
Crónicas em Tempo de Guerras, de Diplomacia e da Paz
Nuno Pereira da Silva
O livro “Crónicas em Tempo de Guerras, de Diplomacia e da Paz”, da autoria do Coronel Nuno Pereira da Silva, reúne um conjunto de reflexões escritas diariamente ao longo de um ano particularmente turbulento no sistema internacional – entre novembro de 2023 e novembro de 2024. O autor, Coronel na situação de Reforma e Secretário da Assembleia-geral da Revista Militar, propõe-se acompanhar, com olhar informado e espírito crítico, a transformação em curso na ordem internacional, marcada por guerras, instabilidade regional e a redefinição de alianças estratégicas.
Num registo simultaneamente analítico e acessível, estas crónicas não se limitam a relatar acontecimentos ou comentar factos. São antes ensaios curtos que procuram decifrar as dinâmicas profundas que alimentam o caos visível. Através da observação diária do mundo – como quem vigia uma fronteira em convulsão – o autor identifica padrões, denuncia incoerências, interroga os discursos dominantes e sublinha os riscos de uma ordem em mutação, donde se destacam os seguintes alinhamentos textuais:
A Nova Ordem Mundial… ou o Caos da Desordem?
Uma das ideias estruturantes do livro é a constatação de que o sistema internacional atravessa um momento de reconfiguração acelerada. Esta não é uma transição tranquila. Pelo contrário, como o autor observa, “…a nova ordem mais parece um caos – instável, fragmentado – do que uma arquitetura sólida e consensual…”. A alegoria do caos, contraposta à da ordem, revela o ceticismo fundamentado do autor quanto à possibilidade de estabilidade a curto prazo. Nesta fase, assistimos a uma multiplicação de conflitos – alguns de longa duração, como o da Ucrânia ou o do Médio Oriente, outros emergentes em regiões tradicionalmente periféricas do sistema internacional. Todos são, à sua maneira, reflexos de uma luta mais ampla: a disputa pelo estatuto de superpotência, o desejo de autonomia estratégica por parte de potências regionais e a crise das instituições multilaterais que regulavam a ordem liberal internacional desde o fim da Guerra Fria.
Entre Bismarck e o Realismo Estrutural
O autor recorre com frequência a referências históricas e doutrinais para contextualizar os dilemas atuais. Uma das citações-chave do livro é a de Otto von Bismarck, chanceler do Império Alemão, que no século XIX defendia que, num sistema com várias potências, a estratégia passava por garantir ser uma das duas dominantes – e, idealmente, a única. Esta lógica de poder, típica do realismo clássico, ganha atualidade num momento em que os Estados, sobretudo os mais poderosos, parecem ter abandonado as pretensões normativas do multilateralismo liberal para regressar à competição de interesses estratégicos puros. O autor mostra, com lucidez, como esta transição está em curso, particularmente visível nas posturas das grandes potências globais – como os Estados Unidos, a China, a Rússia e, de forma mais tímida, a União Europeia – e nas movimentações táticas de potências regionais como a Turquia, o Irão, a Índia, o Brasil ou a África do Sul. Nesta leitura, o Realismo ou o Neorrealismo estruturam a ação internacional contemporânea, em detrimento das abordagens idealistas ou institucionais. A lógica da força prevalece sobre a da norma; o equilíbrio de ameaças sobre o direito internacional; a dissuasão sobre a cooperação. O autor, conhecedor das doutrinas militares e estratégicas, oferece um olhar desapaixonado, mas não indiferente, sobre estas realidades.
O método da crónica diária: vigilância e memória
O formato das crónicas – curtas, incisivas, quotidianas – é uma das mais-valias desta obra. Ao escrever diariamente, o autor capta a respiração da história em tempo real. Esta continuidade permite-lhe detetar tendências que escapam à análise episódica ou aos comentários de ocasião. O seu método é simultaneamente jornalístico, ensaístico e estratégico: parte da notícia do dia, integra-a num contexto alargado e cruza-a com leituras acumuladas ao longo de décadas de estudo, serviço público e reflexão. Num tempo de excesso de informação e de análises superficiais, o autor oferece ao leitor um fio condutor. É uma escrita que se recusa ao ruído e à indignação fácil, preferindo o esforço interpretativo, a leitura pausada, o compromisso com a compreensão. A forma como acompanha, por exemplo, o evoluir do conflito na Ucrânia, o colapso do modelo liberal de segurança coletiva ou as tensões em torno de Taiwan, revela uma constância e uma coerência raras.
A guerra híbrida e a complexidade contemporânea
Outro conceito presente ao longo do livro é o da guerra híbrida – entendida como o cruzamento entre o conflito militar tradicional e os novos domínios de atuação: cibernético, informacional, económico e até cultural. O autor mostra como os conflitos do século XXI já não se limitam a frentes territoriais, sendo antes travados também na manipulação da informação, na pressão energética, nas alianças tecnológicas e nas perceções públicas. Esta abordagem multifacetada exige ferramentas de análise mais sofisticadas, que o autor domina por experiência e formação. A sua capacidade de articular os planos político, estratégico, operacional e tático é notável, e confere à obra um valor particular para leitores com responsabilidades em áreas da segurança, da diplomacia e do planeamento estratégico.
Um contributo cívico e intelectual
Para além da sua utilidade analítica, o livro cumpre um papel cívico. Num tempo em que os “influenciadores” ocupam o espaço público com opiniões voláteis, o autor reafirma o valor da experiência, da memória institucional e da responsabilidade no discurso. Fá-lo sem arrogância nem dogmatismo, mas com firmeza e clareza. A sua posição como Coronel das Forças Armadas Portuguesas na situação de Reforma, com ligação ativa à comunidade académica e institucional, confere-lhe um lugar singular na paisagem do comentário político e estratégico nacional. Este livro não é apenas um registo de opiniões: é um testemunho de lucidez, compromisso e de serviço que o autor oferece a todos quantos se preocupam com a Paz e com a Guerra.
***
Em conclusão, “Crónicas em Tempo de Guerras, de Diplomacia e da Paz” é um livro necessário e útil, pois oferece ao leitor atento uma chave de leitura para compreender o presente conturbado e antecipar os desafios do futuro. É uma obra que conjuga pensamento estratégico, cultura histórica e sentido de responsabilidade – qualidades raras num tempo que exige mais do que nunca análises sérias e bem fundamentadas. Ao longo destas 616 páginas, o Coronel Nuno Pereira da Silva não oferece respostas fáceis. Mas cumpre exemplarmente a função do intelectual e do analista: compreender a complexidade, dar nome ao que se passa, e – com serenidade – apontar e traçar caminhos. É uma leitura que consideramos indispensável para quem não se resigna ao ruído e à bruma dos dias, e ainda acredita que pensar é uma forma de agir.
A Revista Militar felicita o autor e agradece a amável oferta à Editora “Diário de Bordo”.
A Direção da Revista Militar