
À minha Mãe, insuperável todos os dias!
Na viragem do século XIV para o XV, a Cristandade era atormentada por crises económicas, sociais e políticas. O fenómeno generalizado da fome refletia épocas de maus anos agrícolas. As doenças epidémicas, em surtos cíclicos, ceifavam amplas faixas da população. Entre os conflitos, num tempo de definição de fronteiras e de afirmação do poder real, destacava-se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que opunha a Inglaterra à França e que, inclusivamente, conduziu a um Cisma Papal (1378-1417)1.
Sobre este atribulado pano de fundo tiveram lugar em Portugal a batalha de Aljubarrota (1385) e a conquista de Ceuta (1415). Tratam-se de dois combates ocorridos em guerras distintas, duas operações militares diferentes (um combate em campo aberto e um cerco), mas que, em comum, ficaram ligados à realeza de um filho ilegítimo chegado ao trono de Portugal (D. João I) e aos alicerces de uma nova dinastia (Avis), edificada por oposição ao reino hegemónico peninsular: Castela. Considerando o prisma político-institucional dos acontecimentos, pretendemos aqui descortinar a legitimação do poder régio pelas armas através da perspetiva que as fontes e a historiografia portuguesas nos legaram.
Importa, pois, ter presente que o discurso de legitimação em torno da guerra se insere, no âmbito da mentalidade medieval, numa conceção de história providencial que encontra as suas raízes em Santo Agostinho, bispo de Hipona no princípio século V: Deus era tido como o regulador do devir histórico e, nessa base, as vitórias e as derrotas marciais correspondiam a uma manifestação da sua vontade. Agora, nos finais da Idade Média, as monarquias davam especial expressão a este pensamento na fundamentação do seu poder pela propaganda, dos monumentos às crónicas, então particularmente impulsionadas pelas cabeças coroadas do Ocidente2.
Propomo-nos então abordar os fenómenos de Aljubarrota e de Ceuta separadamente, procurando contextualizá-los, salientando a ponderação régia, descrevê-los brevemente e, então, procurar interpretar o(s) seu(s) alcance(s), não perdendo de vista as principais formas propagandísticas que evocaram um e outro combate na legitimação da Coroa portuguesa.
“Nunca por legeira cousa moveo guerra comtra seus imiguos (…).”3
No prólogo da Crónica d’El-Rei D. João I, associada às virtudes “do mais excelente dos Rex que e[m] Portugal reinaraõ ”4, como a fé, a honra e a justiça, ressalta a posição do soberano quanto à guerra. O cronista Fernão Lopes5 apresenta-nos um monarca exemplar, que só tomou armas para praticar a “guerra justa”, a única que era aceite na perspetiva cristã. Segundo Margarida Garcez Ventura, esta conceção fora formulada por Santo Agostinho, que, recorrendo a autores clássicos e a passagens do Novo Testamento, estabelecera normas para um conflito ser declarado (jus ad bellum) e levado a cabo (jus in bellum): só poderia ocorrer para defender ou recuperar bens ou direitos perdidos, e apenas cabia ao príncipe, agente da vontade divina, declará-lo; na sua prossecução, dever-se-iam excluir ações, por exemplo, sobre Igrejas e não-combatentes. No fundo, a guerra era entendida como uma consequência do pecado, mas também um remédio para ele, se verdadeiramente justa e praticada como cumpria; o seu fim último era a paz6. Então, como poderia a “guerra justa” não se encontrar subjacente no discurso sobre o conflito que levou o monarca cognominado de Boa Memória ao trono luso?
O início da nossa história é conhecido. A 6 de Abril de 1385, as Cortes reunidas em Coimbra aclamavam rei de Portugal o filho natural de D. Pedro I (havido com Teresa Lourenço) e mestre de Avis, D. João. Postos de lado para suceder a D. Fernando, falecido havia quase dois anos, ficavam o infante D. João de Castro, seu meio-irmão, e a infanta D. Beatriz, filha legítima do defunto monarca e consorte de Juan I de Castela7. Assumindo um progressivo protagonismo nos acontecimentos que marcaram a vida do reino no último ano e meio, do assassinato do conde João Fernandes Andeiro (Dezembro de 1383) ao cerco castelhano a Lisboa (Maio a Setembro de 1384), D. João congregou decisivamente em torno de si vários prelados, muitos secundogénitos da nobreza e uma ampla franja de concelhos. Foram estes êxitos sucessivos que, na narrativa de Fernão Lopes, ficaram registados como o despontar de um eleito pela providência, um autêntico messias chamado a salvar o reino português8. Certo é que, uma vez no trono, procurou consolidar a sua realeza nos planos interno e externo.
Logo após a sua eleição, D. João I definiu as bases do seu núcleo político. Entre as nomeações para os altos cargos do oficialato régio destacaram-se as do jovem Nuno Álvares Pereira9 e do doutor João das Regras: o primeiro, seu “braço armado”, era feito mordomo-mor e condestável; e o segundo, seu “braço jurídico”, era elevado a chanceler-mor. Para o conselho do rei, “cabeça da governança”, foram indigitados um prelado, dois fidalgos, três letrados e quatro cidadãos escolhidos, respetivamente, pelas cidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, o que era revelador do peso concelhio na causa do mestre de Avis10.
