Nº 2461/2462 - Fevereiro/Março de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Identidade e Individualidade Nacional Portuguesa
Tenente-coronel PilAv
João José Brandão Ferreira
“A falta de personalidade das elites portuguesas
constitui um perigo nacional permanente”
Artur Ribeiro Lopes
(in “Política”, 141)
 
Falar de identidade e individualidade nacional é um assunto de todos os tempos e de todos os cidadãos. Sem embargo, a sua relevância varia com a conjuntura quer nacional, quer internacional e a sua importância abrange os portugueses de todas as condições sociais sem todavia pôr em causa a prioridade que deve ser dada àqueles que se destinam a ocupar lugares de responsabilidade.
 
Actualmente, vivemos tempos em que a reflexão sobre estes conceitos é mais importante do que nunca. Por um lado, vivemos tempos de globalização em todos os aspectos da actividade humana - e não quero deixar passar a oportunidade para frisar que a primeira globalização foi feita pelos portu­gueses, não só porque puseram todo o mundo em comum mas, ainda, porque tentaram construir um projecto de unidade espiritual sob a égide portuguesa. Ora só sobreviveremos a esta globalização se conseguirmos manter uma mais valia colectiva em termos qualitativos e quantitativos.
 
Por outro lado, o mundo cada vez é mais atravessado por internacionalismos e por organizações de carácter transversal. E Portugal pertence ainda a diversas organizações internacionais políticas, económicas e de segurança e defesa.
 
A nível da União Europeia existem teses de futuro de carácter federalista e de ambos os lados da fronteira Luso-Espanhola continuam vivos sonhos de União Ibérica. As ameaças à identidade e individualidade portuguesa são pois vastas e de muitos matizes. Mas não ficamos por aqui - o nível da consciencialização da sociedade para esta problemática está cada vez mais frágil.
 
Primeiro pela escola que não ensina; depois pela acção deletéria dos media; por correntes doutrinárias e filosóficas com preponderância em meios intelectuais e artísticos; pelo fim do serviço militar obrigatório, etc. E também pela desagregação da família tradicional. Não nos devemos esquecer que uma Nação não é mais do que um conjunto de famílias, se quisermos, uma família grande.
 
Finalmente pelo próprio discurso oficial que maioritariamente esquece estes conceitos. E quando fala limita-se a aspectos de identidade - como a língua, por exemplo - deixando cair o termo individualidade que obviamente está ligado à soberania e independência.
 
Ora, caros leitores, eu não sei como se consegue manter uma sem a outra. E pergunto ainda para que é que nos serve a identidade se não quisermos assumir uma individualidade... Vou tentar ilustrar o que estou a dizer com um pequeno exemplo. Todos os 1º de Dezembro comemora-se o feriado do 1º de Dezembro, onde se comemora a restauração da independência nacional, ou melhor dizendo, se comemora a data em que a coroa portuguesa deixou de estar associada à coroa espanhola.
 
Quantos dos leitores já participaram nas cerimónias? E no 10 de Junho, onde se comemora o dia de Portugal? Muito poucos, certamente! Mas não fiquem acabrunhados, a maioria de quem está a ler este escrito faz parte do esmagador número de portugueses para quem os feriados são apenas um dia para folgarem. E o mesmo se vai passando com as entidades oficiais, que se limitam a promover pequenas cerimónias algo soporíferas.
 
Ora se quase ninguém no País liga ao significado dos feriados, justifica-se que eles existam? E notem que não estou a falar de feriados religiosos que apenas vinculam os crentes, nem de datas que possam não ser consensuais na sociedade portuguesa, como sejam o 5 de Outubro ou o 25 de Abril, por exemplo, mas sim a duas efemérides em que se comemora e exalta a nação dos portugueses e a Independência Nacional.
 
“Eis aqui, quase cume da cabeça da Europa toda, o Reino Lusitano, onde a terra se acaba e o mar começa.
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu Justo que floresça
Nas armas contra o Torpe Mauritano,
Deixando-se de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente”.
Lusíadas
Canto III, 20
 
Creio que um pequeno bosquejo histórico é importante para nos situarmos melhor neste tema, e quero também frisar que o silêncio e deturpação da História, tem sido uma das armas usadas para quebrar a memoria colectiva da nação e enfraquecer a nossa identidade e independência.
 
