Na opinião de muitos militares, o general Bethencourt Rodrigues foi o melhor general português do séc. XX e sê-lo-ia também em qualquer outro exército, dado o conjunto de qualidades militares e humanas que reunia em si e também a excepcional preparação militar que possuía. Desde há já muitos anos, ainda em vida do general, que se ouvia falar numa homenagem mas nunca se julgou oportuno fazê-lo, talvez pelo facto das circunstâncias que com ele ocorreram no dia 26 de Abril de 1974, na sequência do Golpe Militar ao qual (e talvez até por causa delas) não aderiu e assim este ilustre militar corria o risco de passar ao esquecimento.
Bethencourt Rodrigues foi um professor e Director dos Cursos de Estado-Maior de excepcional valia, tendo sido aposta por esse motivo uma placa evocativa à entrada do seu gabinete de então; de 1961 a 1963, foi Chefe de Estado-Maior da Região Militar de Angola; em 1968, foi nomeado Ministro do Exército, nomeação que aceitou em nome do serviço à Pátria, pois não era cargo que o entusiasmasse; de 1971 a 1973, foi comandante da Zona Militar Leste; em 1973, foi designado Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Em todas estas importantes e difíceis funções, relacionadas com a Guerra do Ultramar, foi sempre considerado um Vencedor. O general Bethencourt Rodrigues foi, de facto, um grande Português, um grande Militar, um comandante de aguda inteligência muito apreciado pelos bravos e tinha o dom de fazer forte a fraca gente.
Não podia eximir-me a escrever umas palavras nesta prestigiada Revista sobre o general que a presidiu durante dez anos e nos deixou há já 13 anos. Haveria certamente alguém que o poderia fazer com maior conhecimento de causa, mas não seria da sua geração. Bastará dizer que o seu Comandante da 2.ª Repartição em 1961, o general Salazar Braga, faleceu recentemente com 100 anos de idade e o tempo dos que o conheceram vai passando. Verificando-se que a minha geração (que é a dos que agora têm 80/90 anos), a última que conheceu verdadeiramente o general Bethencourt Rodrigues, temia que ele caísse para sempre no esquecimento, alguns camaradas desafiaram-me por ter mostrado vontade de fazer algo para que tal não sucedesse. Não sendo eu um oficial do Estado-Maior, não tendo trabalhado directamente com ele enquanto exercia as funções de Ministro do Exército, nunca tendo estado no Leste de Angola e tão pouco na Guiné, a tarefa tornar-se-ia complicada, pois escrever sobre o general José Manuel de Bethencourt Rodrigues, personalidade que possuía excelsas qualidades humanas, intelectuais, criativas e militares tão acentuadas e raras de encontrar numa só pessoa, constituiria um desafio.
Não me seria difícil escrever sobre o seu trabalho como Chefe de Estado-Maior do Quartel-General da Região Militar de Angola e nem como vencera a guerra no Leste de Angola – diz-se que, em todo o mundo, nunca uma guerra subversiva foi vencida com meios convencionais, mas ele conseguiu-o; também domino muito bem a Operação Madeira, que estava prestes a culminar com a apresentação da UNITA, por ter estudado o processo na íntegra, mas era totalmente alheio à sua passagem pela Guiné. Valeram-me os contactos com diversos oficiais que trabalharam com ele naquela ex-Província Ultramarina, nomeadamente o coronel “comando” Rui Guerra Ribeiro, que foi Ajudante de Campo do general e tudo tinha minuciosamente registado. Agradeço desde já à família do general Bethencourt Rodrigues que me ajudou a localizá-lo. Foram-me também de grande utilidade os vários textos constantes dos Estudos Gerais da Arrábida sobre a Guerra do Ultramar (e da Guiné em particular) a que recorri com grande proveito.
Na falta de coragem, que não de vontade, para organizar uma grande homenagem nacional, fui autor do livro Um grande militar português – general Bethencourt Rodrigues e co-promotor de uma homenagem militar em honra a tal ilustre general, que teve lugar no dia 5 de Dezembro de 2024 no Instituto Universitário Militar e foi presidida por S. Ex.ª o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas e onde esteve presente S. Exª o Chefe de Estado-Maior General do Exército e o Ex.º Director do Instituto Universitário Militar, o que constituiu o reconhecimento das Forças Armadas, que a Revista Militar se prontificou a apoiar desde o início.