Mas a realeza de D. João I carecia de reconhecimento e de apoio internacional. Por isso, pronto se determinou o envio de uma embaixada a Roma confirmando a obediência ao Papa Urbano VI, de quem se esperava a absolvição de todos os impedimentos que contrariassem a eleição do mestre de uma ordem religiosa militar como rei11. No entanto, era na Corte inglesa que, desde Maio do ano anterior, Lourenço Anes Fogaça, antigo chanceler de D. Fernando, e Fernando Afonso de Albuquerque, mestre de Santiago, negociavam o auxílio bélico a Portugal. Estes procuravam tirar partido da inimizade da monarquia insular para com a França, que vinha contando com o apoio de Castela na Guerra dos Cem Anos. Finalmente, em 1385, Lourenço Anes Fogaça e Fernando Afonso de Albuquerque conseguiram de Ricardo II (atento aos sucessos político-militares do mestre de Avis) a autorização para a contratação de gente de guerra. Em Abril de 1385, quando um reduzido mas experiente corpo de combatentes de 800 arqueiros e homens de armas (ingleses, gascões e outros mercenários) navegava para território luso, o monarca inglês escutava a proposta de D. João I, que, além de anunciar o seu estatuto régio, insistia numa aliança formal entre os reinos. Ao ambicioso duque de Lencastre, João de Gante, o agora rei de Portugal, entre promessas de apoio, renovava o desafio para que reclamasse a Coroa castelhana para D. Constança, sua mulher e filha do destronado Pedro I, o Cruel 12. Avizinhavam-se, pois, os combates.
Rei institucionalmente, urgia sê-lo no terreno. D. João I recebia um reino dividido e agitado, com diversos castelos fiéis a D. Beatriz e a Juan I no norte e no centro de Portugal e vários navios castelhanos fundeados no rio Tejo, diante de Lisboa, fazendo recear um novo assédio. Confirmado como alcaide de Coimbra Vasco Martins de Melo, no lugar de Gonçalo Mendes de Vasconcelos (tio da rainha-viúva D. Leonor Teles, mãe de D. Beatriz e sogra de Juan I), coube a D. João I marchar para norte ao encontro de D. Nuno Álvares Pereira para, “na comarca dAmtre Doiro e Minho”, dominar as praças “que tinham voz por el-Rey de Castela”13. Enquanto Neiva, Viana, Guimarães, Braga e Ponte de Lima foram tomadas por cerco, Cerveira, Caminha e Monção entregaram-se, no dizer de Fernão Lopes, “sem peleja e de seu grado”14. A ventura começava a sorrir ao novo rei na consolidação do território.
Porém, não tardou a resposta castelhana. Na viragem para Junho desenhava-se um ataque concêntrico a Portugal: ao largo de Lisboa, os navios de Castela chegavam às 40 naus; em Elvas, Juan I iniciava um cerco, com intuito de marchar pelo Alentejo; por Almeida, penetrava uma hoste liderada por Rodriguez de Castañeda. Esta, após destruir e pilhar até Viseu, acabou vencida num vale junto a Trancoso15 pelos fidalgos da beira, “postos em acordo”16 por ação de João Fernandes Pacheco. Era a primícia da vitória de Aljubarrota, no texto do cronista português17.
Sem grande sucesso, Juan I, ao cabo de poucas semanas, levantou o cerco elvense e dirigiu-se para Ciudad Rodrigo, outro eixo de infiltração em território luso. Aí, entre os conselhos para desencadear uma “guerra guerreada” na raia ou defrontar o inimigo no interior do reino, foi concentrando um grande exército. Cientes do risco de invasão, D. João I e D. Nuno Álvares Pereira desdobraram-se no recrutamento de uma hoste desde a comarca de entre Douro e Minho ao Alentejo. Na viragem para Agosto, o exército real português concentrou-se em Abrantes, ponto estratégico para responder à movimentação do exército castelhano18.
Por essa altura, havia duas semanas que Juan I entrara em Portugal. A partir de Almeida, fez caminho por Pinhel, Trancoso, Coimbra, Soure, Pombal e Leiria, onde chegou talvez na manhã do dia 12 de Agosto. O cronista Fernão Lopes acentuou nesta marcha todo o tipo de crueldades sobre homens, mulheres e crianças, além de destruição de igrejas, completamente ao arrepio da doutrina da “guerra justa”19. Ao que parece, Juan I dirigia-se para Santarém, castelo fiel a D. Beatriz, de onde marcharia sobre Lisboa, uma vez reagrupados os contingentes dos seus apoiantes.
O conselho régio luso reunido em Abrantes, considerando a desproporção dos exércitos, propôs na sua maioria uma invasão da Andaluzia para desviar a ofensiva. Opôs-se veementemente o condestável, chamando à atenção para a fragilidade de Lisboa – que, uma vez tomada, arrastaria consigo todo o reino – e apontando para a necessidade de uma batalha campal. Segundo Fernão Lopes, D. Nuno Álvares Pereira confiava na justiça divina contra aquele que queria apoderar-se de Portugal, quebrando os pactos de Salvaterra, assinados em 138320. Mas estaria também animado pelo sucesso do sistema tático por si seguido no campo de Atoleiros (em 1384) e, de certa forma, pelos nobres beirões na veiga de Trancoso. Trazido para solo continental durante a Guerra dos Cem Anos pelos ingleses, consistia em linhas gerais, segundo João Gouveia Monteiro, num posicionamento defensivo coeso, no combate apeado dos homens de armas e na disposição de atiradores nas alas21.
O condestável abandonou Abrantes com o seu exército privado, dirigindo-se para Tomar a 8 de Agosto, onde se lhe reuniu D. João I com a hoste régia. A batalha deveria acontecer e, de preferência, em lugar distanciado de Lisboa, embora com o inimigo bem internado no reino. A 12 de Agosto, estando os castelhanos em Leiria, como dissemos, o exército anglo-luso acampava em Porto-de-Mós. Após um reconhecimento nas imediações, os comandantes lusos escolheram como campo de batalha um planalto próximo da confluência do rio Lena com a ribeira de Calvaria, resguardado de ambos os lados por declives rematados por linhas de água.
No dia 14 de Agosto, pela manhã, a vanguarda portuguesa tomou uma posição voltada a norte, fazendo com que os castelhanos, de frente para sol e com uma ribeira e um morro íngreme para vencer, optassem por uma marcha torneante por poente, passando por Calvaria. A hoste anglo-lusa deslocou-se dois quilómetros para sul (onde se encontrava ao início da tarde), posicionando-se num terreno com cerca de 300 metros de frente, que reforçou com abatises, fossos e covas de lobo. A partir da esplanada do Chão da Feira, voltada para norte, a hoste castelhana começou a formar para o combate.