Em primeiro lugar é necessário entender porque é que Portugal se constituiu País independente.
 
Na sequência da reconquista cristã iniciada nas Astúrias (a Península Ibérica estava ocupada pelos Árabes e Berberes, desde a batalha de Guadalete, em 711, à excepção de uma pequena área com centro em Covadonga no Noroeste da Península), veio para o Reino de Leão, um fidalgo borgonhês, de nome Henrique, em 1094, a fim de participar naquela que era conhecida por Cruzada do Ocidente. De tal modo se houve que o Rei de Leão lhe concedeu a mão da sua filha Teresa e o senhorio das Terras de entre Douro e Minho. Desta união nasceu um primogénito, Afonso Henriques que decidiu quebrar os laços de suserania ao Rei de Leão. Afonso VII, começando por bater os partidários de sua mãe, no combate de S. Mamede, em 24 de Junho de 1128. Porque o fez? Podemos apontar várias razões:
 
Em primeiro lugar razões políticas, derivadas do desejo natural dos grandes senhores se libertarem da tutela de outros - este desejo foi potenciado pelo intento dos principais “barões” do Condado Portucalense se quererem furtar à influência que os barões galegos exerciam sobre D. Teresa. Ainda por razoes económicas, para permitir que a riqueza produzida ficasse no Condado e das boas perspectivas de comércio que o Porto proporcionava.
 
Também por razões religiosas já que a Diocese de Braga pretendia autonomizar-se de Compostela e Toledo (o Bispo de Braga D. João Peculiar foi um dos principais apoiantes e conselheiros de Afonso Henriques). Menos por razões de raça, a não ser alguma predominância na época, dos Suevos que tinham estabelecido um reino com capital em Braga, no século VI. Segundo os etnólogos, Portugal é constituído por uma mestiçagem de 13 grupos étnicos principais. A independência do Condado foi ainda facilitada por alguns acidentes geográficos; a luta contra o infiel; o apoio das ordens militares, nomeadamente os Templários, cujo 1º Grão-Mestre Gualdim Paes foi também um dos braços direitos do nosso primeiro rei; a existência de uma longa fronteira marítima e pelo Milagre de Ourique. Sim, pelo Milagre de Ourique. Independentemente de ter havido milagre ou não - essa é uma questão de Fé - Afonso Henriques não perdeu tempo a fazer a exploração política do fenómeno: além de ser aclamado rei pelos seus homens no fim da batalha (até então era apenas Duque), reuniu mais tarde testemunhas (as principais figuras do Condado), e na Igreja de Santa Cruz de Coimbra, fez publicar sob juramento a descrição do aparecimento de Cristo. Ou seja o reino de Portugal passou a existir por direito Divino, tinha uma missão no mundo e Afonso Henriques, ele próprio, abençoado por Deus. Foi isto que nos levou à Índia e nos tem servido de escora maior da nossa existência!
 
Até D. Dinis expulsa-se o Agareno; consolidam-se as fronteiras leste e sul e povoa-se o território. O Tratado de Alcanizes, de 1297, fixa a fronteira leste, resolvendo os problemas existentes relativo às Terras de Riba Coa e ao termo de Olivença. Marcam as fronteiras mais antigas de toda a Europa e provavelmente de todo o mundo, que permanecem até hoje, havendo a lamentar o conflito que existe - embora não se dê por ele oficialmente - relativo à ocupação militar espanhola de Olivença, ilegal desde 1815.
 
