
A recente discussão pública sobre o controlo da imigração e sobre as condições em que se deve processar, designadamente a exigência formulada do respeito pela nossa cultura e maneira de ser, levantou a questão de saber se existe uma cultura portuguesa e em que consiste*.
O problema já se pusera anteriormente noutras latitudes, a propósito da atitude perante os imigrantes, no debate entre integração e exclusão. Devem os imigrantes absorver as culturas nacionais dos países de acolhimento, ou devem estes respeitar, e até que ponto, as culturas autóctones dos imigrantes? É um equilíbrio que importa conseguir, sendo preciso para tanto saber o que é essa cultura nacional.
Fala-se por vezes em suicídio dos europeus, a propósito do inverno demográfico, que levaria a uma invasão das sociedades europeias por imigrantes de outras civilizações e culturas, para substituir os europeus que não nascem, ou são impedidos de nascer, que faria perigar as culturas dos europeus, o seu modo de vida, e os seus valores. Não falta mesmo quem fale de invasão sub-reptícia, predeterminada por passadores sem escrúpulos, a soldo de desígnios políticos inconfessados, que não hesitam em explorar os legítimos desejos de melhores condições de vida por parte de populações vítimas de guerras, ditaduras, ou subdesenvolvimento crónico, e que actuam a céu aberto, perante a passividade, quando não com a conivência, de forças políticas europeias. A imigração de fora da Europa estaria a ameaçar as culturas nacionais europeias, e as respectivas identidades culturais nacionais.
A questão das identidades
A questão das identidades sociais, e com ela também das identidades políticas e culturais, foi posta na ordem do dia pela globalização.
Não há comunidade política sem substrato cultural. A cultura unifica e identifica os membros de uma comunidade política, num denominador comum de valores, comportamentos, tradições e costumes. Por isso mesmo, a desejada unificação política europeia, acordada em Maastrich, obriga à identificação do substrato cultural dos europeus, ou seja, à procura e consolidação da identidade cultural europeia. Identidade essa, que tem uma dimensão histórica, mas que está simultaneamente em permanente construção.
São muitos os que pensam que as identidades nacionais estão destinadas à erosão pelo desenvolvimento das identidades transnacionais e globais. Há quem pense que o cidadão do mundo do futuro, planetarizado, não mais se sentirá pertencente a qualquer nação. Autores há, inclusivamente, como Ronald Inglehart1, que entendem que as identidades políticas se distribuem num contínuo, evoluindo com o desenvolvimento, desde identidades paroquiais até identidades globais, como se as identidades locais fossem sintoma de subdesenvolvimento e as identidades globais fossem resultantes do desenvolvimento.
A União Europeia, através do seu Eurobarómetro, procede regularmente à medição do sentido de pertença dos europeus, procurando perceber em que medida o processo de integração europeia vai fazendo emergir uma identidade europeia nas opiniões públicas da União, e em que medida ela vai superando, em termos de prioridade, as identidades nacionais. E há quem não hesite em promover identidades regionais, como forma de, simultaneamente, com a integração transnacional, ajudar a ultrapassar as identificações nacionais.
Quando há já cerca de 30 anos realizei a pedido do Instituto de Defesa Nacional um estudo sobre “patriotismo e nacionalismo na sociedade portuguesa”, cujos resultados, publicados na revista Nação e Defesa, foram comentados na altura por Eduardo Lourenço e António Quadros, a identidade prioritária que prevalecia em Portugal, era a identidade regional, ao contrário dos demais países europeus, onde emergia a identidade nacional como principal referenciação.
Outros, porém, – entre os quais me incluo –, contestam a linearidade progressiva, proposta por Ronald Inglehart, defendendo, pelo contrário, que as diversas identidades são compatíveis e concêntricas, reforçando-se mutuamente, e sublinham a indispensabilidade das identidades básicas, a começar pela familiar, para a consolidação de identidades mais alargadas.
