Nº 2461/2462 - Fevereiro/Março de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os Quarenta Anos das Forças Armadas de Cabo Verde
Tenente-coronel
Pedro dos Reis Brito
“Deve-se ter memória,
ter ideia da memória colectiva,
não para cultivar a memória pela memória,
mas para se poder conhecer o percurso feito,
pois só conhecendo as realizações passadas,
é que se vê que quem fez esse pode fazer mais,
pode ganhar os desafios 1.”
Pedro Pires
 
 
Celebrar os quarenta anos de existência das Forças Armadas é, de facto, revisitar marcos históricos da Nação Cabo-Verdiana, alguns perdidos no tempo ou nos recônditos da memória, outros mais presentes. Para além da comemoração ser um dever da instituição é, simultaneamente, um tempo de festa - pelas realizações e êxitos conseguidos - e de análise e reflexão com vista a corrigir os erros, projectar melhor o futuro e agir com maior coerência no presente. Também é um tempo de recordação, pois, já se disse e se repetiu que quem não conhece ou renega o seu passado corre o risco de repetir as falhas e erros e não terá o devido suporte para caminhar com convicção no presente e nem, provavelmente, para equacionar com parâmetros fiáveis os desafios do futuro.
 
Trinta e um anos depois da conquista da sua independência, Cabo Verde - este país ilhéu e saheliano do Atlântico médio - deixa o grupo dos PMA (Países Menos Avançados) e ascende à condição de país de desenvolvimento médio. Mérito é, facto, do povo cabo-verdiano, mérito dos sucessivos governos e mérito das instituições, pequenas e grandes, que enformam o estado e a sociedade. O nível de desenvolvimento atingido nestas dez ilhas é fruto de trabalho árduo e de muitos sacrifícios, porém enche a todos de orgulho.
 
É com clara consciência dos riscos e dos desafios que, assim como ontem na luta pela independência e pela reconstrução do país, o governo e a sociedade se preparam para esta nova etapa, cientes de que quanto maior o desafio mais aliciante.
 
Nesses anos de construção sobressai uma instituição que orgulha os cabo-verdianos e que acaba de completar 40 anos: as Forças Armadas de Cabo Verde. A história das Forças Armadas, assim como a formação da Nação, precede a independência e confunde-se nas trilhas da luta emancipadora com o doloroso, sacrificante e honroso caminhar para a nova aurora.
 
O Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde - ver listagem completa no final do artigo - por circunstâncias e vicissitudes diversas - diria, quase, por imponderáveis do tempo histórico - é constituído em meados dos anos sessenta do Século XX e lá do outro lado do oceano. Realmente, a necessidade de dar inicio à luta armada em Cabo Verde levou a direcção do PAIGC - movimento libertador das Ilhas e da Guiné - no fragor da luta a mobilizar um punhado de jovens de que faziam parte estudantes, camponeses e trabalhadores emigrantes, juntamente com outros militantes anteriormente mobilizados, e enviá-lo a Cuba, onde, em plena clandestinidade e nas montanhas dessa ilha, permanece cerca de dois anos, recebendo preparação militar que seria, posteriormente, continuada na União Soviética.
 
É a 15 de Janeiro de 1967, ainda em Cuba, finda a preparação e em vésperas de partir que, perante Amílcar Cabral, a quase totalidade dos membros do Grupo, individualmente, prestou um juramento solene:de fidelidade à luta pela independência de Cabo Verde, fosse em que circunstâncias fosse. Esses jovens, então, afirmaram-se, dispostos para o sacrifício supremo se necessário para se poder alcançar a liberdade da Pátria, mas também pelo seu desenvolvimento e engrandecimento”. Hoje, é com orgulho que se constata que se cumpriu o Juramento. Por isso, em 1988, o Governo de Cabo Verde no primeiro gesto de reconhecimento da importância deste facto, escolheu e fixou o dia 15 de Janeiro como “Dia das Forças de Cabo Verde” 2.
 
Com efeito, passados quarenta anos, as Forças Armadas de Cabo Verde, uma instituição a que a Constituição da República comete missões delicadas, importantes, específicas, espinhosas, mas nobres, são maduras, acumularam mais conhecimentos e experiências, têm um estilo e rituais próprios, mas sobretudo, têm sempre sabido ser uma instituição engajada e em sintonia com o seu tempo. Porém, a sua perenidade, exige que elas continuem disponíveis para os novos desafios com que o país hoje confronta. Não há dúvidas, e felizmente, as Forças Armadas, vêm respondendo positivamente à dinâmica dos fenómenos modernos: elas são Forças Armadas republicanas abertas e prontas a trabalhar para a sua modernização e, acima de tudo, prontas para cumprir e servir a nação.
 