Frente a frente estariam, segundo estudos recentes22, dez mil homens da hoste de D. João I, incluindo os não combatentes, e vinte a trinta mil, no máximo, no exército franco-castelhano, encontrando-se boa parte ainda em trânsito. A hoste anglo-lusa formou com uma vanguarda de 600 lanças e vários peões (comandada pelo condestável), duas alas ligeiramente avançadas, com homens de armas e atiradores (besteiros portugueses e arqueiros ingleses), e, cerca de duzentos metros atrás, uma retaguarda de setecentas lanças (chefiada pelo rei), à qual se seguia a carriagem. Já as forças de Juan I tomaram posição com uma vanguarda de auxiliares franceses, num total de mil e seiscentas lanças, ladeada à direita e à esquerda por duas azes, cada qual com setecentos homens de armas. Já a retaguarda, em incompleto estado de organização, constituiu-se com três mil lanças em torno do monarca castelhano, que viajava doente (talvez com febre) numa liteira23.
Passava da hora de véspera – no calendário eclesiástico começaria o dia da Ascensão de Nossa Senhora – quando os trons castelhanos marcaram o início do combate. Com a progressão dificultada pelos obstáculos e pelo chuveiro de flechas, ocorreu uma carga da cavalaria da flor-de-lis e, depois, uma investida da retaguarda castelhana, cujos homens de armas desmontaram. Embora estes tenham conseguido romper o centro da vanguarda portuguesa, o movimento de “tenaz” das alas e o (oportuno) avanço da retaguarda às ordens de D. João cercaram as tropas inimigas, que em boa parte acabaram por sucumbir. A carriagem lusa, onde os ginetes do mestre de Alcântara causavam embaraços, foi socorrida decisivamente pelo condestável. Entretanto, tinha tombado o pendão real castelhano, fazendo grassar o pânico no exército. O próprio rei de Castela, assustado, foi atirado para cima de um cavalo e apressou-se a chegar a Santarém, de onde partiria por meio aquático para Sevilha, deixando a hoste à sua sorte.
Em talvez menos de uma hora, o combate estava perdido para o exército de Juan I, que ali sofrera baixas significativas (talvez cerca de dois mil e quinhentos homens), com destaque para a perda de proeminentes membros da nobreza francesa, castelhana e portuguesa (pró-D. Beatriz). Os sobreviventes derrotados fugiam como podiam para as vilas e aldeias vizinhas, acabando muitos deles mortos e aprisionados; no campo, tomando posse do despojo inimigo, a hoste anglo-portuguesa, de acordo com as práticas da guerra medieval, acampou durante três dias para tornar pública a vitória24. Em resumo, como afirmou Maria Helena da Cruz Coelho, “o êxito da batalha legitimara, pelas armas, a escolha, feita em Cortes, de um rei português”25.
Assim cristalizaria Fernão Lopes o sucesso luso. Este burocrata de origens humildes, após uma escalada social e económica na corte de Avis, seria contratado no reinado de D. Duarte para “poer em caronyca as estorias dos reys que antygamente de portugal foram”, a par dos “grandes feytos e altos do muy uertuoso” do fundador da dinastia26.
À distância de meio século, o primeiro cronista régio português atribuiu na Crónica d’El-Rei D. João I uma grande centralidade a Aljubarrota, acentuando uma peleja militarmente desproporcional que acabou decidida pelo juízo de Deus: afinal, o monarca de Avis, para além da defesa da terra, combatera fiel a Cristo, pelo Papa de Roma, derrotando um exército que, movido pela cobiça, era composto por hereges, cismáticos e excomungados – afinal, Juan I de Castela alinhava pelo pontífice de Avinhão27. Nessa linha, em contraste com o luto castelhano, o cronista narrou com harmonia as celebrações no reino em ação de graças.
“Madre e amada do mestre de Avis”28, Lisboa, honrada com as bandeiras reais castelhanas, encheu-se de orações e procissões – a câmara decretou que todos os anos, em memória da batalha, se realizassem três procissões na Semana da Assunção da Virgem (por causa da hora do dia, segundo o calendário religioso, atribuiu-se o auxílio mariano), outra no dia de S. Vicente e outra no dia de S. Jorge. A própria homília imputada por Fernão Lopes a Frei Pedro na sé lisboeta, comparando a vitória lusa aos feitos do povo de Israel, entre factos e profecias, sugere o apoio divino ao mestre de Avis, legitimando por completo a sua eleição régia na perspetiva de uma filosofia do poder29.
Não faltaram também as peregrinações, como a de D. Nuno Álvares Pereira, que após o combate rumou a Santa Maria de Ourém, e a de D. João I, que, em meados de Setembro, partiu a pé do campo de batalha em direção a Santa Maria de Oliveira de Guimarães30. Nos agradecimentos à Virgem, entre orações e esmolas, destacou-se a oferta régia de uma notável evocação da batalha: um oratório de prata que retrata o nascimento de Cristo e que ficou conhecido por “Tríptico de Aljubarrota”, para alguns pertença da capela do rei castelhano, para outros construído com a prata aí recolhida31.
Nesta sequência, Aljubarrota estaria também na base de memórias de pedra. Em 1388, D. Nuno Álvares Pereira mandaria erguer no campo de batalha uma ermida dedicada à Virgem (cerca de cinquenta anos depois com o orago de S. Jorge), e no ano seguinte o Mosteiro de Santa Maria do Carmo, em Lisboa, para onde entraria em 1423 como professo32. Já D. João I, pronto ordenaria a edificação, a poucos quilómetros (a norte) do campo de batalha, do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, com obras em curso já em 138833. Confiada aos dominicanos, aquela grandiosa construção de arquitetura gótica tardia converter-se-ia em símbolo da afirmação da legitimidade da nova dinastia que, ao instituir ali o seu panteão, se associava para sempre ao local da batalha real.