O livro que escrevi não é de análise política e diz respeito apenas à pessoa e à obra do General Bethencourt Rodrigues enquanto militar. Já após a edição do livro tive contacto com outras fontes que enalteciam o valor de Bethencourt Rodrigues ou clarificavam o seu pensamento militar, informações que não constando no livro refiro agora para que possam passar à posterioridade. Sendo o general uma pessoa simples, nunca deixou de manifestar, de forma educada em diversas entrevistas e desabafos, as suas queixas quanto ao que se passara com ele e só o fez quando foi atacado com argumentos falaciosos.
* * *
Contactei com o general Bethencourt Rodrigues escassas vezes, mas as suficientes para o poder caracterizar como um militar de personalidade muito forte, humanamente irrepreensível e de uma competência inultrapassável, poucos e breves momentos me marcaram: quando eu era um jovem tenente e ele era o Chefe de Estado-Maior do Quartel-General da Região Militar de Angola; depois, quando fui professor do então IAEM (Instituto de Altos Estudos Militares) onde ele, então já general na Reserva, ia à biblioteca de manhã e jogar ténis de tarde. Certa vez deparou comigo a ler o livro que tinha escrito – II Guerra Mundial – Lendo as Memórias do Marechal de Campo Montgomery – falou comigo com grande entusiasmo sobre aquele chefe militar inglês e os seus conceitos operacionais na Segunda Guerra Mundial e terminou com alguma modéstia: “agora tenho a certeza que, pelo menos, há um leitor da minha despretensiosa publicação, Obrigado pelo seu interesse”. Tivemos mais alguns encontros, fugazes e sempre na biblioteca e só voltei a ter um novo contacto com o general Bethencourt Rodrigues muitos anos depois, quando eu servia na Comissão para o Estudo das Campanhas de África, onde ele entregara o seu acervo documental. O general precisava de consultar alguns dos seus documentos para fazer uma conferência no IAEM e fui eu quem o recebeu. Ao devolver os documentos, juntou o rascunho da conferência, que serviu para eu me elucidar e interessar pelo que se passara no Leste de Angola. Aprendi como ali se alcançara, sob seu Comando, uma vitória militar das FAP. Porém, o contacto que mais me marcou e não mais esquecerei ocorreu em 2002, na apresentação do meu livro Angola 1966-1974 – Victória Militar no Leste, que constitui o desenvolvimento mais investigado do rascunho da sua conferência. No final, chamando-me pelo nome, a ele me dirigi, abraçou-me demoradamente e, muito comovido, disse-me umas palavras que não percebi.
Sempre ouvi dizer, repito, vindo das mais variadas origens, que o general Bethencourt Rodrigues foi o general mais completo e competente do séc. XX. Embora seja tentado a seguir essa opinião, que se foi generalizando, não serei tão categórico tanto mais que foi ele próprio quem afirmou que o General Silva Freire, 10 anos mais velho, desaparecido no Desastre do Chitado, em 1961, era “o melhor general e o maior estratega militar português” e muito havia a esperar dele. Conhecia-o bem pois havia sido seu professor e o Director do seu Curso de Estado-Maior. Segundo Bethencourt Rodrigues, a quadriculagem do Norte de Angola, que Silva Freire fizera influenciado pelos seus estudos em Paris sobre a Guerra da Argélia e que ele próprio continuava a aperfeiçoar, fora uma obra-prima, opinião que o general Holbeche Fino partilhava. E em seis meses Silva Freire praticamente controlou o Norte de Angola, de tal forma que a colheita de café na zona sublevada se fez integralmente. Curiosamente, os generais Silva Freire e Bethencourt Rodrigues viram o seu trabalho interrompido, embora por motivos diferentes, não lhes sendo possível revelar todo o valor que possuíam. Não fora o caso de conhecer muito bem o general Silva Freire, sobre o qual também escrevi uma biografia militar, e seria tentado a alinhar sem dúvidas com os que colocam Bethencourt Rodrigues no cume da competência. Mas o general Silva Freire teve responsabilidades operacionais que enfrentou de forma brilhante durante apenas seis meses e o general Bethencourt Rodrigues esteve 24 meses em Angola e sete na Guiné. É esse factor que, em minha opinião, não permite compará-los. Não me restam porém dúvidas que eram dois excepcionais generais, ambos discípulos do ilustre e mítico Chefe do Estado-Maior do Exército, General Barros Rodrigues, herói da Grande Guerra, onde foi condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, que escreveu a propósito de um relatório que o general Silva Freire fizera sobre a defesa da Índia Portuguesa: “...