Claro que o espaço de um artigo é muito limitado para se falar do percurso de uma organização com essa idade, mas é importante, também, abordar, ainda que seja sumariamente e para melhor se compreender a evolução da instituição castrense cabo-verdiana.
 
Por conseguinte, retomando, a trajectória iniciada nos anos sessenta, feita com perseverança e determinação, pode-se afirmar que, com certeza, se cumpriu, também, o destino. De facto, o Núcleo Fundador das Forças Armadas, após ter-se empenhado duramente em todos os sectores e frentes da luta pela independência, onde alguns dos seus integrantes tombaram no campo da honra, nas vésperas da independência nacional e nos anos que se seguiram assume activamente a organização das Forças Armadas nacionais, integrando, preparando e dirigindo os jovens voluntários que massivamente se prontificaram em defender o país e prosseguiram edificando as Forças Armadas cabo-verdianas. E não se limitaram à esfera militar, tendo-se registado uma vasta e qualitativa participação aos mais altos níveis de actividade do Estado de membros desse Núcleo.
 
Assim, depois da proclamação da Independência Nacional, a Lei de Organização Politica do Estado atribui ao Ministério da Defesa e Segurança - criado pelo Decreto-Lei n.º 4/75 de 23 Julho - a responsabilidade pela defesa da independência, da soberania e integridade territorial, sendo nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz3 e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas4 nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP). É o Decreto nº 26/75 de 20 de Setembro, que cria o Comando-Geral das FARP e Milícias e o Comissariado Político Nacional das FARP, tendo este último à frente o Comandante João José Lopes da Silva. É esta, pois, a liderança - apoiada por vários oficiais, ainda sem postos definidos e sem patentes - que no dia-a-dia vai erigindo o novo “edifício militar” cabo-verdiano, em paralelo com a construção do novo Estado. Em termos territoriais as Forças Armadas são estruturadas em três Regiões Militares, sob a responsabilidade dos Comandantes Amâncio Lopes5 – na primeira; Eduardo Santos6 – na segunda e Timóteo Tavares Borges7 – na terceira.
 
Mais tarde, com a reorganização das Forças Armadas, o Comando-Geral é transformado em Estado-Maior, integrando os Comandos da Marinha e da Aviação, que tiveram vida efémera, e por diversas Direcções.
 
Ao longo desses quarenta anos várias foram as gerações de cabo-verdianos que de uma forma ou de outra, viriam a dar o seu indispensável contributo para a formação das Forças Armadas, seguindo as peugadas do Núcleo fundador. Nesse intervalo de tempo, a instituição militar foi dirigida por dez Ministros de Defesa e dois Secretários de Estado e, por três vezes, os Primeiros-Ministros acumularam a função de Ministro da Defesa; ela foi comandada por seis Chefes do Estado-Maior. A sua estrutura orgânica sofreu adaptações aos momentos e contextos históricos vividos no país, mas como reestruturação de fundo registam-se:
  • na década de oitenta, a aprovação de legislação estruturante, designadamente a Lei Orgânica, o Estatuto do Oficial e do Sargento, as Normas de Promoção e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM);
  • na década de noventa, que começa com introdução de novas missões para as Forças Armadas no quadro da Nova Constituição, a aprovação de leis decisivas destacando-se a Lei das Forças Armadas, a lei que define o estatuto da condição militar, a lei que define a organização global e efectivo das FA, o Estatuto dos Militares, o Estatuto Remuneratório, o Código de Justiça Militar e a revisão de várias outras normas jurídicas, onde sobressai o RDM;
  • no período actual, convencionalmente enquadrado na reforma das Forças Armadas, a elaboração de importantes estudos conceptuais: o Projecto da Reforma das Forças Armadas e o Projecto de Conceito Estratégico da Defesa Nacional; e a adopção de dispositivos conceptuais e legais: as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa e Segu­rança Nacional, a Lei que estabelece o Regime Geral das FA e outros documentos importantes para organização sistémica e integrada da defesa nacional.
 