Evocações e propaganda à parte, a batalha de Aljubarrota consolidara decisivamente a realeza do mestre de Avis e deixara o rei castelhano incapaz de discutir a sucessão de D. Fernando. Após o combate, passaram-se para D. João I vários castelos, quer por abandono dos castelhanos ou portugueses em fuga e rendição, quer por entrega daqueles que, hesitantes, se inclinaram perante os vencedores. Foi assim que, ainda em 1385, se entregaram Santarém, Leiria, Óbidos, Alenquer, Torres Vedras, Torres Novas e Sintra, em torno de Lisboa, Crato, Monforte, Vila Viçosa e Marvão, no Alentejo. Era agora a confirmação providencial, no discurso de Fernão Lopes34.
No plano internacional, alcançaram-se importantes sucessos. Lourenço Anes Fogaça e o mestre de Santiago, informando a corte inglesa do sucesso de D. João I na batalha real, lograram o interesse de Ricardo II em negociar um tratado de aliança entre as monarquias e a decisão do duque de Lencastre pela empresa castelhana. A 9 de Maio do ano seguinte, anunciava-se o Tratado de Windsor entre Portugal e Inglaterra, reforçando laços políticos, militares e comerciais. Chegado à Galiza em Julho de 1386, João de Gante avistar-se-ia em Ponte de Mouro, a 1 de Novembro, com D. João I, que simbolicamente o recebeu em “hua temda gramde que fora dell Rey de Castella, tomada na batalha reall”35. Assente veio a ficar o casamento do rei português com a filha do duque, Filipa, e o envolvimento português na campanha em Castela. Celebrado o casamento a 2 de Fevereiro de 1387, a empresa militar anglo-lusa no Douro castelhano terminou em Junho sem honra nem glória, mas revelara-se importante para manter Juan I sob pressão militar36.
D. João I e o condestável dedicaram-se então na consolidação do território, registando-se ainda alguns saques e cercos entre Portugal e Castela. Porém, as armas dariam cada vez mais lugar à diplomacia. A 29 de Novembro de 1389 assinava-se uma primeira trégua, com duração de seis anos. A inesperada morte de Juan I, a 9 de Outubro de 1390, deixou no trono Henrique III, ainda menor. D. João I, entretanto dispensado dos votos solenes de religião por Bonifácio IX, logrou outro sucesso diplomático com a assinatura, a 15 de Maio de 1393, de uma nova trégua, agora por quinze anos (embora só verdadeiramente cumprida durante três anos). Após dois curtos conflitos, em 1396-98 e em 1400, os reinos alcançaram uma trégua de dez anos a 6 de Outubro de 1402. Mas, em 1406, ocorreu de novo a morte prematura de um rei castelhano, abrindo caminho às negociações com a viúva, Catarina de Lencastre, irmã da rainha portuguesa, e com o irmão, o infante Fernando (de Antequera), então mais preocupado com a guerra granadina e com o trono aragonês no horizonte37. Neste contexto, a 31 de Outubro de 1411, em Ayllón, os embaixadores de Portugal e Castela formalizariam o tratado que, segundo Fernão Lopes, “cesou a guerra de todo” e instituiu a paz que “prazera a Deos ”38.
“Que posto que elle [D. João I] ouvesse guerra muy justa com seus jmigos a qual era por defensam de sua terra, na qual suas armas muitas vezes forom tintas de sangue, que elle nom entendia dello fazer comprida pendença senom lavando suas maãos no sangue dos jnfiees.”39
No segundo capítulo da Crónica da Tomada de Ceuta, Gomes Eanes de Zurara sugere-nos como, derramado sangue cristão na defesa do reino, D. João I procurou como que redimir-se com um combate mais sublime, por honra de Deus, apontando armas aos inimigos da fé. Igualmente justa, a “guerra santa” corresponde no dizer de Margarida Garcez Ventura a uma conceção assumida nos finais do século XI pela Igreja, com o advento das Cruzadas. A sua doutrina pressupunha um combate com fins religiosos que visava a destruição do poder político, militar e económico que sustinha a chamada cidade do diabo, conotada com o espaço muçulmano. No fundo, de acordo com a mesma autora: “o guerreiro abre caminho ao missionário, a expedição militar justifica-se pela obra apostólica e confunde-se com ela”40. Poderia haver maior consagração para o filho ilegítimo de D. Pedro I que em Aljubarrota viabilizou a sua coroa e a independência do reino?
Assinado o Tratado de Paz de Ayllón entre Portugal Castela, contava-se mais de um quarto de século desde o princípio do conflito. Eram muitas as cicatrizes deixadas pela guerra. As riquezas no interior de Portugal encontravam-se exauridas, mais do que pelas destruições, pelo sustento de um aparelho marcial quase sempre em armas. Não existiam em território português os metais preciosos para a cunhagem de boa moeda, que a Coroa se vira forçada a desvalorizar de forma acentuada nas últimas décadas41. Escasseava a terra para agraciar vassalos, alguns dos quais anos antes, quebrando as suas relações feudo-vassálicas, se haviam bandeado para Castela descontentes com D. João I. Rarefaziam-se a um nível preocupante os cereais para alimentar gentes, em parte consequência dos braços arrancados ao campo para a guerra. Então, como sintetizou Maria Helena Coelho, “era preciso mobilizar as forças sociais do reino para superar as dificuldades”42.
“Ca nos da huma parte nos cerca o maar e da outra temos muro no rreino de Castella”43, afirmou o cronista Zurara a respeito da localização de Portugal. Impensável uma expansão sobre a monarquia castelhana, a geografia deixava ao reino uma saída para o mar. Mas à custa de quem? Decerto os portugueses estavam cientes de como, séculos antes, o reino se viabilizara o reino na luta contra os muçulmanos. A pequena monarquia de Granada, no sudeste da Península Ibérica, mantinha viva a memória de uma civilização urbana e comercial islâmica. Apontar-lhe armas corresponderia à libertação do mar do Estreito do perigo muçulmano e à segurança do comércio, favorecendo a economia mercantil44.
