumas relativos à não admissão ou exclusão, o Curso de Estado-Maior, tirado no IAEM, era uma óptima formação superior militar nas áreas de pesquisa e estudo, disciplina de trabalho em grupo, organização, estratégia, táctica e logística.

– A invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra que originou tornaram mais nítida a crise entre a Rússia, autoritária e expansionista, e o Ocidente, que se mostrou inicialmente muito coeso, mas onde hoje já se notam certas fissuras e fraquezas.

– A finalidade da gestão de uma crise é evitar a guerra, mas deverão ser salvaguardados os principais direitos e regras da convivência internacional.

– É importante conhecer qual será o procedimento da nova Administração Americana na gestão desta crise.

– O poder da ameaça da utilização de armas nucleares perdeu o estatuto de contenção de grandes guerras convencionais.

– Apesar do apoio dos Estados Unidos da América durante a I e a II Guerras Mundiais na Europa, não é destituída de lógica a suspeição que o general De Gaulle tinha em relação a um empenhamento futuro.

– Diferentemente da “boutade” “Vive le Québec libre!”, a dúvida de De Gaulle quanto à protecção auferida dos EUA permite que um país da União Europeia disponha de capacidade nuclear.

– A Rússia já fez um ensaio de um quase “coup de semonce” nuclear, lançando sobre a Ucrânia um míssil balístico hipersónico de ogivas múltiplas e de médio alcance, ainda que sem ogivas nucleares.

– “Os dez mandamentos de gestão da crise”, que também relembrámos na Revista Militar, número 4, Abril de 2022, merecem ponderação dos decisores políticos de ambos os lados, para que não se cometam erros irremediáveis.

 

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* Tiro de aviso.

1 Certamente pelo facto de a Revolução Francesa ter acontecido há muitos anos.

2 Estou a datá-lo porque, quando for publicado, poderão ter sucedido alterações significativas.

3 Designação usada para referir um curso da École Militaire.

4 O oficial libanês era o Tenente-Coronel Michel Aoun, excelente camarada e amigo, que comandou as forças armadas libanesas aquando da invasão da Síria, e foi por mais de uma vez Presidente da República do Líbano. Os oficiais estrangeiros faziam, em anfiteatro, uma conferência sobre o seu país. Quando fiz a minha conferência chamei à atenção para a posição de charneira do nosso país, entre o mar e a terra, entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, entre continentes, entre religiões. No final da sessão Michel Aoun veio ter comigo e disse-me “percebi bem a tua preocupação do “país-charneira”, mas olha que no meu país é bem mais complicado”. Tinha toda a razão…

5 O Major Guei conseguiu a presidência do seu país com um golpe de Estado, e foi depois deposto por outro golpe de Estado.

6 Durante o tempo que estive em França, todos os comandantes dos Regimentos e órgãos principais tinham feito o Curso Superior de Guerra.

7 A “política” das nomeações para cursos superiores no estrangeiro era a de adquirir conhecimentos e confrontarem-se metodologias de ensino para melhorar e aperfeiçoar os cursos que ministrávamos.

8 O comandante da ESG era o General de Corpo do Exército Arnaud de Foïard, um “grand seigneur”, que foi comandante da Divisão paraquedista e que gostava muito de Portugal, nomeadamente porque, quando jovem resistente, depois de capturado, conseguiu evadir-se e decidiu juntar-se à Legião Estrangeira Francesa no Norte de África. Depois de ter sido preso em Espanha, foi através do nosso país que saiu, em Setúbal, e conseguiu integrar-se nas forças da França Livre.

9 O professor sabia bem que eu era oficial de cavalaria e não de artilharia.

10Barrento, António, Reflexões sobre temas militares, IAEM, Lisboa, 1991.

11O meu foi feito no regimento de caçadores alpinos de Reims.

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by COM Armando Dias Correia