Se nos anos noventa se assistiu à criação da Guarda Costeira, composta por Unidades Navais e Unidades Aéreas e à formação da primeira Companhia de Fuzileiros Navais, depois de uma experiência que não vingou em finais dos anos setenta, este período que a instituição vive ressalta a sua reestruturação por forma a poder dar melhor resposta no que respeita, também, à segurança interna. É assim que surge a Guarda Nacional, que será integrada essencialmente por Unidades de Policia Militar, de Fuzileiros Navais e de Artilharia e a Guarda Costeira, reorientada para os objectivos essenciais da sua constituição que são: a vigilância e fiscalização dos espaços marítimo e aéreo, bem como a sua preparação para acções de busca e salvamento, ao mesmo tempo que se forma a primeira unidade especial de reacção rápida para o enfrentamento das ameaças, sobretudo à segurança interna, de carácter mais violento.
 
Antes de abordar as realizações de vulto no seio das Forças Armadas, no transcurso de tempo decorrido, importa dizer que a perenidade da instituição deve muito ao seu papel que tem desempenhado e à sua utilidade na sociedade. Realmente, não obstante estar vocacionada e lhe seja cometida pela Constituição a “…defesa militar da república contra qualquer ameaça ou agressão externa.”, e ainda para missões com maior afinidade com a responsabilidade referida, aliás assumida em demais leis que enformam o corpo normativo da instituição, elas têm sabido dar uma contribuição de valor em várias outra frentes do desenvolvimento. O testemunho da sua presença começa nas campanhas de arborização e protecção do meio ambiente e vai até ao apoio às populações em tempos de crise.
 
No concernente a realizações, propriamente ditas, deve-se registar que o crescimento da instituição castrense cabo-verdiana foi acompanhado de um grande esforço no sector da formação de quadros. Desde o início as Forças Armadas preocuparam-se com a formação dos seus efectivos no domínio técnico-militar e no cultural, independentemente da sua condição de prestação de serviço, visto que a formação do homem é sempre um investimento no desenvolvimento. É gratificante encontrar pelo país fora, nos mais diversos ramos de actividade, profissionais de níveis e especialidades mais díspares formados pelas Forças Armadas ou graças à sua acção e apoio. Eles são professores e músicos, médicos e enfermeiros, engenheiros e marinheiros, técnicos de construção civil, etc.
 
Dificilmente, o nível de desenvolvimento e o estádio de organização seria atingido se não tivéssemos contado durante esses 40 anos com a colaboração internacional. Com efeito, o crescimento das Forças Armadas, desde do primeiro instante teve na cooperação técnico-militar um elemento fundamental e o leque de apoiantes é extenso: países como a antiga União Soviética, os Estados Unidos da América, Portugal, a França, a Angola, a Alemanha, China, Cuba e Senegal têm sido excelentes parceiros nas várias etapas da vida das FA, tendo o Governo, através do Ministro da Defesa, na década de noventa do século passado, em sinal de reconhecimentos e agradecimento, agraciado algumas das suas representações aqui no país, com a Medalha Militar de Serviços Relevantes.
 
Mas a presença internacional das Forças Armadas não se tem limitado à cooperação, no plano operacional as tropas cabo-verdianas, nos últimos anos têm tido uma participação em vários exercícios internacionais, o que evidencia o bom nível de preparação das nossas tropas no total de treze exercícios militares multinacionais, no quadro da CPLP - Exercícios da série FELINO, com duas modalidades FTX e CPX, da CEDEAO, da União Africana e da NATO. Deve-se salientar que o Exercício “FELINO 2005” foi organizado em Cabo Verde pelas nossas Forças Armadas e o Exercício da NRF “Steadfast Jaguar 2006” foi realizado também aqui no país, continuando, neste percurso, em que no passado mês de Fevereiro, as Forças Armadas de Cabo Verde hospedaram na Praia a Conferência Intermédia de Planeamento do Exercício “Africa Endeavor 2007” - cuja fase final será em Julho, na África do Sul.
 
 
As Comemorações
 
As Forças Armadas cabo-verdianas completaram, no passado dia 15 de Janeiro 40 anos de existência. A efeméride vem sendo comemorada desde o mês de Novembro, tendo o Programa iniciado com a cerimónia de condecoração de militares e civis que participaram com brilho no Exercício da NATO “STEADFAST JAGUAR 2006”, pela Ministra da Defesa Nacional. O ponto alto da celebração aconteceu na Cidade da Praia no dia 14 em que foram homenageados os Membros do Núcleo Fundador da instituição.
 
O Acto Central do 40º aniversário das Forças Armadas de Cabo Verde foi assinalado no passado dia 14 de Janeiro - Domingo, presidido por Sua Excelência o Presidente da República, Pedro Verona Rodrigues Pires. O acto contou, também, com a presença do Primeiro-Ministro, Dr José Maria Pereira Neves.
 