Aliás, assistimos hoje à emergência de um neo-regionalismo que, longe de constituir um sintoma de bairrismo atávico, e de ser por isso um regionalismo arcaico, resultante do subdesenvolvimento, é consequência da própria globalização, coexistindo com as maiores taxas de desenvolvimento. Esse processo cunhou-o Robertson com o termo “glocalização”2. Como dizia Ulrich Beck “a globalização é uma localização global”3. Alguns veem, por isso, a identidade nacional como destinada a dar lugar, em termos de importância, às identidades sub e supra-nacionais, como o sugerem Daniel Bell4 e Jurgen Habermas5. Outros entendem, pelo contrário, que as identidades inferiores reforçam as superiores.
De igual modo, as identidades culturais estão hoje expostas ao chamado multiculturalismo, entendido como política de promoção da diversidade étnica e cultural. Como lucidamente o denunciou Giovanni Sartori6 o multiculturalismo é o contrário do pluralismo, porque o pluralismo aponta para a assimilação, enquanto o multiculturalismo “faz prevalecer a separação sobre a integração”, levando à guetização cultural das sociedades. As identidades nacionais, como entidades culturais, estariam hoje a ser corroídas, pela aldeia global dos media de McLuhan7 e, também, pelo neo-tribalismo, de que fala Zygmund Bauman8.
No entanto, a identidade hoje dominante, nos países europeus, continua a ser a identidade nacional. O sistema de organização de Estados, a nível mundial, continua a ser o sistema de estados-nações. O princípio das nacionalidades, esboçado em Westfália, consagrado no Congresso de Viena e generalizado após as duas grandes guerras mundiais, continua a revelar-se resistente à mundialização. A própria oposição, em muitos países do primeiro mundo, à imigração descontrolada, quando não instigada, é reveladora desse instinto preservador das identidades nacionais.
A questão de saber quem somos e para onde vamos – a identidade e o destino – admitindo mesmo a existência de destinos históricos das nações, à semelhança do que faziam os providencialistas teocráticos franceses do século XIX, como Joseph de Maistre9, emergiu com a modernidade, e com a atribuição da soberania às nações no dealbar do liberalismo.
Por isso, a procura das razões e das raízes da nossa identidade ocupou em toda a parte a preocupação do romantismo político liberal, indagando junto da história, das ruínas do nosso património abandonado, nas tradições etnológicas e nos cancioneiros populares, a alma dos povos. E pode e deve constituir, hoje mais do que ontem, motivo constante de investigação e de indagação, perante os desafios da globalização. Hoje, mais do que nunca, impõe-se o enquadramento mundial em identidades nacionais.
A identidade nacional é, pois, o conjunto dos elementos culturais que reconhecemos como comuns, e suficientes para nos manterem unidos, elementos que nos definem, mas que também nos diferenciam. Não há identidade sem alteridade. É uma identidade que se reflete na consciência dos que integram a Nação, sendo também destino colectivo. O que nos une tem também a ver com os interesses que nos agregam, que nos distinguem, e que justificam que permaneçamos unidos, para além das diferenças internas. No entanto, o que favorece o sentido de pertença e solidariedade comum, não é apenas o passado e as origens, mas também o futuro, o que projectamos como comunidade política.
Saber quem somos, donde vimos e para onde vamos, é uma curiosidade intrínseca ao homem, uma aspiração tão antiga como a própria humanidade. A identidade, a origem e o destino existem nos povos como nas pessoas. No entanto a questão da identidade nacional é recente. Outrora bastava saber de quem éramos súbditos. Saber que país e que povo somos, foi curiosidade que nasceu com a cidadania.
Muitos foram os intelectuais que se afadigaram nessa tarefa, nessa descoberta de nós, como comunidade, e da terra que nos habituámos a defender como nossa, a que chamamos Pátria, sobretudo com o dealbar da modernidade cívica.
A partir da história e da nossa formação como país independente, soberano e livre, como o fizeram Herculano, com a sua História de Portugal; Oliveira Martins, com os seus muitos estudos de história pátria; Alberto Sampaio, com o desbravar das vilas e póvoas marítimas do Norte de Portugal; ou, mais recentemente, José Matoso com a sua incursão sobre as origens de Portugal, a que chamou “identificação de um país”; ou ainda Martim de Albuquerque com os seus trabalhos sobre a consciência nacional portuguesa.
A partir da antropologia e da etnologia, como Teófilo Braga, que tentou compreender o Povo e a Terra portugueses, ou Leite de Vasconcelos, que inventariou a Etnologia Lusitana, sem esquecer Rocha Peixoto, ou ainda Jorge Dias, que tentou a especificação da nossa maneira de ser como cultura.