é um militar de inespectáveis recursos, difícil de ser igualado”. Esta apreciação reforça a minha indecisão. Julgo pertinente referir também que o general Silva Freire, no início dos anos 50 do século passado, por ordem do Ministro do Exército, esteve em Pau (França), onde tomou contacto com todos os Bigeard das Guerras da Indochina e da Argélia e produziu o primeiro documento referente à criação de um Corpo de pára-quedistas em Portugal. Por seu lado, o general Bethencourt Rodrigues, ainda tenente-coronel, em coordenação com o general Holbeche Fino, recebeu o jornalista Dante Vecci, cuja experiência com os comandos o levou a fundar em Zemba o CI 21, em finais de Julho 1962, um centro embrionário para a instrução daquela tropa de elite. Bethencourt Rodrigues justificou a localização do centro em área operacional de forma curiosa: “quando dava instrução em Mafra tinha que simular o inimigo, no curso de Zemba os instruendos têm o inimigo à disposição”. E assim temos Silva Freire e Bethencourt Rodrigues também ligados à fundação de tropas de elite, os pára-quedistas e os comandos, no seio das Forças Armadas de Portugal.
Portugal sempre teve bons generais e certamente os continuará a ter, mas a figura de Bethencourt Rodrigues é única, porque o General foi escolhido por três vezes para resolver situações militares de campanha muito difíceis, tendo-se mostrado sempre um vencedor.
Em 1961, na sequência do Desastre de Chitado que vitimou o general Silva Freire e o seu Chefe de Estado-Maior, foi escolhido pelo general Holbeche Fino, que ia substituir o malogrado Comandante da Região Militar de Angola, para ser o seu Chefe de Estado-Maior e exerceu essas funções de forma muito vincada e competente, de onde se destaca o Plano Centauro Grande para a rendição das Unidades; de resto, o general Holbeche Fino, a partir da saída do general Venâncio Deslandes, acumulou as funções com as de Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, o que levou ao Chefe de Estado-Maior mais responsabilidades. Bethencourt Rodrigues, porém, coordenava com ele e comunicava-lhe tudo o que ia fazendo. Era seu timbre proceder assim.
Em 1971, foi escolhido para comandar a difícil Zona Militar Leste, onde três partidos independentistas (a FNLA, o MPLA e a UNITA) combatiam as Forças Armadas de Portugal tornando o Leste de Angola, uma área de sete vezes a de Portugal, numa zona muito sensível capaz de colocar em perigo toda a ex-Província Ultramarina. Quando o general Costa Gomes resolveu, nas funções de Comandante-chefe das Forças Armadas de Angola e aprovando a proposta dos Chefes das 2.ª e 3.ª Repartições do Comando-Chefe, criar a Zona Militar Leste alargada à custa da deslocação de sete batalhões do Norte, para se opor ao perigo crescente do MPLA que ameaçava uma vasta área de Angola, não escolheu um general e apontou imediatamente o nome do brigadeiro Bethencourt Rodrigues para a comandar, que foi graduado em general, patente à qual foi promovido, quando lhe competia, após um ano. Acresce que com o apoio do Governo de Portugal, do Governador-Geral, Rebocho Vaz, e de Costa Gomes concretizou, com grande inteligência e sagacidade, um plano para neutralizar a actividade militar da UNITA. Bethencourt Rodrigues, com o seu Estado-Maior venceu a Batalha do Leste, não só pela via das armas mas também mediante um Plano de Desenvolvimento, do qual Bethencourt Rodrigues se orgulhava e o próprio inimigo de então elogiou. O Comando de Zona Militar Leste foi o único dos Comandos dos três Teatros de Operações da Guerra de África a ser louvado como tal, por relevantes e distintos serviços, prestigiando as Forças Armadas e servindo as Instituições Militares e à Nação (Ordem de Serviço n.º 42 de 22/08/72, do Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola). Atente-se que nessa data o general Bethencourt Rodrigues estava apenas a meio da sua comissão, mas o seu nome já ecoava por toda Angola pelo brilhantismo da actividade social e militar que o seu Comando realizava na Zona Militar Leste.