Agora reparem o que aconteceu no reinado desse notável monarca que foi D. Dinis: foi criada a Universidade - uma das mais antigas do mundo - por ordem régia todos os documentos passaram a ser escritos em português e não em latim; foi reestruturada a Marinha de Guerra em termos permanentes; idem para o Exército com a criação dos Besteiros de Conto e das milícias dos Concelhos, um verdadeiro embrião da nação em armas; reconstruíram-se as principais fortalezas e deu-se foral a vilas e cidades; nacionalizaram-se as Ordens Militares; fomentou-se o comércio e a agricultura para o reino se poder auto sustentar e deu-se início às comemorações do culto do Espírito Santo, de cariz templário, que veio a moldar significativamente todo o catolicismo português. Em boa verdade se pode dizer que com D. Dinis, Portugal estava feito e podia viver de vida própria. Ou seja a individualidade e independência estavam consolidadas. Mas consolidadas não quer dizer que não pudessem ser ameaçadas. Foi isso que aconteceu logo na crise de 1383-85, como de resto em todas as 18 vezes que sofremos invasões castelhanas e espanholas bem como das três terríveis invasões francesas. Isto claro sem contar com as centenas/milhares de ataques de corsários vários, tanto no mar como em terra, e das consequências da permanência de tropas estrangeiras em território nacional. E estamos apenas a confinarmo-nos ao continente europeu.
 
A crise resolveu-se em termos nacionais, sendo curioso realçar que a vontade de independência se sobrepôs a conceitos identitários da época. Estamos a falar dos laços de suserania feudais que levaram a maioria da nobreza e muitas povoações do reino a terçar armas contra o mestre de Avis.
 
Portugal salva-se devido ao esforço do povo e burguesia das principais cidades marítimas e do patriotismo, fé e saber militar desse grande capitão que foi o Condestável D. Nuno Alvares Pereira, também Beato Nuno de Santa Maria, estando neste momento a correr o processo que o conduzirá, espero, à categoria de Santo.
 
A História, caros leitores, ao contrário das teses marxistas em voga no nosso país desde os idos de 74/75, não é feita de movimentos de massas, lutas de classes ou resultante dos choques de interesses entre os factores de produção. A História faz-se com Homens que tenham Ideias, competências específicas e Liderança. E sejam servidos por vontade forte, escorada em preserverança (fé) e coragem.
 
Com o reino salvo, sobravam soldados, determinação e riqueza. D. João I torna as Ordens Militares - que eram os maiores depositários do saber e da riqueza e núcleo duro da força militar - reais, pondo à frente de cada uma, um dos seus filhos e a elite governante dá-se conta que, em termos estratégicos, necessitava de apoios externos para se salvaguardar da potência continental com a qual partilhava a totalidade da fronteira terrestre. Nasce a aliança com a potência marítima e vai-se a Ceuta, que o espírito de Cruzada potencia.
 
Daí em diante só parámos na China e no Japão. Esta saga, única na História Universal, foi prejudicada, apesar de tudo, por várias tentativas em que a coroa portuguesa se tentou apoderar da castelhana/espanhola, através de casamentos. E foi preciso afastar os espanhóis para Ocidente, daí o tratado de Toledo e o de Tordesilhas e o fenómeno Cristovam Colom. Fomos então, no dizer do cronista à procura de pimenta e cristãos. Só que a ordem dos termos, no início era ao contrário, pois primeiro fomos à procura de cristãos e só depois da pimenta. Era a união dos cristãos do Ocidente com os do Oriente sob a égide portuguesa. A esfera armilar, que ainda hoje consta da Bandeira Nacional, aí está como símbolo deste desígnio. Só que no reinado de D. Manuel I os termos da equação inverteram-se, isto é, passámos a procurar mais pimenta e menos cristãos. Ou seja o material ficou à frente do espiritual. Perdeu-se a cabeça e com ela a iniciativa e o controle estratégicos. O dispositivo estendeu-se para além do que era razoável e o declínio deu-se. Os portu­gueses perderam sobriedade ganharam alguma soberba e a abundância de riqueza e escravos, criou hábitos de ócio, ostentação e vaidade. E exacerbou a inveja, que é o nosso mais terrível defeito. E faz parte da identidade...
 