A partir da literatura e dos cancioneiros populares, como fizeram Almeida Garret e, mais recentemente, António José Saraiva.
A partir da “filosofia da saudade”, como ensaiaram Pascoais, Leonardo Coimbra, Carolina Michaelis de Vasconcelos, e mais recentemente Eduardo Lourenço e António Quadros.
A partir da Arte, como o tentaram Reinaldo dos Santos, Joaquim de Vasconcelos, Virgílio Correia, Nogueira Gonçalves, Mário Chicó, Artur Nobre de Gusmão, para a influência da arquitectura borgonhesa em Portugal, Santos Simões, a partir da azulejaria, da cerâmica, da ourivesaria.
A partir da Geografia, como o fez magistralmente Orlando Ribeiro, com o seu fundamental Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, ou a partir da geoestratégica, como mais recentemente o ensaiaram Franco Nogueira, Adriano Moreira ou Jorge Borges de Macedo.
A partir do Direito, onde o nome de Merêa sobressai, de par com seus discípulos, herdeiros que foram de Gama Barros, que historiou a administração pública, ou mesmo de Teófilo Braga, que indagou sobre a origem dos forais de Portugal.
A partir da Sociologia, onde pontuam Léon Poinsart e Paul Descamps, continuadores de Le Play, trazidos a Portugal, por el Rei D. Manuel I e por Salazar, e que deixaram obra de referência sobre a vida social dos portugueses.
Não faltam tentativas de compreender Portugal e os portugueses, mas nenhuma outra conseguiu dizer melhor de nós, em tempos de crise de nacionalidade, que Os Lusíadas, de Luis de Camões, não por acaso considerada como a obra que melhor identifica os portugueses.
Apesar da diversidade de que nos compomos como território e como povo, é possível falar de identidade cultural portuguesa, identificar traços unitários que nos aproximam e nos agregam do ponto de vista cultural. Somos, como é sabido, dos casos mais acabados de identificação de um Estado com uma nação, sem diversidade linguística, étnica ou religiosa de vulto, num dos mais antigos Estados do mundo e da Europa, com as mais antigas fronteiras inalteráveis, mau grado o problema de Olivença. Esta estabilidade de fronteiras é correlativa da expansão, como assinala lucidamente Luis Filipe Tomás, na maravilhosa síntese que publicou há poucos anos sobre a Expansão Portuguesa: “é duvidosos que, sem a expansão ultramarina… Portugal tivesse podido manter-se neutral nos subsequentes conflitos peninsulares e assim conservar intactas as suas fronteiras”10
Geograficamente, como o demonstrou de forma magistral Orlando Ribeiro11, somos atravessados por uma divisão decisiva entre o clima atlântico e mediterrânico, que separa o norte pluvioso, de regadio, de produção agrícola intensiva e de grande divisão da propriedade rústica, mais comunitário, do Sul de baixa pluviosidade, de sequeiro, de agricultura extensiva e de propriedade latifundiária, mais societário. À civilização do granito a norte, correspondia a civilização do barro a sul, que ainda hoje explica diferentes tipos de religiosidade e de comportamento político.
Esse dualismo fundamental, motivou a curiosidade de José Matoso12, no que à formação histórica do reino diz respeito, que procurou no “fio condutor da geografia humana, apoiada e confirmada por dados da etnografia, da antropologia e da linguística”, tendo verificado a vigência de dois sistemas diferentes de organização social e económica, também coincidentes geográfica e culturalmente: o senhorial, iniciado no norte atlântico, e o concelhio, no norte interior, que haveriam de se expandir, através de “contactos de aculturação entre o Norte cristão, rural, senhorial e “gótico” e o sul islamizado, urbano, concelhio e “romano”. Examinou seguidamente as características da autoridade que englobou esses dois grandes sistemas, sobrepondo-se aos poderes locais senhoriais e concelhios. A comunidade nacional formou-se a partir das organizações locais, graças ao poder monárquico, aos processos de racionalização administrativa e de uniformização judicial, conclui Matoso, aproximando-se da concepção de Paulo Merêa sobre a base não feudal, mas concelhia da monarquia portuguesa, glosada por António Sardinha.
