
Quando em 1831 Alexis Tocqueville foi à América ficou deslumbrado com a democracia que encontrou naquele país. Ela era diferente da que despontava em França que não ultrapassara ainda os traumas da Revolução e do Império, e não mudava significativamente a sociedade do Antigo Regime.
Este deslumbramento levou-o a escrever “De la démocratie en Amérique”, um livro notável no qual observa a “dialéctica” entre a Liberdade e a Igualdade, essas duas bandeiras saídas da Revolução Francesa.
Resultantes do seu poder de análise e espírito crítico, o livro e as suas ideias tornaram-se um documento de referência para politólogos e sociólogos, sendo frequentes vezes “redescoberto” e tendo até inspirado vários autores como, por exemplo, Orwell e Camus.
Juntando aquilo que viu na América e as suas convicções democráticas, com aquilo que hoje vemos na sociedade internacional, mantém-se de certo modo, a dúvida que ele apresentou a Stuart Mill, quando escreveu partindo das noções que me forneceu a sociedade americana e francesa eu quis retratar os traços gerais da sociedade democrática das quais ainda não existe nenhum modelo completo1.
Porque, ao que julgamos, se mantém aquela dúvida quando vemos os obstáculos que a democracia enfrenta; porque o “casamento” da Liberdade com a Igualdade é difícil, podendo a “dialéctica” entre estes dois pilares da democracia desviar-se e resvalar facilmente para a autocracia, para o caos, para desigualdades inaceitáveis, ou restrições à liberdade de expressão e à crítica; porque estamos a assistir ao renascimento de autocracias, de imperialismos que podem pôr em causa a “ordem mundial” que foi conseguida após a II Guerra Mundial e caminhamos para a “desordem internacional”; porque é cada vez mais explícito e contrastante o poder da força que se exerce sobre países e povos mais fracos; porque a justiça internacional já quase não detém mais do que a condenação moral e o clamor público; porque estamos mergulhados num caos de incerteza em que a informação foi substituída pela desinformação e a mentira é muito utilizada pela comunicação social e várias redes informais; porque assistimos ao aumento das tensões, conflitos, violência e guerra; porque os EUA ainda é o país com maior poder, “mas não podem distanciar-se do mundo, nem dominá-lo”2; e porque Tocqueville no livro dois “De la démocratie en Amérique” nos transmite considerações sobre a influência da expansão do espírito democrático e a guerra – pareceu-nos interessante revisitar mais uma vez o seu livro.
Partindo desta ideia, num primeiro passo relembro as conclusões a que chegámos quando da leitura do livro, após a queda do muro de Berlim3, e por fim, em jeito de conclusões, apresentaremos algumas considerações decorrentes da situação internacional que actualmente observamos e em que vivemos.
Sumariando o que julgamos serem os pontos fundamentais do discurso e as principais omissões de Alexis Tocqueville sobre a democracia e a guerra, apresentámos as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do que uma primeira leitura pode sugerir, não estamos em “De la démocratie en Amérique” perante um pacifismo utópico resultante de um universo democrata, como sucede com as utopias cristã e marxista; mas, sem um pendor escatológico, Tocqueville (pedagogo da democracia) acaba de facto por propor ou sugerir, não sem algumas contradições, que, tendencialmente, a guerra irá sendo cada vez mais rara.
Teoricamente isto até poderia vir a acontecer num “universo democrático”, mas também julgamos utópico considerar-se que a guerra irá sendo cada vez mais rara. A alteração que não permitiu que hoje suceda a “grande guerra” foi o facto nuclear, mas permitiu até o aumento de outras, nomeadamente de “pequenas guerras” (guerrilhas).
2. A análise da posição do homem perante a guerra – preocupação de todos os séculos dada a sua importância para a decisão de a ela recorrer e para a constituição e moral dos exércitos – é uma consequência lógica de o Autor reconhecer que a aplicação do “princípio da Igualdade” e a democracia originam transformações profundas na sociedade; mas Tocqueville não deu a devida projecção e valor à “racionalidade da decisão política” nem à “irracionalidade das pulsões belicosas” no momento da gestação da guerra.