Por causa da conjuntura internacional, crise financeira, factores religiosos, e outros ainda mal estudados D. João III, intentou mudar os pressupostos estratégicos - abandono do que não era essencial no norte de África - racionalização dos pontos de apoio e do comércio com o Oriente, início da colonização do Brasil. Mas foi mais longe e tocou em aspectos importantes da identidade, alterando, quanto a nós, a matriz cultural e social da sociedade portuguesa. Pediu e veio a conseguir da Santa Sé, o estabelecimento em Portugal da Inquisição e do Tribunal do Santo Ofício, reformou a Universidade, aceitou a vinda para o reino da Ordem dos Jesuítas - que logo fundaram outra Universidade - encarregou um frade espanhol de reformar - enclausurando-as - as Ordens Militares.
 
O “Refluxo” português tinha começado e iria durar 400 anos.
 
Houve reacção a tudo isto no reinado, muito mal estudado, de D. Sebastião. Alcácer Quibir, a crise da sucessão e sobretudo o suborno das maiores casas nobres e do Alto Clero, levou à perda da independência, que não, note-se, à perda da individualidade. Infelizmente para nós, Álvaro Paes não era João das Regras e o Prior do Crato, apesar da sua abnegação, não se igualava a Nuno Álvares. Reparem, porém, que Filipe II não nos retirou nada, nem a moeda, coisa que deixámos de ter desde que estamos na União Europeia...
 
A União das Coroas de Portugal e de Espanha punham porém um problema insolúvel que derivava do nosso país não ter uma política externa própria. Ora isto fazia, por exemplo, que Filipe não pudesse, como Rei de Espanha, estar em guerra com um certo número de potências e, como Rei de Portugal, estar em paz com elas.
 
Ou seja, ganhámos todos os inimigos da Espanha sem usufruir de nenhum ganho ou protecção.
 
Os 60 anos que se seguiram foram difíceis e terríveis. A identidade portuguesa não foi beliscada, porém, e logo que as condições estiveram reunidas o desejo de sermos donos do nosso destino veio ao de cima naturalmente. Os espanhóis foram expulsos, mas só se convenceram ao fim de 28 anos e tinham tal influência na Cúria Romana, que o Papa ainda levou mais dois anos a convencer-se.
 
Os custos foram, mais uma vez, enormes. Um dos traços da nossa identidade é construirmos Portugal para onde vamos, independentemente da geografia, do clima, das gentes, da cultura, da riqueza, da religião, com que topamos. Este traço marcou toda a nossa expansão no mundo e a especificidade da colonização portuguesa.
 
A obra maior que fizemos, muito mal estudada, também, tanto cá como lá, foi esse colosso chamado Brasil. Fizemo-lo em 300 anos, Sem embargo, das vezes em que a nossa independência correu perigo, nomeadamente, na guerra da Sucessão de Espanha e dos Sete Anos, sem falar dos numerosos combates que fomos travando em quatro continentes.
 
Acabámos por perder o Brasil. Tal deveu-se às consequências das invasões francesas, que se estendem, aliás, até aos dias de hoje. O assunto mereceria por isso de uma reflexão alargada, porque não pôs em causa apenas a nossa individualidade como toldou de alguma forma a nossa identidade.
 
Numa das muitas vezes em que o Exército nacional foi abandonado pelo Poder Político, o país viu-se confrontado com uma grave crise internacional que ultrapassava o continente europeu. Como só é neutro quem pode e não quem quer, Portugal viu o seu território metropolitano virar campo de batalha durante quase quatro anos. Tendo ficado literalmente devastado, a economia destruída e mortos cerca de 200 000 pessoas, perto de 10% da população! Foi a maior calamidade da História de Portugal, da qual hoje em dia não guardamos memória e que espero seja condignamente comemorado quando perfizerem dois séculos da 1ª invasão (1807).
 
A saída da família real para o Brasil, onde ficou até 1821, permitiu salvaguardar o Poder Político.
 
Os franceses não se limitaram a devastar o país. Deixaram cá as ideias, da Revolução Francesa que eram defendidas e propaladas pelas lojas maçónicas, cuja origem em Portugal remontava ao reinado de D. João V, mas cujo desenvolvimento se deu apenas com a governação de Pombal e sofrido retrocesso com a “Viradeira”. Estas ideias deram origem à frustrada revolta militar de Gomes Freire de Andrade, em 1817, e depois à revolução liberal de 1820, no Porto, que teve sucesso.
 