Para além da diversidade, é possível ensaiar a compreensão ideal-típica de culturas nacionais e de identidades culturais nacionais, como fez, de modo sublime, entre nós, Jorge Dias, numa perspectiva antropológica, ao enumerar os traços fundamentais da cultura portuguesa
“A Nação, conclui Matoso, resiste ao tempo e às vicissitudes que tem de vencer. Por isso não é fácil fazer-lhe perder a sua própria identidade”. As identidades nacionais não são, efectivamente, facilmente apagáveis, como o demonstram as tentativas, mal sucedidas, de integração transnacional à força.
Quando os estrangeiros se referem a nós, e foram tantos os que o fizeram, com maior ou menor perspicácia de observação, é usual apontar-nos como um país latino. Pertencemos pela língua que falamos, e pela cultura que dela dimana, ao conjunto de povos profundamente marcados pela ocupação romana, que prevalece claramente sobre outras ocupações da península, que também existiram e deixaram marcas. Com a língua, ficou a cultura e o direito, a par das divisões administrativas, que moldaram o nosso futuro colectivo.
Claro que são perceptíveis traços de outras influências culturais, decorrentes de outras ocupações do território português, através dos séculos, mas nenhuma é tão marcante como a latina e romana.
Isso mesmo o demonstrou a escola histórico-jurídica de Coimbra, iniciada por Paulo Merêa, que se encarregou de libertar a história jurídica do dogma do germanismo, repondo a influência do romanismo.
Os romanos introduziram práticas agrícolas e de regadio, que se prolongaram no tempo. Os castros e as vilas rústicas originaram povoações, que se transformaram em cidades, ainda hoje existentes, entre as quais se abriram vias calcetadas com marcos miliários. Criaram indústrias, intensificaram o trânsito e a circulação da moeda. Os romanos deixaram marcas da sua ocupação, monumentos dispersos, obras de arte e testemunhos religiosos.
Essa é, pois, a primeira dimensão da nossa identidade cultural: somos uma nação latina, nascida da romanização. Somos distintos dos países anglo-saxónicos, não apenas na origem linguística, mas também no direito, na geografia, no clima, no modo de ser e de estar.
Em segundo lugar, pertencemos pela génese histórica, enquanto reino independente, à reconquista cristã, que marcou indelevelmente a nossa configuração colectiva. Devemos ao movimento ibérico da recuperação do território aos árabes, e às cruzadas, o impulso decisivo para as conquistas do território que configurou, ao longo dos primeiros séculos, o que hoje é Portugal. Foi como povo cristão que nos constituímos, que nos demos a conhecer ao mundo, que nos demarcámos perante outros, e que nos quisemos projectar além-fronteiras. Como recorda Camões, nos Lusíadas, éramos vistos como “os de Cristo”, cuja cruz distinguia as velas enfunadas das caravelas (Lusíadas I, 63 e VII,5)
Como um dia disse Saramago, num colóquio para o qual o convidei, todos somos católicos em Portugal, do ponto de vista cultural.
E devemos à colonização cisterciense o sermos terra de Santa Maria. O nosso catolicismo é profundamente mariano, como o demonstra o facto de o nosso território estar ponteado de inúmeras ermidas colocadas no topo dos montes, votivas às mais variadas invocações de Nossa senhora, e à existência de um sem número de santuário marianos espalhados pela terra portuguesa, e de que Fátima é hoje a expressão mais conhecida nacional e internacionalmente.
O nosso catolicismo foi também um catolicismo missionário, que explicou e acompanhou a expansão marítima e levou à constituição do Padroado Português, e às prerrogativas de nomeação régia dos ordinários para todas as dioceses desde o norte de África até ao Oriente. Nos conflitos com a Propaganda Fide, o Padroado Português acabaria por ser preferido pelos que cristianizámos, como aconteceu com a Questão dos Ritos na China Imperial.
Para além de mariano, e missionário, o nosso catolicismo é um catolicismo romano, fiel ao Papa de Roma – Herculano diria ultramontano –, de quem nos mantivemos seguidores no cisma de Avignon, e servidores, merecendo por isso o título de nação Fidelíssima e, também, a prerrogativa de veto na eleição papal, só eliminada nos começos do século XX, depois do veto austro-húngaro na eleição do sucessor de Leão XIII, em 1903.