Contactada a regência castelhana pouco depois das pazes sobre a eventualidade de uma empresa lusa em Granada, o parecer foi negativo por parte do infante Fernando de Antequera. Além das tréguas que vigoravam entre castelhanos e granadinos, os primeiros consideravam o reino nazarí “casi em sogeiçam dizendo que he da sua conquista”45. Havia que reformular o projecto.
Segundo Zurara, fora o vedor da fazenda português, João Afonso de Alenquer, quem apontara Ceuta como alternativa a tomar, por haver escutado informações de um criado que fora recentemente resgatar cativos a essa “muy notavel”, “riqua” e “fremosa” cidade46. Situada no lado sul das chamadas “Colunas de Hércules”, para os antigos gregos o limite conhecido do mundo antigo, Ceuta era bem conhecida entre os cristãos peninsulares. O cronista luso, além de atribuir a sua fundação mítica a um neto de Noé, para lhe conferir dignidade, relembra como a cidade deixou de ser cristã com o fim da monarquia visigótica e passara para a posse muçulmana47. No século XV, integrava o reino de Fez da dinastia berbere dos merínidas, que então sofria alguma fragmentação no território. Além disso, escaparia à coroa portuguesa o conhecimento de que Ceuta à luz do convénio castelhano-aragonês de Monteagudo, assinado em 1291, era tida como o limite ocidental daquela partilha, que entendia a Berberia como continuação da Reconquista48?
Tenha sido ou não proposta aventada o vedor da fazenda – por combinação ou não com um rei informado da oportunidade da conquista –, a hipótese de Ceuta parece ter colhido grande apoio entre os filhos de D. João I. O monarca, que na viragem para 1412 pensava organizar em Lisboa festas com “notauees justas e grandes torneos”49 para armar cavaleiros os três infantes mais velhos, tendo em conta as suas idades, encontrou neles a preferência de serem investidos num teatro de guerra. D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, contando com o apoio do meio-irmão D. Afonso, não perderam tempo em argumentar junto do pai, segundo Zurara, como aquele projecto era serviço de Deus, dando continuidade ao esforço dos “bem auenturados rreis dEspanha” dos quais descendia; acréscimo de honra régia, pois seria uma guerra livre, não ditada pela necessidade, em que o monarca se oferecia em trabalhos e perigos; oportunidade para cumprir a “boõa vontade” de armar cavaleiros os infantes de forma grande e digna50. Os filhos de D. João I surgiam assim na crónica como voz das virtudes da expedição a Ceuta.
Mas o ímpeto dos infantes era contraposto – ou complementado – pela sapiência e ponderação do monarca, segundo a Crónica da Tomada de Ceuta. Por isso, esta narrativa nos mostra um D. João I a convocar um conselho alargado – com a presença de confessores, de letrados de Lisboa e de outros notáveis da capital – que lhe garante que aquela empresa seria serviço de Deus; ao mesmo tempo, o rei português exigiu pareceres por escrito, segundo Zurara, aos três infantes mais velhos, considerando a viabilidade do projecto, bem como respostas relativas às despesas logísticas e humanas que acarretaria. Inclinando-se então a favor da expedição, o monarca consultaria ainda duas figuras fundamentais da sua corte: a rainha D. Filipa e o condestável D. Nuno. Um e outro, não duvidando do dever de combate ao infiel, mostraram-se também favoráveis ao projecto51.
Após uma cuidada maturação de ideias, D. João I decidiu-se a favor da conquista de Ceuta52. Afinal, só pelo mar se poderia sustentar a terra, consolidando independência do reino face a Castela e prestigiando-o diante da cúria romana e das cortes da Cristandade. Naquela terra de gentios, esperava-se que o clero encontrasse benefícios e rendas pelo exercício do seu múnus espiritual, a nobreza terras e feitos militares que lhes garantissem a honra e o proveito de benesses reais e a população mais humilde uma vida melhor. Urgia agora preparar a empresa, mas com rigor e sigilo.
O rei, assumindo a organização da frota e o equipamento em armas e artilharia, associaria o infante herdeiro D. Duarte ao governo do reino; atribuiria o recrutamento em Entre Douro e Minho ao seu filho natural e conde de Barcelos, D. Afonso, enquanto a mobilização em Trás-os-Montes e na Beira caberia ao infante D. Henrique e na Estremadura, Entre Tejo e Guadiana e Algarve ao infante D. Pedro. Zurara narrara então, detalhadamente, a ação da construção naval, da cunhagem da moeda e dos alardos pelo reino que decorreram nos anos de preparativos. Mas, entretanto, para conhecer a geografia e as defesas de Ceuta, não faltou uma missão de espionagem protagonizada por volta de 1413 pelo prior do Hospital, D. Álvaro Camelo, e pelo capitão do mar, Afonso Furtado, que aportaram na cidade com o pretexto de uma viagem para propor D. Pedro em casamento à rainha da Sicília53.
Em 1414, perto de três anos decorridos sobre as primeiras impressões em torno do projecto, D. João I, na sua prudente postura, convocou um conselho para Torres Vedras. A Crónica da Tomada de Ceuta refere como, encomendando-se ao Espírito Santo, o rei se reuniu os infantes e os principais conselheiros régios, determinando a partida da armada para o dia de S. João do ano seguinte. Para manter o secretismo do seu destino, estabeleceu-se o envio de Fernão Fogaça junto do duque da Holanda simulando desafiá-lo por danos aos mercadores portugueses. Mas nem a encenação mantida pelo duque convenceu as cortes estrangeiras, afluindo preocupados a Portugal embaixadores (e até espiões!) de Castela, de Aragão e de Granada54.