Esta revolução, que obrigou o Rei a regressar a Lisboa e deu origem à primeira Constituição Portuguesa, de 1822, veio a dividir a família real, o Exército, o Clero e o povo. Isto é cindiu a família portuguesa.
 
O Brasil aproveita-se da confusão, da rebeldia do primogénito, o Infante D. Pedro, da influência das lojas maçónicas favoráveis, desde a Revolução Americana. a todas as independências no hemisfério e ainda favorecidos pelos interesses ingleses que se querem apoderar do rico comércio brasileiro, para dar o grito do Ipiranga.
 
A cisão política agrava-se e leva à mais cruenta guerra civil, entre 1832 e 34, que em Portugal já houve.
 
Contra todas as expectativas os liberais ganharam e tal tem a ver sobretudo com liderança militar. A partir daqui dá-se uma mudança extensa na sociedade portuguesa. A velha nobreza morre ou emigra. Cria-se uma nova, reorganiza-se toda a administração pública e o ensino, os pilares da antiga ordem são desmontados; as ordens religiosas, que possuíam cerca de 1/3 do país, são extintas.
 
A agitação política não pára e desemboca noutra guerra civil, a Patuleia, em 1847. A economia desfeita desde as invasões francesas e a independência do Brasil, não recupera, o pouco que funciona está em mãos inglesas. As finanças estão em bancarrota quase permanente.
 
Em 1851, na sequência de mais um golpe do Marechal Saldanha, as forças políticas chegam a um entendimento: criar um partido mais à direita e outro mais à esquerda, que se alternariam no Poder, numa tentativa de imitação do parlamentarismo inglês. A acalmia social resultante; a conjuntura internacional favorável e o aparecimento de um estadista - Fontes Pereira de Melo - permitem algum progresso e paz social até 1890, quando por via do ultimatum, nova crise financeira e o aparecimento de ideias socialistas, anarquistas e sobretudo do Partido Republicano, se começa a pôr em causa a própria Monarquia. Esta agoniza durante 20 anos e cai em 18 horas, em 5 de Outubro de 1910.
 
Com a perda do Brasil surgiu, em 1836, pela mão de Sá da Bandeira, um novo desígnio estratégico, que era o de criar novos Brasis, em África.
 
Mas todo o quadro já descrito impediu que algo de substancial se fizesse. Portugal acorda para África quando a cobiça e expansão das principais potências estrangeiras sobre aquele continente se começam a fazer sentir e o nosso país apareceu como o principal óbice àquela expansão verdadeiramente imperial. O ponto fulcral de toda esta expansão veio a ser a Conferência de Berlim, de 1884/5.
 
Apesar das muitas vulnerabilidades que tínhamos, foi feito um esforço económico, financeiro, diplomático e militar, notável, na salvaguarda e até expansão do património português em África e até no Oriente. Muito se conseguiu salvar, e o esforço de pacificação estendeu-se até aos anos 30 do século XX.
 
Em 1910 a República ganha, sendo a maioria do país, monárquica - na sequência de contradições que acompanharam a nossa História até hoje. Mais uma vez a Maçonaria tem um papel fundamental e a organização da Carbonária, que já tinha liquidado D. Carlos e o herdeiro do trono, tem uma acção decisiva. A família real é posta a recato em Inglaterra, potência que tinha mais uma vez, dado o “agrement” à revolta e muita gente emigra. Os republicanos não têm, porém, experiência de governo, organizam o novo sistema político em bases pouco eficazes e dividem-se. A instabilidade social e a crise política e financeira instalam-se durante 16 longos anos. As quarteladas sucedem-se. Chegou a haver um duelo de artilharia dentro de Lisboa de que resultaram mais de 500 mortos. Em média os governos da I República duraram três meses...
 
Pelo meio meteram-nos e metemo-nos na I Grande Guerra onde combatemos em quatro frentes: Angola, Moçambique, a Flandres e o Atlântico. O esforço foi algo homérico e os custos muito elevados.
 