O catolicismo português seria ainda um catolicismo de contra-reforma, de expressão tridentina, que encontrou na Inquisição um instrumento de controlo da ortodoxia, que nos configurou como catolicismo romano e universal.
É hoje, seguramente, um catolicismo que é muito mais referência cultural indelével do que pauta de comportamento moral, ou prática religiosa generalizada. Os portugueses continuam a confessar-se católicos numa elevadíssima percentagem, superior a 80%, mas distanciando-se dos ensinamentos da Igreja na vida pessoal, nos comportamentos morais, ou na frequência dos sacramentos.
Não se pode compreender a nossa história sem o catolicismo, sem a sua influência na formação da nacionalidade, na expansão marítima, no combate à heterodoxia, e no próprio despotismo iluminado. Toda a nossa cultura é ininteligível sem o cristianismo, desde a arquitectura à escultura, passando pela pintura e pela música. Toda a ambiência cultural de séculos está atravessada pela presença do cristianismo.
Neste sentido, somos distintos dos países da reforma, protestantes, que valorizaram a Bíblia e contribuíram desse modo para a redução do analfabetismo, enquanto nós a dávamos a conhecer através da imagem, na estatuária, na pintura e nos vitrais.
Mas, para além desta dupla definição que é dada de nós como latinos e católicos, é inegável sermos também identificados como um país atlântico, configurado e marcado, histórica e geograficamente, pelo mar.
O mar é dimensão constitutiva da nossa identidade. Não um mar qualquer, mas o mar aberto que é o Atlântico, “O mar sem fim” que Fernando Pessoa disse ser português, ou seja, o mar sem horizonte fechado, fonte inesgotável de descoberta, porque ignorado, mas também fonte interminável de recursos por desbravar.
A descoberta do mar pelos portugueses foi posterior à formação do país. Os portugueses viraram-se decisivamente para o mar, apenas depois da consolidação da independência de Castela, nos começos da dinastia de Aviz.
O nosso mar não é o mar fechado do mediterrâneo, mas o oceano aberto, de horizonte infindável, elo de ligação a outros continentes.
Estamos indissocialvelmente ligados ao mar pela nossa história. O que de mais distintivo fizemos, ao longo da história está ligado ao mar. Sem o mar não seríamos o que hoje somos, não nos teríamos afirmado na cena internacional como o fizemos.
Para além de marcar a nossa história, o mar garantiu a nossa independência perante ameaças continentais de anexação ou desmembramento, moldou a nossa cultura.
Uma vez consolidada a independência do reino em terra, foi no mar que procurámos a consolidação dela. País pequeno que éramos, não tínhamos maneira de ser grandes sem olhar para o mar. Tínhamos que afastar para longe as ameaças, que resultavam sobretudo daqueles a quem havíamos reconquistado o território. Mais: precisávamos de ir à fonte do seu poderio, e por isso demandámos a Índia, tentando tornear as rotas que dominavam. Daí a dimensão religiosa, e simultaneamente militar e económica da expansão marítima. O que procurámos através dele foi o alargamento do espaço, mas também da cultura e da riqueza.
Disse-o Jaime Cortesão, na sua Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses 13. A par da “teoria do segredo”, da primazia das razões económicas na causalidade da expansão, estão as determinantes geofísicas do país, que fazem dele parte da Cristandade acossada pelos turcos a Oriente, e leva os portugueses a combater o islamismo nesse Oriente, fonte da sua riqueza comercial.
“Os descobrimentos – segundo Magalhães Godinho – são as cruzadas da era de quatrocentos”, e “resultaram do complexo de causas económico-geográficas e científico-religiosas”14.
Se não tivéssemos partido talvez nos tivéssemos perdido. Nesse sentido, foi o mar que permitiu que nos afirmássemos como éramos: um povo cristão, nascido da reconquista, apostado na preservação e dilatação da fé; um povo carecido de riqueza em que o solo da pátria não era fértil.
Foi sem dúvida a expansão que mais contribuiu para a identificação marítima dos portugueses. O contacto com outros povos e culturas ajudou a perceber muito generalizadamente o que nos distinguia dos outros. Foi através do mar que nos descobrimos distintos dos outros15.