No final da Primavera de 1415, os barcos comandados por D. Henrique ter-se-ão juntado aos de D. Pedro. Segundo Zurara, a frota fundeou frente Belém com toda a pompa, “apemdoada e tolldada” com o mote e a divisa do rei55. Eis que, a 18 de Julho, morreu de peste a rainha. Peça-chave na narrativa da Crónica da Tomada de Ceuta enquanto legitimadora da dinastia, D. Filipa é apresentada nos seus derradeiros momentos a entregar as espadas aos filhos e a encomendar-lhes os valores da cavalaria – uma cena talvez pouco verosímil, tendo em conta a debilidade que a peste infligia à mulher de D. João I nos seus últimos dias. Ainda assim, a rainha seria mesmo tida por procuradora da expedição junto de Deus no discurso que o cronista Zurara atribui ao rei no conselho entretanto reunido em Alhos Vedros, no qual se defrontaram uma corrente que entendia a morte de D. Filipa como mau presságio, com o condestável à cabeça, e outra favorável à viagem, com os infantes na frente. Afinal, as orações da rainha, mais “limpamente”56 ouvidas no céu, como que pré-anunciavam o sucesso militar e a glória da empresa cristã.
A 25 de Julho, uma poderosa frota levantou ferro do Restelo. Comandada pelo rei em pessoa, contava com a presença dos três infantes mais velhos e os principais senhores do reino. Em mais de duzentos barcos, seguiam cerca de vinte mil combatentes, números impressionantes à escala portuguesa e mesmo internacional. Tudo se apostara para a concretização de um grande feito. Por isso só três dias depois, ao largo de Lagos, o franciscano Frei João de Xira anunciou o destino da viagem, juntamente com a bula de cruzada57.
A travessia do Estreito de Gibraltar, a 9 de Agosto, saldou-se num insucesso pelas más condições meteorológicas, que arrastaram os navios à vela para Málaga. De terra, os muçulmanos de Ceuta responderam, sem consequências, com trons e virotes. Mas, pior, o governador, Salah ben Salah, chamaria reforços para a guarnição58.
A armada lusa tornou ao lado norte do Estreito, onde tratou de se recompor entre 12 e 19 daquele mês. Na pena do cronista, ouviam-se já vozes com vontade de regressar ao reino. Mas, recomposta a frota, D. João I reuniu firmemente, na Ponta do Carneiro (um cabo perto de Algeciras), um novo conselho para definir o ataque. Enquanto alguns defendiam uma ofensiva simultânea por mar e terra, para impedir a aproximação de reforços, o rei inclinava-se para a concentração de forças no mar. Desta forma o monarca assentou o ataque, prevendo-se que uma parte da frota, sob o seu comando, deveria simular um desembarque sobre a cidade, enquanto outras embarcações, chefiadas por D. Henrique, avançariam sobre a Almina.
A nova travessia do Estreito ocorreu na noite de dia 20. Zurara narra-a registando os sentimentos de medos e de euforias, de penitência e prazer, com votos pelo sucesso pelo meio, como os de D. Duarte à Virgem, que se materializariam mais tarde na instituição do mosteiro franciscano na Ermida de Santa Maria das Virtudes59.
Na manhã do dia 21, Salah ben Salah havia já desmobilizado os reforços que chamara dias antes. A frota portuguesa começou por manobrar tal como o monarca estabelecera, mas logo o desembarque desordenado rompeu com o estabelecido. Segundo Zurara, um homem do conde de Barcelos avançara para a praia de Santo Amaro num batel, seguido pelo infante D. Henrique, com alguns mais. Com cerca de cento e cinquenta combatentes a escaramuçar com os mouros, D. Duarte e D. Henrique sentiram inevitável precipitar o ataque para não deixar esmorecer o ímpeto. Desembarcados quase quinhentos homens, os portugueses entraram tumultuosamente e de roldão por uma das portas, logo abrindo e destruindo outras para permitir a entrada de mais contingentes60.
Não percebendo o que se estava a passar, D. João I mandou D. Pedro ir a terra colher informações. Uma vez a par da situação, logo o rei ordenou o desembarque do grosso do exército. Nas ruas estreitas e tortuosas de Ceuta os combates traduziam-se numa sucessiva tomada de posições pelos portugueses no sentido do castelo, onde se radicava o núcleo da resistência islâmica. Ao fim da tarde, dominada a cidade, os infantes debatiam com os conselheiros na mesquita-maior o ataque à fortaleza para o dia seguinte quando souberam do seu abandono por Salah ben Salah. Fazendo chegar a notícia ao rei, este ordenou a sua ocupação, prontamente facilitada pelo abandono da guarnição e, segundo Zurara, pela abertura da porta por um biscainho e um genovês61.
Estava consumada a conquista de Ceuta e logo, como era vontade régia, se arvorou a bandeira de S. Vicente, padroeiro de Lisboa, na “mais alta torre” do castelo62. Associava-se simbolicamente a cidade da revolução de 1383-1385 à cidade da consagração do rei.
Terá sido a primeira de várias evocações em torno da praça norte-africana, como a que o rei procederia em breve no seu título, quando ao de “rei de Portugal e do Algarve” acrescentou o de “Senhor de Ceuta”, dando escala à sua realeza. Este serviu, por sua vez, como que de mote para as letras que mandaria esculpir na pedra do seu epitáfio, salientando que fora o primeiro rei cristão que após o domínio da Hispânia pelos infiéis a desafrontou conquistando Ceuta, em África, na terra dos invasores63.
Mas o feito então consumado ficaria imortalizado nas letras, pelos anos de 1449-1450, na Crónica da Tomada de Ceuta, que vimos seguindo. É sintomático que Gomes Eanes de Zurara, que sucederia a Fernão Lopes como cronista régio, tenha dedicado uma obra a este acontecimento militar, que decerto se considerava um dos traços de identidade da dinastia de Avis. Trata-se, no fundo, de uma narrativa apologética das conquistas marroquinas e dos valores da cavalaria nobiliárquica que, vencido o partido do infante D. Pedro em Alfarrobeira, se encontrava em ascensão na corte de D. Afonso V64.