Apenas acrescentamos à observação que aqui fizemos que, além da “racionalidade da decisão política” (elemento da tríade Clausewitzeana) também hoje surge frequentemente a irracionalidade na decisão política.
3. Ao contrário de [aquilo que nos foi transmitido por] outros pensadores, não surge em Tocqueville o debate da guerra justa e não justa, que através dos tempos tem sido uma preocupação das direcções políticas, quer ela se alicerce na religião como na Respublica Christiana, num fundamento de necessidade, como em Maquiavel, ou em princípios do direito internacional como hoje se pretende; mas, a menos que a guerra seja justa quando visa a aplicação da universalidade da democracia, ideia que o texto de Tocqueville veladamente aflora (e tem sido utilizada no nosso tempo, mais ou menos enfeitada com outros argumentos), o que é dominante no seu texto é ele pragmaticamente considerar que a guerra, por destrutiva, não é do agrado do “homo democraticus”.
Concordamos que não seja do agrado do homem democrático, mas infelizmente há no mundo muitos homens e países aos quais a guerra não desagrada.
4. Em “De la démocratie en Amérique” Tocqueville aponta para algumas alterações que se registam ou se irão verificar nas relações entre Estados em consequência do posicionamento das democracias perante a guerra; mas o Autor não encara o problema da guerra ser, na maior parte dos casos, um “jogo” entre unidades políticas que podem não ter as mesmas concepções e o mesmo respeito pelo Homem e pelas Instituições, nem a mesma visão sobre a própria guerra.
As alterações apontadas pelo Autor e as diferentes concepções e respeito pelo Homem e pelas Instituições são hoje evidentes na guerra da Rússia com a Ucrânia e na guerra Israel-Hamas.
5. Tocqueville, no seu amor à Liberdade e pela observação do desejo de bem-estar nas democracias, avança com a descoberta do desaparecimento do espírito militar; mas, confundindo o que podem ser aspirações do homem democrático com a lassidão produzida pelo “mal-estar” da guerra, não se apercebe do perigo que ronda a liberdade e a democracia se o espírito militar desaparecer.
Concorda-se com o Autor e mantem-se válida a nossa observação.
6. Tocqueville aponta, por vezes com razão, algumas características dos exércitos democráticos, com destaque para a baixa cotação e falta de honorabilidade daqueles que servem nas Forças Armadas; esquece-se porém, de equacionar e chamar à atenção para que aquilo que se defende nas democracias – o território, as pessoas, os bens e o próprio regime democrático – ficará altamente vulnerável se a função militar não estiver prestigiada e se faltar a vontade de defesa.
Concorda-se com o Autor e mantém-se válida a nossa observação.
7. Tocqueville não define horizontes temporais para as suas proposições, referindo apenas a já no seu tempo notória evolução do desenvolvimento e, em abstracto e com sentido do devir, os “tempos democráticos”; mas porque a evolução do pensamento e dos sistemas políticos é muito mais lenta do que o desenvolvimento científico e tecnológico esta “décalage” permite o “armamento” dos povos não democráticos, o que é uma evidente ameaça para as democracias.
Concorda-se com o Autor e mantem-se válida a nossa observação.
8. A “tolerância” que se treina e pratica nas democracias e a maior aptidão para o respeito pelo “outro” podem ser elementos que facilitam o regular pacífico dos conflitos; mas porque, para garantir a paz se tem por vezes de fazer a guerra, a “tolerância” não deverá significar que os intolerantes consigam, através da guerra e sob a abulia das democracias, os seus intentos.
Concorda-se com o Autor e mantém-se válida a nossa observação.
9. Se a vivência democrática e o debate de ideias profícuo que se pratica nas democracias tendem para que os conflitos se resolvam de uma forma pacífica, um paralelo demissionismo da preparação e do emprego da acção militar apresenta-se como uma das suas vulnerabilidades, já que estas existem no mundo em que coabitam regimes democráticos com outros que não são; se se pretende a segurança dos Estados democráticos e que a ideia democrática subsista e se universalize, há que estar atento a esse perigo e preservar o “capital” de força e de vontade que permitam fazer face às ameaças que se declarem.
Concorda-se com o Autor e mantém-se válida a nossa observação.