O mar fez de nós mercadores, muito mais que conquistadores. Não nos fixávamos. Deixávamos feitorias, assinalávamos a passagem com padrões. O que procurávamos e fizemos durante séculos foi o desenvolvimento das trocas comerciais marítimas mundiais.
Ao partirmos, não nos levámos apenas a nós, mas a todo um continente a que pertencíamos. Fomos por isso o rosto da Europa no mundo. Levámos a todos os cantos da terra não apenas a nossa singularidade, mas a universalidade europeia, que enriquecemos com a universalidade de outras paragens.
É o apelo do mar que projecta Portugal no mundo, rosto latino, cristão e atlântico de uma Europa que descobre outros continentes e rumos para lá chegar.
Graças ao mar, e à sua posição atlântica, Portugal tornou-se no maior interposto missionário da Europa. De Lisboa, partiam, para as mais variadas terras do Padroado Português, do oriente ao ocidente, até aos confins da África, missionários das mais variadas proveniências geográficas, o mais famoso mundialmente dos quais S. Francisco Xavier. Tornámo-nos numa potência religiosa e comercial. Como disse D. Manuel Clemente, o que mais nos identifica é sermos antigos, uma teima em permanecer, “uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir”, “cais de embarque e cais de chegada, para partir de novo”16.
E ao mesmo tempo, é graças ao comércio marítimo possibilitado pelo movimento das descobertas e rotas marítimas, que Lisboa se converte num dos maiores interpostos comerciais da época, onde afluem comerciantes de toda a Europa.
Foi o mar e a sua posição atlântica que tornaram Portugal mundialmente conhecido, influente, decisivo no estabelecimento de relações internacionais.
Sem o mar, sem a expansão, Portugal não seria aquilo em que se tornou. O mar constituiu o principal recurso económico, político e cultural de Portugal. Foi graças à nossa gesta marítima, que iniciámos na história a era gâmica, de que fala Toynbee.
Foi através do mar que, afinal, nos descobrimos, nos conhecemos e nos demos a conhecer, que nos cruzámos, a ponto de hoje sermos inseparáveis dos demais povos que falam connosco o português.
Não se pense que a expansão marítima portuguesa, tenha sido fruto do acaso e da improvisação, pois nunca teria sido possível sem um avançado conhecimento das técnicas de navegação e da cartografia. Na base dos empreendimentos marítimos portugueses esteve, de forma expressiva, o conhecimento científico. Sem a Escola de Sagres e a liderança do Infante D. Henrique, não teria sido possível tudo o que aconteceu. “D. Henrique pretendia devastar o mar desconhecido, e a ciência é a escola da expansão, cientificamente realizada”, no dizer de Vitorino de Magalhães Godinho17. Não por acaso temos ainda hoje na nossa bandeira – caso raro a nível mundial – um símbolo científico: a esfera armilar, como ainda recentemente chamou a atenção Henrique Leitão.
Para além destas três características fundamentais que nos qualificam como pais latino, católico e atlântico, é ainda possível descortinar traços que singularizam a nossa maneira de ser portuguesa.
Em primeiro lugar, o carácter expansivo português, ditado pela geografia, que nos levou a aproximar homens e continentes muito diversos. O termos sido mais exploradores do que conquistadores, o desejo desbravador que impulsionou a nossa aventura, tornou-nos mais abertos a esta expansão e ao convívio com outras culturas. Mas também do ponto de vista psicológico: o português é expansivo, comunicativo e extrovertido, de relações fáceis que favoreceram a miscigenação, de que resultou o crioulo e o luso-tropicalismo analisado por Gilberto Freire.
A saudade – que Carolina Michalis de Vasconcelos estudou na literatura portuguesa medieval – está também, seguramente, entre os elementos que nos caracterizam. Não a saudade lânguida e melancólica, mas a saudade lírica, sonhadora e fáustica, de que fala Jorge Dias, que nos levou à acção, aos grandes empreendimentos. A nossa saudade não é contemplativa, nem mística. Não temos grandes tradições místicas. Somos sonhadores activos. Temos ideais que são motores de actividade, e não meras elocubrações filosóficas. A nossa saudade é, porém, fatalista, que faz muitas vezes do saudosismo um messianismo, na espera de uma salvação perdida que se deseja restaurar pelo advento brumoso de um mito, e que transforma a convicção de um destino em pessimismo.