Em 1973, foi chamado por Marcelo Caetano para substituir o Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o general Spínola. Regressado à Metrópole depois de conquistar a paz em Angola e tendo Spínola entendido não continuar a combater o PAIGC pela via das armas, pois a seu ver a solução para a Guiné não era militar e por esse motivo ter apresentado a sua demissão, ou ter sido demitido de ser reconduzido na Guiné, após constatar que Marcelo Caetano apenas se interessava por essa via, foi novamente Bethencourt Rodrigues o nomeado para as funções de Governador e Comandante-Chefe do Teatro de Operações da Guiné, certamente proposto pelo general Costa Gomes, o então já Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, o seu amigo de sempre, que anteriormente o havia nomeado para a Zona Militar Leste, em Angola, que tinha Bethencourt Rodrigues em altíssima consideração e bem o conhecia. Considerava-o único. A demissão de Spínola colocou-o injustamente numa situação de não ser capaz e levou a que se tivesse de ir buscar Bethencourt Rodrigues, um vencedor. Os dois (Costa Gomes, que se deslocou à Guiné, e Marcelo Caetano) entendiam que a Guiné era defensável e foi pena que Bethencourt Rodrigues não pudesse continuar. Já com cerca de 90 anos, dizia a quem o entrevistava: “não tive tempo”, mas não fez acusações.
Deter-me-ei agora mais detalhadamente sobre a breve passagem do general Bethencourt Rodrigues pela Guiné e as circunstâncias que conduziram ao seu exoneramento. Deve dizer-se que, embora nem sonhasse com a sua nomeação para Governador e Comandante-Chefe do Teatro de Operações da Guiné, estudava com algum pormenor o que se passava naquela ex-Província Ultramarina. Importa referir o que, uma vez naquele território, fez e intentava fazer diferente do seu antecessor.
E atente-se que, como veremos, mesmo exonerado pediu para continuar a combater na Guiné, sempre confiante na estratégia vencedora das Forças Armadas Portuguesas e completamente alheio aos objectivos do Golpe Militar de 25 de Abril de 1974. Levara certamente indicações de Marcelo Caetano e não podemos descurar que esperava um substancial reforço armamentístico que Marcelo Caetano intentava a todo o custo e certamente lhe prometera, nem o resultado das conversações de Londres, que decorriam com o PAIGC e o Golpe foi interromper, conversações de que mais tarde deu mostras de conhecer, desvalorizando-as.
É usual referir-se que durante o período de seis meses de Governador e Comandante-Chefe do Teatro de Operações da Guiné, o General Bethencourt Rodrigues concebeu algumas operações vitoriosas que não se diferenciavam das do seu antecessor, o que bem pode ser verdade, mas todos, incluindo ele, referem que não teve tempo para concretizar as suas ideias. Bethencourt Rodrigues esperava estar de 24 a 48 meses na Guiné, o tempo normal, e o seu planeamento nunca teria sido para os seis meses de que dispôs. Mais tarde diria numa entrevista que o seu estilo e a sua escola militar não podiam ser mais diferentes dos do seu antecessor. Sem qualquer desprimor para com o valor do general Spínola, acresce que me chegaram informações de duas fontes que considero credíveis que o general Bethencourt Rodrigues escreveu uma carta ao Ministro da Defesa, Dr. Silva Cunha, sugerindo que a guerra na Guiné estaria a ser mal conduzida. Na confusão do Golpe de 25 de Abril de 1974 e nos dias que se seguiram essa carta foi encontrada na gaveta da secretária do Ministério e certamente foi parar às mãos de Spínola, que nunca lhe perdoou. Onde está essa carta? Quem a tem? Essa carta terá sido a razão principal da conhecida animosidade de Spínola para com Bethencourt Rodrigues, que nunca criticou aquele mas tão só a sua estratégia.
Figura 1 – O general Bethencourt Rodrigues cumprimentando tropas nativas.