Com o país mais uma vez destroçado - e lembro que esta situação era recorrente desde 1807, passava dos cem anos! - as Forças Armadas - elas próprias no zero naval como a classificou um almirante e quase no zero terrestre e aéreo como as classificamos nós, que andavam desde 1817 a ter intervenções políticas, resolveram actuar de uma forma mais concertada e pôr ordem no descalabro. Estávamos no mês de Maio de 1926.
 
Mas os chefes militares sabiam o que não queriam, mas não se entenderam no que fazer a seguir. Até que um já conhecido professor de Coimbra foi chamado a pôr ordem nas finanças. E com tal sucesso que passou a imprescindível. Era íntegro e impoluto e soube concitar apoios. Possuía uma Ideia de Portugal e desenvolveu uma doutrina que a sustentava.
 
Foi a Presidente do Conselho de Ministros para a implementar. A reorganização do Estado, a credibilização do país, a consolidação financeira e recuperação económica, tanto da Metrópole como do Ultramar, a ordem nas ruas, a segurança nas fronteiras, a recuperação do Exército e da Armada, mais tarde o lançamento da industrialização do país, a partir do I Plano de Fomento em 1951 o virtuosismo diplomático, que permitiu ajudar a derrotar o Comunismo em Espanha; a manter a neutralidade na 2ª Guerra Mundial; a ser membro fundador da NATO e da EFTA; aguentar durante 10 anos os ataques da União Indiana sobre Goa, Damão e Diu e todos aqueles que se seguiram via ONU e outros organismos internacionais contra a presença política de Portugal fora da Europa, granjearam-lhe o respeito nacional e internacional. Mais impor­tante ainda, tentou-se o reaportuguesamento de Portugal nas referências mais telúricas da sua identidade e que remontam ao início da nacionalidade.
 
Sem embargo, no início dos anos 60, organizou-se a nível mundial, a mais poderosa ofensiva que jamais se montara contra a maneira portuguesa de estar no mundo. Portugal foi atacado militarmente, primeiro em Angola, depois na Índia, mais tarde na Guiné e Moçambique. Timor e Macau estiveram sob permanente ameaça e não se podia descurar a vigilância em qualquer outra parte do território.
 
A ofensiva política e diplomática - com reflexos económicos e financeiros - era global contra o nosso país. Poucas vezes se encontram momentos na nossa História em que Portugal estivesse no seu melhor como nos 13 anos que durou a guerra e a tropa portuguesa não conduzia uma campanha tão brilhantemente desde os tempos de Afonso de Albuquerque. E isto sem almirantes ou generais importados. Porém, o sucessor de Salazar no governo deixou-se enredar em contradições; tergiversou no rumo a seguir e não conseguiu manter a acção psicológica interna.
 
Acções subversivas contra a ordem existente desenvolveram-se nos meios universitários, artísticos e católicos progressistas. Sem embargo, a questão primordial foi vivida no seio das FAs. O prolongamento da guerra fez diminuir o número de candidatos às Academias Militares enquanto que a necessidade de quadros aumentava. No sentido de minorar este problema o governo, através do MDN, legislou no sentido de permitir aos oficiais milicianos passarem ao quadro depois de frequentarem um curso condensado na Academia Militar mantendo a sua antiguidade na promoção. Esta questão evoluiu pessimamente e disparou o descontentamento nas fileiras levando uma minoria de oficiais a evoluírem para o derrube do próprio regime. Mais uma vez os militares sabiam o que não queriam mas não se puseram de acordo sobre o dia seguinte. O resultado foi perderem no próprio dia o controle dos acontecimentos. No espaço de um ano o Portugal do Minho a Timor ficou reduzido ao de Bragança ao Corvo, com muita água pelo meio. Perdeu cerca de 90% do território e 60% da população.
 
O corte com o passado foi traumático - a economia e as finanças levaram 10 anos a estabilizar - socialmente houve mudanças radicais de referências e cortes transversais na maneira de ser e estar dos cidadãos em termos individuais, familiares, regionais e nacionais. Fez-se 180º relativamente a conceitos estratégicos que tinham seis séculos e não existe consolidação sobre os que se pretendem seguir.
 