Esta tendência para traduzirmos a contemplação na acção, leva-nos a horizontalizar a transcendência. A nossa concepção de Deus dominante é humanizante. Jorge Dias chamava a atenção para a diferença das igrejas nas aldeias portuguesas das dos “pueblos” espanhóis. Em vez das imponentes construções, acima do casaria das povoações, as nossas são igrejas chãs, que se confundem com o casario popular. Metemos a terceira pessoa da Santíssima Trindade nos pequenos Impérios do Espírito Santo nos Açores. Fazemos dos Santos festas populares, com quem andamos de braço dado a saltar fogueiras.
Outro elemento distintivo tem a ver com os “brandos costumes”. Os portugueses não matam os touros em praça, como os nossos vizinhos. A violência é comedida, e não generalizada, não é usual, mas apenas excepcional. A bravura que nos caracteriza não é gratuitamente violenta. Tende a ser firme, valorosa, mas não se traduz em gestos inúteis de vingança ou desforço. O português, como o diz Jorge Dias, “é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco”. Não gosta de fazer sofrer, nem de figurar o sofrimento. Nos crucifixos portugueses, Cristo já está morto, ao contrário dos espanhóis, onde normalmente agoniza.
Reconhecer esta identidade cultural de pais latino, católico e atlântico, pertencente à civilização ocidental de que fomos porta-bandeira mundial, tem consequências. Pertencemos em termos geo-estratégicos à comunidade dos povos ocidentais e europeus e, nesse âmbito, aos povos e países do sul da Europa, latinos e católicos, mas atlânticos, ligados aos povos e países que constituem as margens desse oceano.
Essa identidade tem uma alteridade: a dos povos que não são nem latinos, nem católicos, nem atlânticos, que pertencem a outras civilizações e culturas. Entre eles, convém distinguir os que aceitam conviver com o nosso modo de ser e de estar no mundo, e os que contradizem, e até combatem, os valores da nossa civilização.
O que implica definir estratégias e políticas de imigração, exigindo integração não apenas legal, mas cívica e cultural, e promovendo a atração de imigrantes que mais se aproximam da nossa cultura e a respeitam.
O respeito pelas culturas autóctones de origem não pode significar a guetização da população imigrante, o fechamento à integração, a negação da aprendizagem da língua e da educação, antes deve exigir, no contexto jurídico da cidadania, o respeito pelos direitos e deveres que a definem, e entre eles, o dever de servir e defender a comunidade em que se integram, perante ameaças à paz e à prosperidade dos que dela fazem parte.
Nesse perspectiva, ganha relevância a necessidade de prestar serviço à comunidade nacional, onde se insere o serviço militar, que sempre contribuiu decisivamente para a tomada de consciência nacional, para a percepção do todo a que se pertence, para a comunidade de valores e práticas sociais que se traduzem na cidadania. A conscrição militar foi historicamente na Europa, um dos mais importantes factores históricos do desenvolvimento da cidadania, que levou ao alargamento do sufrágio universal e da participação política das massas de combatentes nas guerras mundiais do século XX, como magistralmente o demonstraram Stein Rokkan18 e Reinard Bendix19. De facto, a universalização do sufrágio na Europa ocorreu apenas depois dessas duas conflagrações, como resposta em termos de direitos ao cumprimento de deveres nacionais para com a Pátria.
A identidade nacional não é estática, mas evolutiva. Há sempre, através da história, novos elementos que entram a fazer parte daquilo que somos colectivamente. No entanto, a preservação da matriz, dos elementos fundamentais que a configuram, é essencial para que nela se reconheçam os vindouros. Negar ou rejeitar os elementos fundadores, acaba por distorcer a identidade histórica que marca indelevelmente o presente.