(Fotografia: coronel Rui Guerra Ribeiro)
Será novidade para muitos saber que lhe interessavam de sobremaneira os meios e a actividade da Marinha nas suas mais variadas formas e que escreveu mesmo que o Governador e Comandante-chefe da Guiné deveria ser um Almirante, chegando inclusivamente a propor alguns nomes. Surpreendeu-o que, na devida altura, a escolha tenha recaído sobre ele e como refere o capitão-de-mar-e-guerra Manuel Marques Pinto, todas as semanas reuniam para lhe dar conta com grande pormenor o que a Marinha fazia. Esse interesse na Marinha estava ligado ao dispositivo das tropas apeadas, que pretendia implementar quando a época do ano fosse mais favorável. “A dispersão é inimiga da eficácia”, já o dissera no Leste de Angola no Conselho Especial de Contra-Subversão; na Guiné ia reduzir as 225 guarnições para 80, deixando as operações mais difíceis e impossíveis para as tropas especiais e isso era também, chegou a dizer, uma forma de diminuir as baixas nas tropas portuguesas, que muito o afligiam, e de facilitar a actividade operacional bem como a logística. Preocupava-o a quantidade de equipamento que os páras e os comandos levavam e queria poupá-los a esse peso em nome da agilidade. Afirmou que, tal como o fizera no Leste de Angola, ia reorganizar os Comandos dos Agrupamentos Aéreos.
Como Governador ia procurar dar continuidade aos Congressos do Povo, a iniciativa do seu antecessor, e fê-lo de facto. Ainda conseguiu organizar o 5.º Congresso, e alguns outros congressos regionais, onde acorreu muita gente de todas as etnias. Os Congressos decorreram completamente à margem do PAIGC. Afirmou posteriormente que essa fora a sua melhor obra político-social enquanto Governador, o que muito o entusiasmou. Resolveu também a Crise do Arroz que ameaçava tornar a situação na Guiné ainda mais tensa.
Numa entrevista perguntaram a Bethencourt Rodrigues porque não intervinha o PAIGC nos Congressos e ele respondeu: “incapacidade militar, meu caro amigo”. O PAIGC era militarmente forte, mas estava tão farto da guerra como os portugueses. A rivalidade entre os cabo-verdianos e os guineenses acentuava-se e o general Spínola já tentara explorar essa rivalidade. Teria o general Bethencourt Rodrigues alguma informação especial que o levasse a insistir combater? No texto, então ultra secreto, onde li a existência do encontro de Londres dizia-se que já havia acordo sobre a independência da Guiné, mas que Marcelo Caetano fora intransigente quanto a Cabo Verde, onde nunca houvera guerra. Quando Bethencourt Rodrigues soube na noite de 25 que o Prof. Dr. Marcelo Caetano se tinha rendido, deixou de se considerar Governador da Guiné e pediu ao seu Chefe de Estado-Maior que o alojasse em sua casa por entender que já não tinha autoridade no Palácio do Governo e já não presidiu, em 26 de Abril, como estava previsto, às cerimónias do Dia de Bissau. Ainda no dia 25, e perante os rumores vagos que lhe chegavam, como Comandante-Chefe do Teatro de Operações o que fez foi tomar várias medidas para a defesa das Tropas Portuguesas e para estas se prepararem para continuar a combater e não se deixassem surpreender, pois o PAIGC não deixaria de aproveitar a confusão instalada.
Já o livro ia adiantado quando comecei a conhecer as circunstâncias em que o general Bethencourt Rodrigues foi exonerado, no dia 26 de Abril de 1974, de forma pouco delicada, para ser suave nas palavras, quando foi abordado no seu gabinete de Comandante-Chefe da Guiné, enquanto elaborava uma mensagem juntamente com o seu Chefe de Estado-Maior, pedindo a exoneração de Governador, solicitando porém, talvez ao Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, pensando que nessa data seria ainda o general Luz Cunha, que o deixassem continuar como Comandante-Chefe do Teatro de Operações da Guiné. A mensagem certamente já não terá sido enviada, ou se o foi, alguém a tem, dada a forma intempestiva como o seu gabinete foi invadido pela delegação do MFA da Guiné. Disse ele: “arrombaram-me o gabinete”; leia-se o então tenente-coronel Mateus da Silva: ”...entrámos de rompante no gabinete do general Bethencourt Rodrigues; o ajudante levou um pinhão que voou ali dentro. A porta abriu-se de escantilhão e entrámos...”. Esta bazófia pouco verdadeira, escusada e despropositada para o momento, mostra bem como o general Bethencourt Rodrigues foi tratado por uma comissão constituída pelos comandantes operacionais da Guiné e liderada por um tenente-coronel, sem um mínimo de consideração para com o seu chefe militar que muito os considerava. Por mais vezes que leia o que está ao meu dispor, ainda não percebi se em algum momento alguém lhe perguntou se apoiava o Golpe Militar de 25 de Abril de 1974 e tão pouco porque entraram e procederam com ele de forma tão agressiva. Que podia ele fazer sem tropas? E se apoiasse o Golpe? Qual era o destino que lhe reservava o MFA?