A actual situação internacional, as tensões autocráticas que se manifestam, o surgimento simultâneo de decisores determinados, juntamente com outros erráticos e imprevisíveis, e as tensões e guerras a que assistimos indicam que apresentemos estas notas finais.
– As ideias democráticas, que foram surgindo nos últimos dois séculos, para além das dificuldades que os regimes democráticos têm em se implementar e aperfeiçoar, confrontam-se hoje com regimes autocráticos que vêm crescendo em número e em poder.
– Está plenamente confirmada a ideia de que o voto popular é insuficiente para implantar um regime democrático, como se tornou evidente com o aparecimento do fascismo e do nazismo no século XX, e do trumpismo no século XXI.
– Para além do voto popular a democracia necessita que haja respeito pela “norma”4, a divisão de poderes e a existência de uma relação entre esses poderes que evitem ou corrijam os desvios que possam ferir as leis e a “norma”.
– A democracia exige que se respeitem valores universais, como os direitos humanos e as soberanias nacionais, o desenvolvimento e o bem-estar dos povos, e se procure a existência da paz.
– Se é um facto que os Estados são regidos mais pelos interesses do que por valores, a falta de respeito em relação ao “outro” (pessoa ou país) leva ao aumento de tensões, conflitos e guerras.
– Se os países democráticos tendem a resolver os seus problemas e diferendos (internos ou externos), procurando o diálogo, contendo a violência e evitando a guerra, quando são confrontados com países antidemocráticos, expansionistas e imperialistas, ou aceitam ser subjugados, ou têm que se defender usando a persuasão, a dissuasão, ou, até, a violência organizada. Isto é, podem ter que fazer a guerra. Como referiu Clausewitz, as relações entre Estados são como um comércio, mas por vezes é pedido o “pagamento em espécie” (leia-se, em sangue).
– As pulsões belicosas de um povo podem ser contidas por uma direcção política racional. Uma direcção política belicosa, pondo em causa a existência de outros Estados, tratando os seus aliados como inimigos e usando maquiavelicamente a desinformação, conduz o mundo para a guerra e para o caos.
– O Kremlin, na senda daquilo que a União Soviética designava por “democracia popular”, pratica a teoria do “Lebensraum” da Escola de Munique, que Hitler seguiu antes da II Guerra Mundial e, em relação à Ucrânia, sofre simultaneamente do complexo de Caim e de Abraão. De Caim, porque designando os ucranianos como irmãos, tenta eliminá-los; de Abraão, porque não se importa de sacrificar a vida dos seus próprios “filhos”5.
– Os EUA vivem, com a actual Administração, uma crise que coloca em causa o sistema democrático que existia, devido a uma presidência errática que não possui valores democráticos, que subjuga o poder judicial, que mente “permanente-mente”, que abusa do poder e que pretende ser dona do mundo. Assim, não se vislumbra que surja uma “emenda” na sua Constituição que emende esta trágica direcção política.
– Trump tem um ego desmesurado, é ignorante, mal-educado, prepotente, autocrata, fascista e errático. Mas mais estranho é que parte da população americana o apoie. Isto é triste, absurdo e perigoso.
– Tocqueville foi à América para estudar o sistema prisional americano. Não conheço as conclusões a que chegou, mas, se lá fosse hoje, certamente estranharia ver tantas pessoas à solta (até o Presidente), que deveriam estar presas, e saber que têm sido mandados presos para El Salvador sem sequer terem sido julgados. De facto, em vez do deslumbramento com a democracia que ali encontrou na década de trinta do século XIX, certamente teria uma grande decepção. A democracia ali deixou de existir.
– Finalmente, vale a pena ler as considerações que Alexis Tocqueville produziu na primeira metade do século XIX sobre a democracia e a guerra, porque contêm algumas pistas com interesse e porque somos obrigados a reflectir sobre as suas propostas para dele podermos discordar6.
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1 Carta a Stuart Mill, em 1840.
2 Kissinger, “Diplomacia”, Gradiva, Lisboa, 1996, pág. 12.
3 “Nação e Defesa”, Out/Nov, 1996.
4 Constituição democrática.
5 Concidadãos.
6 “Nação e defesa”, Out/Nov, 1996
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.