Voltámos às fronteiras de 1415 com excepção dos Açores e Madeira. O poder nacional decaiu catastroficamente. Lá fora, o mundo muda mais depressa do que a maneira que conseguimos acompanhar. As incertezas são grandes e as ameaças, por mais que espíritos cândidos as enjeitem, continuam a existir. É neste ambiente que temos hoje que equacionar a identidade e individualidade nacionais.
 
“Mas sirvo-o com pureza de minha obrigação,
de que resulta não me moverem mercês prometidas;
que foi o laço em que cahio Portugal;
porque fora do que devo nenhuma couza
me poderá mover a troco de vender a honra,
a lealdade, que não tem preço, nem há
nenhum que eu tanto estime;
lição que a muitos fidalgos esqueceo”.
Cipriano de Figueiredo,
governador das ilhas dos Açores,
em carta a Filipe II de Espanha
(13 de Marco de 1582).
 

Identidade versus Individualidade

Já vimos que os conceitos de identidade e individualidade no que diz respeito aos povos, andam juntos, interligam-se e potenciam-se. De pouco serve manter a identidade - embora haja casos de sobrevivência ao longo dos tempos, o mais notável dos quais é o dos judeus - que subsistem. Mas é preciso não esquecer que inúmeros povos feneceram ou foram assimilados por outros, além do que, por exemplo, os judeus não descansaram enquanto não conseguirem um território para neles implantarem um Estado. Que dizer dos Curdos ou dos Arménios que mantêm a sua identidade, mas não são livres de decidir o seu destino? Vivem aprisionados pela sua própria identidade. Por outro lado de pouco serve haver individualização, isto é, soberania e independência, em povos a quem falta a identidade. São párias deles próprios. Estão neste caso a maioria dos países de África, cuja referência identitária - quando não foi destruída - está apenas ao nível da tribo.
 
O que marca a geopolítica dos países é a geografia e o carácter da população, por serem os dois factores mais permanentes. De facto a geografia não muda e o carácter dos povos muda muito devagar, quando muda.
 
Só se consegue governar as pessoas que se conhecem, do mesmo modo que os oficiais e sargentos só conseguirão comandar os seus homens se os conhecerem.
 
Conhecer as pessoas que connosco partilham a cidadania faz parte do cartão de identidade de cada nação. Por isso não resisto a dar-vos um pequeno apontamento sobre o modo de ser português.
 
“Sendo nos Portugueses convém
saber o que é que somos”.
Fernando Pessoa
 
Que se poderá então dizer dos portugueses? Comecemos por uma frase do Professor Jorge Dias em “Ensaios Etnológicos”: “é um povo paradoxal e difícil de governar, os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento”.
 
O povo português é profundamente individualista, tem grande dificuldade em trabalhar em grupo e em se entender com os outros. É muito cioso das suas ideias, o que por vezes revela uma certa intolerância. É vaidoso, no sentido de gostar de ostentação, de riqueza e do luxo, e susceptível quanto aos seus preconceitos, formulas e ilusões. Possui temperamento amoroso e é humano e bondoso. Usa mais o coração que a cabeça.
 