Antes de ser exonerado, o general Bethencourt Rodrigues idealizou e concretizou com os seus queridos comandos, no final de 1973, a sua primeira operação de grande envergadura, ignorando que lhe restavam apenas quatro meses para desenvolver o seu plano operacional. Mesmo revolucionariamente exonerado e apesar de ter pedido a demissão de Governador, repito que se ofereceu para continuar como Comandante-Chefe, mostrando assim desconhecer os contornos e objectivos do Golpe Militar de 25 de Abril de 1974, que queria por fim à Guerra Ultramarina. Fora completamente surpreendido e não virou a cara à luta. O general Bethencourt Rodrigues não compreendeu as implicações políticas e militares que o Golpe lhe trazia, mas reagiu sempre de forma calma e educada a tudo quanto lhe iam fazendo. Mais tarde, escreveria: “Demitido, vencido, mas não convencido”.
O general Bethencourt Rodrigues no BCP 12, examinando uma metralhadora pesada capturada ao PAIGC.
(Fotografia: blog UTW)
Na Guiné foi exonerado, mas não foi saneado. Foi preso na Ilha do Sal (diz-se que por ordem de Spínola), para onde foi transferido por ordem da Junta de Salvação Nacional. O saneamento ficaria para a Metrópole: o seu nome foi apresentado numa dessas assembleias do Movimento das Forças Armadas, em Belém, onde se decidia ad hoc e de braço no ar o saneamento de Oficiais Generais, muitas vezes por motivos fúteis. Não havendo consenso nessa reunião sobre o seu nome, o assunto foi remetido para a Junta de Salvação Nacional, chefiada por Spínola, que também não teve coragem para o sanear, talvez porque Costa Gomes vetasse a decisão. Na lista dactilografada de Oficiais Generais a sanear, saída da Junta, não constava o nome do general Bethencourt Rodrigues, que foi depois acrescentado à mão e a lápis, e ninguém tem já dúvidas que foi o general Spínola que, nessa altura, pela primeira vez e com autoridade revolucionária, tinha ascendente sobre Bethencourt Rodrigues, ou seja, Bethencourt Rodrigues foi saneado por um só militar. Passado alguns anos, propuseram a Bethencourt Rodrigues a reintegração, para reorganizar as Forças Armadas, mas recusou liminarmente. A sua Guerra era outra e não o tinham querido para ela na devida altura!
Saliento que o livro faz uma breve referência às conversações do Governo Português com o PAIGC, enigmáticas mas interrompidas pelo Golpe Militar de 25 de Abril de 1974, e faz também referência ao que foi a mistificação da Declaração de Independência da Guiné, proclamada pelo PAIGC em Medina do Boé, independência que não existiu mas que foi reconhecida pela ONU. A festança foi feita na Guiné Conacri.
Aos detractores do Sr. General José Manuel de Bethencourt Rodrigues, se os há, o nosso querido e inesquecível Zé da Ilha, importa lembrar que deixou escrito tudo por quanto passou e o que se passou com ele na Guiné por ocasião do Golpe Militar de 25 de Abril de 1974 e que a maneira como o trataram nas situações subsequentes de prisão a que o submeteram são a vergonha da minha geração de Oficiais do Exército. À terceira prisão, em Santarém, que foi ordenada pelo almirante Rosa Coutinho, foi resgatá-lo o seu amigo de sempre, o general Costa Gomes.