Deixando as memórias do feito, certo é que a decisão pela manutenção da praça deixou caminho aberto para que, a 2 de Setembro de 1415, aceitasse o cargo de capitão D. Pedro de Meneses, após as escusas do condestável, do marechal e de Martim Afonso de Melo. Aquele nobre era, afinal, a face visível de uma nobreza que, depois de se exilar em Castela nas lutas passadas, se reconciliava com a coroa e reabilitava a sua família.
Ao nível da realeza, a jovem dinastia de Avis enobrecia ao mais alto nível a sua linhagem. Os infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, além de terem sido armados cavaleiros na sequência da conquista de Ceuta, na antiga mesquita convertida em igreja, seriam alcandorados, à exceção do herdeiro da coroa, aos mais altos títulos nobiliárquicos. Regressados a Portugal, D. Pedro e D. Henrique, respetivamente, receberiam os senhorios de Coimbra e de Viseu com o título ducal, até então inexistente no reino65.
Para o estrangeiro, D. João I apressara-se a dar conta da boa-nova. A Roma, em pleno Concílio de Constança (1414-1417), onde se procurava pôr fim ao Cisma Papal, obsequiava uma «fazenda» para lançar a «boa semente». Aos reinos da Cristandade, em plena Guerra dos Cem Anos, com Henrique V de Inglaterra prestes a defrontar a França de Carlos VI em Azincourt, oferecia, dominado o Estreito, maior segurança de navegação e comércio entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Face a Castela, em particular, D. João I legitimava inequivocamente a dinastia e reiterava a independência do reino, logrando já próximo do fim dos seus dias, em 1431-1432, a assinatura da paz perpétua em Medina del Campo66.
Entre os tempos conturbados que marcaram a Cristandade na charneira entre as centúrias de Trezentos e Quatrocentos, o reino de Portugal viu nascer e consolidar uma dinastia cujo fundador, embora de estirpe real, era ilegítimo. Pela singularidade do seu nascimento, o mestre de Avis D. João, uma vez eleito décimo rei de Portugal, teve de se justificar de forma incessante: interna e externamente. Foi nesse processo de afirmação que, à legitimação institucional, se juntou decisivamente a legitimação pelas armas – afinal, o fenómeno da guerra andava de mão dada com o fortalecimento do poder régio, como já ficou estudado para a vizinha Castela67.
A Batalha de Aljubarrota de 1385 e a conquista de Ceuta de 1415, separadas rigorosamente por trinta anos, marcaram dois momentos nucleares do reinado joanino. A vitória de Aljubarrota confirmava a eleição das Cortes de Coimbra de D. João I, que, afirmando combater em guerra justa, assegurava a sua realeza e a independência do reino. A tomada de Ceuta consagrava o monarca com os mais nobres ideais que, pela guerra santa, se legitimava por completo e à sua linhagem. No fundo, Ceuta dava escala a Aljubarrota. A primeira guerra fora imposta; a segunda fora desejada. As raízes memoriais do monarca eram guerreiras e a elas regressou.
Os êxitos em ambos os feitos, previamente decididos em conselho, mostravam, à luz da mentalidade medieval, o inquestionável favor divino a D. João I. Assim o veiculavam os mecanismos de memória e propaganda régia, através dos quais a dinastia de Avis pretendia, segundo Maria Helena da Cruz Coelho, “afirmar o seu poder e dar mostras da sua contínua e apaziguadora omnipresença e perenidade”68. Por isso, entre o tempo de D. João I e o dos seus sucessores se tratou de fazer figurar estes acontecimentos militares com todo o cuidado, das crónicas aos monumentos, sem esquecer, como vimos, as evocações da escultura (em epitáfio), dos rituais (de acção de graças) e mesmo da chancelaria (ao formalizar título). Observadas nos nossos dias, estas representações levam-nos, de certa forma, ao encontro das palavras de Ana Isabel Buescu, quando salientou que “entre a verdade e a história existe um largo espaço, frequentemente ocupado por imagens construídas, muitas vezes tão ou mais eficazes do que o «realmente acontecido»”69.
Fontes
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1 Le Goff, Jacques: A civilização do ocidente medieval. Vol. 1. 2ª ed. Manuel Ruas (trad.). Lisboa, Estampa, 1994, pp. 141-145.
2 Bourdé, Guy; Martin, Hervé: As Escolas Históricas. Ana Rabaça (trad.). Mem Martins, Europa América, 2003, pp. 13-43.
3 Lopes, Fernão: Crónica de D. João I. Segunda Parte. Barcelos, Livraria Civilização, 1983, prólogo, p. 3.
4 Lopes, Fernão: op. cit., prólogo, p. 2.
5 Para o estudo da batalha de Aljubarrota, para além da fonte narrativa que seguimos, podem ser lidas as as seguintes crónicas: Ayala, Pero López de: Crónicas (Don Pedro Primero, Don Enrique Segundo, Don Juan Primero y Don Enrique Terceiro). Edición, prólogo y notas de José-Luis Martín. Barcelona, Editorial Planeta, 1991; Crónica do Condestabre de Portugal. Lisboa: Ministério da Educação Nacional, 1969; Froissart, Jean de: Chroniques. Paris, Librairie Ancienne Honoré Champion, 1931.
6 Ventura, Margarida Garcez: «A “Guerra Justa”: tradição, doutrina e prática nos inícios da modernidade. O caso português» en Homo Viator. Estudos em Homenagem a Fernando Cristóvão. Lisboa, Colibri, 2004, pp. 566-571.