Durante a cerimónia, carregada de simbolismo e emoção, foi homena­geado o Núcleo Fundador das Forças Armadas, que recebeu do Chefe do Estado-Maior das FA a Medalha Estrela de Honra das Forças Armadas. A medalha colectiva foi recebida, em representação do Núcleo, pelo 1º Coman­dante Agnelo Dantas, membro do núcleo, em seguida ela foi oferecida às Forças Armadas, sendo colocada no Estandarte das FA pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Pedro Pires, então Líder do Núcleo Fundador. Os membros do Núcleo presentes (14) receberam as correspondentes insígnias representativas da condecoração colectiva.
 
Usaram da palavra no acto o 1º Comandante Agnelo Dantas - ex-Chefe do Estado-Maior das FA, em nome do Núcleo para agradecer a homenagem recebida, a Ministra da Defesa Nacional, Dra Cristina Fontes Lima, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Coronel Antero Matos e o Presidente da República, Pedro Pires.
 
A cerimónia terminou com um desfile das Forças em parada, que integrou a Infantaria da Guarnição do Estado-Maior das FA, a Polícia Militar, a Artilharia de Campanha, a Defesa Aérea e a Banda Militar da terceira Região Militar e os Fuzileiros Navais da Guarda Costeira, num total de 300 militares.
 
De ressaltar que enquadrado no Programa de comemorações que se prolongará até 18 de Março - Dia da Unidade “Justino Lopes”, do Comando da 3ª Região Militar - foram realizados: o Exercício Militar “Zézé Aguiar”, levado a cabo nos Concelhos de Santa Catarina e São Miguel, na ilha de Santiago; os Jogos Militares Nacionais, em que a equipa da 3ª Região Militar se sagrou vencedora; palestras alusivas à data em vários estabelecimentos de ensino do país; paradas militares nas sedes das 1ª e 2ª Regiões Militares; e encontros entre militares no activo e Combatentes da Liberdade da Pátria, na sua maioria militares e/ou Membros do Núcleo Fundador.
 
 
MEMBROS DO NÚCLEO FUNDADOR DAS FORÇAS ARMADAS DE CABO VERDE
Primeira Unidade Combatente de Cabo-verdianos
 
 1. Alcides Évora (Batcha),
 2. Afonso Gomes*,
 3. Agnelo Dantas,
 4. Amâncio Lopes,
 5. António Leite,
 6. Armando Fortes,
 7. Armindo Ferreira,
 8. Estanislau João Ramos,
 9. Fernando dos Santos Rosa,
10. Honório Chantre,
11. Jaime Mota*,
12. Joaquim Pedro Silva (Barô),
13. José Anselmo Corsino,
14. Júlio César de Carvalho,
15. Manuel Jesus Gomes,
16. Manuel João Piedade,
17. Manuel Maria dos Santos,
18. Manuel Monteiro,
19. Manuel Pedro dos Santos,
20. Maria Ilídia C. Évora,
21. Nicolau Pio*,
22. Olívio Melício Pires,
23. Osvaldo Azevedo,
24. Pedro Verona Rodrigues Pires**,
25. Silvino Manuel da Luz,
26. Sotero Nicolau Fortes,
27. Wlademiro Carvalho*.
 
* Já faleceram
** Líder do Grupo
 
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*      Tenente-Coronel (Res) das Forças Armadas de Cabo Verde, Director-Geral de Defesa do Ministério da Defesa da República de Cabo Verde e Presidente da Comissão Central das Comemorações dos 40 anos das Forças Armadas de Cabo Verde.
 
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 1 Pedro Pires, Presidente da República, na Palestra alusiva ao 20 de Janeiro de 2007.
 2 O Decreto n.º 5/88 de 30 de Janeiro, instituiu 15 de Janeiro como Dia Das F.A.
 3 Membro do Núcleo Fundador das FA, foi mais tarde Ministro do Negócios Estrangeiros e neste momento exerce o cargo de Embaixador na República de Angola.
 4 Também membro do Núcleo Fundador das FA, encontra-se reformado.
 5 Também membro do Núcleo Fundador das FA, encontra-se reformado.
 6 Foi Combatente da Liberdade da Pátria (CLP). Faleceu e é hoje patrono da Guarda Costeira.
 7 Também foi CLP, encontra-se na reforma.
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2007-05-18
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by CMG Armando Dias Correia