É desorganizado e imprevidente, mas possui um extraordinário poder de improvisação. A sua capacidade de adaptação a outras gentes, culturas, climas, línguas e profissões é tremenda, com a particularidade de não perder o seu carácter. Tudo isso, ligado ao sentido humanista, caracteriza e explica a colonização portuguesa. Possui espírito aventureiro e messiânico, que é bem demonstrado pela emigração. O português é independente e gosta da sua liberdade. Tem dificuldade em aceitar regras e autoridade. Só trabalha bem quando é bem dirigido. Leva as coisas pouco a sério. Não é persistente, o que de certo modo está ligado ao seu espírito aventureiro e ao ser sonhador. Apesar de possuir grande dose de solidariedade não deixa de ser invejoso em relação ao que outros alcançam. O português é idealista, emotivo e imagi­nativo, não é dado a reflexão, não quer discutir o mundo nem a vida, contenta-se em viver exteriormente. O português possui pouca alegria e exuberância, mas um forte sentido do ridículo, tendo em conta as opiniões alheias. O seu sentido de humor traduz-se mais em forte sentido de crítica, troça e ironia. O português não é fraco nem cobarde. É, de certo modo, derrotista ou fatalista, revela ainda um certo pendor para a imitação - tendendo até a pôr as coisas nacionais em segundo plano em relação ao estrangeiro - o que se traduz em falta de iniciativa e actividade criadora. Possui grande afectividade, não gosta de fins trágicos, não devendo ser por acaso que em Portugal não há pena de morte e nas touradas os touros vêm embolados e não são mortos. A sua religiosidade foi moldada ao longo dos tempos pelas suas características. Por fim, há a saudade, esse estado de espírito muito próprio do português, que tantas coisas podem querer significar, e que a tantas coisas pode conduzir.
 
Para termo gostaria de recordar um trecho de Eça de Queirós em “A Ilustre Casa de Ramires”:
“... A fraqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade que o senhor padre Soeiro... os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo e juntamente muita persistência, muito aferro, quando se fila a sua ideia... a generosidade, o desleixo. A constante trapalhada nos negócios e senti­mentos de muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?...
A imaginação que o leva sempre a exagerar até a mentira e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... a Esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de OURIQUE que sanará todas as dificuldades, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que da na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia apesar de tão palrador, tao sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide e aparece um herói, que tudo arrasa...
Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada a sua velha torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África. Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?
- Portugal”
 
 

Em conclusão

 
“Mouros em terra, moradores às armas!”
Brado que existiu em Portugal
desde o tempo de D. Afonso II
 
Portugal é desde o início do século XII (1128), uma entidade autónoma no concerto das nações, por vontade própria e, a crer em alguns autores, por inspiração divina. Desde o século XIV constituiu-se como estado-nação, talvez o mais antigo e perfeito que há no mundo, com fronteiras definidas e estáveis sem fracturas étnicas ou rácicas; uma língua; uma religião; uma cultura e projectos comuns de futuro.
 
Com esta base sólida, ao Estado é fácil ser apenas a emanação da nação politicamente organizada.
 
Uma longa História partilhada nas suas glórias e fracassos nas suas realizações e incapacidades, na solidariedade, nas desgraças e ameaças na vivência e evolução dos costumes nas obras que produziu, no próprio aspecto exterior e maneira de ser que permitem identificar um português à distância, foi criando elos de empenhamento comum, segredos de família, coesão nas hostes.
 
Portugal tem desde há muito, um caminho próprio, uma pintura própria, uma literatura própria, música própria, escultura própria; teatro e cinema próprio; pensamento próprio; ciência própria e até paisagem e clima próprio. Somos nós e não outros, sem embargo de termos espalhado humanidade pelos quatro cantos do mundo. Talvez seja esse o maior legado que deixamos em herança.
 
Tudo isto interage, resultando numa maneira portuguesa de estar no mundo, e reforçando o espírito de independência. Tudo isto deve ser projectado na política externa portuguesa que não se deve reduzir a um mero exercício de relações internacionais, antes a projecção dos nossos objectivos nacionais permanentes históricos e a defesa dos interesses conjunturais.
 
Por isso, caros concidadãos, mantenhamo-nos portugueses. É até um dever que temos para com as 50 gerações que nos precederam. Não sabemos o futuro que nos está reservado, nem podemos, sobre isso, fazer experiências em laboratório. O único laboratório do futuro é o conhecimento da História.
 
O mundo está sempre em mudança, mas há coisas que permanecem. Os princípios são de sempre, o modo como se aplicam é que varia com a situação. E não devemos sacrificar mais valias consolidadas por aventuras de futuros incertos. Muito menos devemos cair em equívocos.
O laboratório da História aconselha prudência.
 
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*      Sócio Efectivo da Revista Militar.
 
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2007-05-19
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Tenente-coronel PilAv

João José Brandão Ferreira

Sócio Efetivo da Revista Militar.

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by CMG Armando Dias Correia