7 Coelho, Maria Helena da Cruz: D. João I, o que re-colheu Boa Memória. Lisboa, Temas e Debates, 2008, pp. 59-67.
8 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa. Um estudo de mitologia política (1383-1415). Lisboa, Edições Cosmos, 1992, p. 73.
9 Acerca de D. Nuno Álvares Pereira, leia-se a recente biografia: Monteiro, João Gouveia: Nuno Álvares Pereira. Os três rostos do condestável: guerreiro, senhor feudal, santo. Lisboa, Manuscrito, 2017.
10 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., pp. 68-71.
11 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 67.
12 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., pp. 94-96.
13 Lopes, Fernão: op. cit., cap. IV, p. 13.
14 Lopes, Fernão: op. cit., cap. VII, p. 18.
15 Sobre a batalha de Trancoso, leia-se: Arnaut, Salvador Dias: A Batalha de Trancoso. Barcelos, Comp. Editora do Minho, 1951.
16 Lopes, Fernão: op. cit., cap. XVIII-XXV, pp. 41-59.
17 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa (…), p. 81.
18 Lopes, Fernão: op. cit., cap. XXI-XXIV, pp. 49-57.
19 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa (…), p. 82.
20 Lopes, Fernão: op. cit., cap. XXIX, pp. 65-68.
21 Monteiro, João Gouveia: «As batalhas campais» en Nova História Militar de Portugal. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira (dir). Vol. 1. José Mattoso (coord). Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 232-244.
22 Monteiro, João Gouveia: «A batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385)» en História Militar de Portugal. Nuno Severiano Teixeira (coord.). Lisboa, A Esfera dos Livros, 2017, pp. 188-193.
23 Monteiro, João Gouveia: Aljubarrota. 1385. A Batalha Real. Lisboa, Tribuna da História; Calvaria de Cima: Fundação Batalha de Aljubarrota, 2007, pp. 82-100.
24 Monteiro, João Gouveia: Aljubarrota. 1385. A Batalha Real, pp. 88-118.
25 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 86.
26 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 249; Amado, Teresa: «Fernão Lopes» en Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (coord.). Lisboa, Caminho, 1993, pp. 271-273.
27 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa (…), p. 82.
28 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 88.
29 Lopes, Fernão: op. cit., cap. XLVII, pp. 122-129.
30 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 89.
31 Carvalho, António Lopes de: O Tríptico de Aljubarrota. Guimarães, Câmara Municipal, 1960.
32 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 89.
33 Gomes, Saul António: O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra-Instituto de História de Arte, 1990, p. 8.
34 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa (…), pp. 86-87.
35 Lopes, Fernão: op. cit., cap. XCI, p. 217.
36 Monteiro, João Gouveia: «A campanha anglo-portuguesa em Castela e Leão (1387» en Nova História Militar de Portugal. Vol. 1, pp. 277-279.
37 Araújo, Julieta: Portugal e Castela na Idade Média. Lisboa, Colibri, 2009, pp. 13-27.
38 Lopes, Fernão: op. cit., cap. CXCV, p. 441.
39 Zurara, Gomes Eanes de: Crónica da Tomada de Ceuta por el-rei D. João I. Lisboa, Academia das Sciencias de Lisboa, 1915, cap. II, pp. 8-9.
40 Ventura, Margarida Garcez: “A ‘Guerra Justa’ (…)” en Homo Viator. Estudos em Homenagem a Fernando Cristóvão, p. 571.
41 MARQUES, A. H. de Oliveira: Nova História de Portugal. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (dir.). Vol. 4. A. H. de Oliveira Marques (coord.). Lisboa, Presença, 1987, p. 540.
42 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 171.
43 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. VI, p. 20.
44 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 171.
45 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. VII, p. 23.
46 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. IX, p. 27.
47 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. II, p. 10.
48 Farinha, António Dias: Os Portugueses em Marrocos. 2ª ed. Lisboa, Instituto Camões, 2002, p. 8.
49 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. VIII, p. 24.
50 Zurara, Gomes Eanes de: Crónica da Tomada de Ceuta por el-rei D. João I, cap. IX, p. 28-29.
51 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., pp. 172-173.
52 Ventura, Margarida Garcez: O Messias de Lisboa (…), p. 95
53 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. XVI-XVIII, pp. 51-59.
54 Moreno, Humberto Baquero: «O valor da crónica de Zurara sobre a conquista de Ceuta» en A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos Europeus em Homenagem a Luís de Albuquerque. Vol. 2. Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 194
55 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. XXXVI, p. 115
56 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. XLVIII, p. 149.
57 Monteiro, João Gouveia; Costa, António Martins: 1415 – A conquista de Ceuta. Lisboa, Manuscrito, 2015, pp. 42-43.
58 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., pp. 179-180.
59 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 181.
60 Duarte, Luís Miguel: Ceuta, 1415. Lisboa, Livros Horizonte, 2015, pp. 180-181.
61 DUARTE, Luís Miguel: «África» en Nova História Militar de Portugal. Vol. 1, pp. 400-403.
62 Zurara, Gomes Eanes de: op. cit., cap. LXXXVI, p. 231.
63 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 185.
64 Gomes, Rita Costa: “Zurara, Gomes Eanes de” en Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, pp. 687-690.
65 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., pp. 182-186.
66 Araújo, Julieta: op. cit., pp. 61-63.
67 Arias Guillén, Fernando: Guerra y fortalecimento del poder regio en Castilla. El reinado de Alfonso XI (1312-1350). Madrid, CSIC, 2012.
68 Coelho, Maria Helena da Cruz: op. cit., p. 242.
69 BUESCU, Ana Isabel – “Um mito das origens da nacionalidade: o milagre de Ourique”. In A Memória da Nação. Colóquio do Gabinete de Estudos de Simbologia realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, 7-9 Outubro, 1987. Org. de Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1991, p. 50.
Doutor em História da Idade Média. Investigador do Centro de História da Sociedade e da Cultura e do Centro de História da Universidade de Lisboa.