As identidades precisam de ser alimentadas, enriquecidas, defendidas, sob pena de porem em risco a sua subsistência. Existem ameaças que põem em causa a sua permanência, e a imigração descontrolada é uma delas. A integração social e cultural dos imigrantes é uma exigência da preservação e continuidade da nossa identidade cultural. A imigração é aceitável se for acompanhada da integração, não apenas social, mas também cultural, dos povos que nos procuram. Não se pretende recusar a preservação de tradições e convicções de que são portadores, desde o momento que conjugáveis com os elementos fundamentais da nossa cultura, que vão desde a língua aos valores que decorrem da defesa da dignidade da pessoa humana, passando pelo respeito do nosso alinhamento geo-estratégico.
É esta identidade cultural, feita de valores e formas de pensamento, de modo de vida, de comportamentos e tradições, que urge preservar e potenciar, em tempos de globalização e de livre circulação de pessoas, bens e capitais. É esta identidade nacional, de que importa ter consciência, que deve ser transmitida através da educação cívica e moral, de que a escola se deve fazer cargo. É esta identidade cultural que pode e deve ser enriquecida por novos contributos, através da integração de pessoas vindas de outras paragens civilizacionais e culturais, desde que não ponham em causa o substracto em que assenta.
A defesa nacional passa também pela defesa e promoção da identidade nacional. Os militares são, pelo seu estatuto, pela sua formação e pela sua actuação, guardiães desta consciência cultural nacional, assente na cidadania romana, na dignidade da pessoa humana trazida pelo cristianismo, na abertura ao mundo, sobretudo ocidental, que o mar nos impõe.
Agradeço às Forças Armadas portuguesas a defesa desta consciência cultural, que faz parte da defesa da pátria, e a promoção da nossa cultura, valores e modos de vida, que levam a cabo, quer tanto nas suas missões externas, como na sua actuação interna. Bem hajam!
________________________________
* Conferência “A Identidade Nacional”, organizada pela Biblioteca do Exército, em 23 de maio de 2025.
1 Ronald Inglehart, The silent revolution. Changing values and political styles among wertern publics, Princeton, New Jersey, Princeton university Press, 1977, pp. 322 e ss.
2 Citado por Zygmund Bauman, Globalization. The human consequences, Cambridge-Oxford, Polity Press – Blackwell Publishers, 1998.
3 Ulrich Beck, O que é a globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globalização, S. Paulo, Paz e Terra, 1999.
4 Daniel Bell, “Estão as nações preparadas para enfrentar problemas globais?”, in AIP-Informação, nº 2 (Fevereiro 1989), 7-13.
5 Jurgen Habermas, Identidades nacionales y postnacionales, Madrid, Tecnos, 1994; e também “Nazione, Stato di diritto, Democrazia”, in Furio Cerutti (a cura di), Identità e Politica, Bari, Laterza, pp.187 e ss.
6 Giovanni Sartori, Pluralismo, multiculturalismo e estranhei. Saggio sulla società multietnica, Milano, RCS Libri, 2002, p. 58.
7 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, Toronto University Press, 1962.
8 Zugmund Bauman, op.cit.
9 “Chaque nation, comme chaque individu, a reçu une mission qu’elle doit remplir”, Joseph de Maistre, Considerations sur la France, Bruxelles, Editions Complexes, 1988 (1797).
10 La expansion portuguesa: un prisma de muchas caras, Bogotà, Universidad de los Andes, 2016, p. 67.
11 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, Sá da Costa, 1963 (1945).
12 José Matoso, Identificação de um país, Lisboa, Estampa,1986, 2ª ed., vol. II, p. 215-216.
13 Jaime Cortesão, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Seara Nova, 1940.
14 Vitorino de Magalhães Godinho, A Expansão quatrocentista portuguesa. Problemas das origens e da linha de evolução, Lisboa, 1945, ECE, pp. 11 e 13.
15 Reconheceu-o José Matoso, op.cit., I vol., p.18.
16 Manuel Clemente, O Catolicismo, Portugal e a Europa. Uma relação criativa, Lisboa, UC Editora, 2022.
17 Op. cit., p. 9.
18 Citizens, Elections, Parties, Oslo, Universitetforlaget, 1970.
19 Nation-Building and Citizenship. Studies of our Changing Social Order, Berkeley, Iniversity of California Press, 1977 (1964).
Professor Catedrático Convidado na Faculdade de Ciências Humanas da UCP (desde 1992). Membro da direção do Instituto de Estudos Políticos e professor do Mestrado de Teoria e Ciência Política.