Endereço os meus parabéns à Sr.ª Dr.ª Maria de Lurdes de Bethencourt Rodrigues Sá e Cunha, a filha do general Bethencourt Rodrigues, e ao Dr. Luís Maria de Bethencourt Rodrigues Lima Palma, neto do general Bethencourt Rodrigues, e à restante família, por tal pai e avô. Agradeço a honra e confiança que depositaram em mim.
Termino com as palavras do tenente-coronel de Cavalaria, então na reserva, João Manuel da Fonseca Nunes e Sena que, por ocasião do falecimento do General José Manuel de Bethencourt Rodrigues, escreveu palavras assertivas: “Vai amanhã ser enterrado um dos maiores Generais que tive a honra de conhecer e ser seu subordinado em Angola e, pela sua generosidade, também seu amigo. Da sua vida militar e das suas extraordinárias qualidades de Comando não devo, não posso e nem sei falar, pois sou infinitamente pequeno para tal poder ajuizar. Posso, porém, falar do Amigo, do Mestre Generoso que, durante anos, me aconselhou e corrigiu até alguns dos textos aquando iniciei esta minha tarefa de contar histórias. Na luz coada da biblioteca e no restaurante da Sociedade de Geografia, tive oportunidade de escutar detalhes, ouvir e esclarecer factos, circunstâncias e acontecimentos, recentes ou mais afastados, referentes ao tempo histórico que nos tocou viver. Em nenhuma ocasião dei conta de ter guardado ódios ou ressabiamentos sobre as muitas injustiças que lhe foram feitas. Mesmo quando detalhava sobre esses tempos e traições, de tantos que reputara terem sido seus amigos e colaboradores, encontrava, sempre, no humor e na generosidade do seu enorme coração, a atenuante de comportamentos indecorosos. No seu coração não havia espaço para o ódio. Nestes tempos de pigmeus foi um Homem diferente. Quando assentarem as poeiras e nada mais possa restar de uma Pátria Independente senão outro grito como aquele deixado no Estreito das Termópilas, serão os Historiadores que lhe farão a Justiça que os contemporâneos lhe negaram em vida. Do seu espólio e do acervo de documentos emergirá o Homem generoso, modesto e simples, estudioso e reflexivo, que planeava com detalhe e agia com determinação e coragem, indiferente a políticas mas sempre atento e pronto a poder servir Portugal. Foi assim quanto Soldado, Estadista e Governante. Na Guerra, como General-Comandante da Zona de Intervenção do Leste de Angola, foi já reconhecidamente admirado por aqueles que na circunstância eram o Inimigo, como o grande vencedor que foi muito além da sua Missão, abrindo escolas, hospitais, pontes e estradas, que garantiram às populações o desenvolvimento negado em séculos de colonização: o derradeiro General vencedor!
O Senhor General Bethencourt Rodrigues foi agraciado ao longo da sua carreira militar com a Medalha de Ouro de Valor Militar com Palma, com a Medalha de Ouro de Serviços Distintos com Palma, e com a Grã-Cruz da Medalha de Mérito Militar [em minha opinião falta a Torre Espada que, estou certo, virá postumamente].
Morreu um soldado de Portugal.
Paz à sua alma.
Clarins, toquem a silêncio!”
HONRA AO GENERAL BETHENCOURT RODRIGUES.
DITOSA PÁTRIA QUE TAL FILHO TEVE!
Estudos Gerais da Arrábida, a descolonização portuguesa, painel dedicado à Guiné; Depoimento do general Bethencourt Rodrigues a Manuel de Lucena e Luís Salgado de Matos, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1997, Lisboa.
Guiné, Luís Graça e os camaradas da; Blogue, Abril de 2024.
Nunes, António Lopes Pires; Angola 1966-74: Vitória militar no Leste, ed. Prefácio, 2002, Lisboa.
Nunes, António Lopes Pires; General Silva Freire: Brilhante estratega da reocupação do Norte de Angola em 1961, ed. Caleidoscópio, 2011, Lisboa.
Nunes, António Lopes Pires; Um grande militar português: General Bethencourt Rodrigues (1918-2011), ed. Tribuna da História, 2024, Lisboa.
Tenente-coronel de Artilharia. Licenciado em História. Sócio Efetivo da Revista Militar.