Nº 2465/2466 - Junho/Julho de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Cerimónias do Dia do Combatente
General
António dos Santos Ramalho Eanes
Intervenção do Sócio Honorário da Revista Militar,
General António Ramalho Eanes, no dia 14 de Abril de 2007
 
 
Hoje, aqui, nesta Sala do Capítulo do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, perante uma lousa simples em que repousam as cinzas de dois combatentes - mortos, um nos campos de batalha da Europa (em La Lys), o outro nos de África - celebramos o Dia do Combatente; prestamos homenagem aos soldados desconhecidos do Portugal de sempre.
 
Homenageamos todos. Mas homenageamos, em especial, os combatentes que, em resposta à responsabilidade social básica de todos os cidadãos - defender a sobrevivência da sua sociedade ou defender os seus valores e interesses essenciais, e não importa se de forma reflectida ou apenas instintivamente - lhe consagraram, total e definitivamente, o seu maior e distintivo direito - o direito à vida - o seu melhor bem - a própria vida.
 
Esses combatentes-heróis, as suas mães, as suas mulheres e filhos - estes se os tinham - têm direito total a este, apesar de tudo, insuficiente acto de preito e de gratidão.
 
Creio que ELES - esses combatentes-heróis - e a PÁTRIA, também, nos aconselham, se é que não nos exigem, mesmo, que honremos o seu exemplo e memória para que, não sem emoção profunda, mas reflexivamente também, olhemos, todos nós Portugueses, o exemplo que nos legaram como estímulo activo para uma responsabilidade social mais operatória.
 
que procedendo assim, despojaremos de nostálgico ritual este ACTO e, dessa maneira, conferiremos operatividade perene aos seus extraordinários feitos, à sua inigualável lição, de generosa solidariedade.
 
Para tentar satisfazer tal propósito abordarei brevemente as sempre tão discutidas questões do pacifismo e da guerra, dos exércitos e dos combatentes.
 
 
O pacifismo e a guerra
 
Repetidamente se ouve o grito-apelo: “guerra nunca mais”. Grito-apelo que, a nós, que fizemos a guerra, nos toca o coração, também, mas que nos acrescenta lágrimas aos olhos pois, ao ouvi-lo, à memória nos voltam os camaradas que vimos cair, nos ouvidos nos ressoam, de novo, os seus apelos últimos, quase sempre dirigidos às mães ausentes… e tão presentes. O nojo, que o luto afinal não sepultou, volta a cobrir de luto as vestes das nossas almas.
 
Como seria inebriantemente maravilhoso a “guerra nunca mais”; como seria inebriante e excelente uma “paz perpétua”, que conciliasse, na igual dignidade, os homens; no respeito mútuo, as Nações e Estados.
 
“Paz perpétua” que - na nossa civilização, de tanto brilho e de tão rico património e legado, mas também de tantas perversas paixões, nefastas utopias, cruentas guerras - grande preocupação e propósito de filosófica reflexão foi, sobretudo no tempo das Luzes.
 
Pacifistas somos, de certa maneira, mas só de certa maneira, todos. Diferença, incomensurável diferença há entre aqueles para quem a paz é um bem absoluto, a que tudo se pode e deve sacrificar, e aqueles outros para quem ela é um bem, um precioso e almejado bem, mas um bem condicional.
 
Para os primeiros, a paz merece o sacrifício dos valores individuais, sociais e políticos. Com a paz assim entendida, visa-se apenas garantir a vida, mesmo que ignominiada com a servidão. Para os segundos, deixarem a paz é uma opção inevitável sempre que a sua perdurabilidade implique viver sem liberdades, direitos e garantias, as únicas que tornam possível, ao homem, ser livre e perfectível - na expressão de Rousseau - e fazer da vida, da sua vida, uma aventura livre e responsável.
 
toda a utopia, também o pacifismo rapidamente exibe a sua contradição. Os pacifistas, ou se marginalizam da sociedade - fazendo guerra encoberta contra ela - ou se convertem em violentos. Basta recordar como a ideologia mais pacifista - o anarquismo - é a que mais violência social provocou.
 
Olhando a história do mundo e, mesmo, a nossa própria história, forçoso é concluir que a situação de guerra, ou de guerra possível, é consubstancial ao género humano.
 
Recordar se pode - se deve também - que João Paulo II insistiu em que a guerra justa é um conceito válido, cuja aplicação na actualidade o terá levado - talvez historicamente o primeiro a fazê-lo - a pedir a intervenção militar por razões humanitárias.
 
Muitos foram, no mundo e mesmo entre nós, as guerras injustas que se teria podido evitar sem que a nossa essencialidade, em matéria de valores e de interesses, tivesse sido danificada.
 
Mas, pelas guerras injustas raramente, muito raramente, são responsáveis os exércitos. Responsáveis são sempre - e sem excepções - os políticos, pois as guerras são geradas por situações de incomunicabilidade entre Estados, ou entre Estados e grupos organizados (o terrorismo), quando se esgotaram, ou se afirmam esgotadas, todas as mediações, conciliações e arbitragem. A guerra é, então, na definição clássica vigente, a continuação da política pelo uso das armas.
 
Porém, sendo a guerra, sempre, uma opção dos políticos e da sua responsabilidade, dela não podem alhear-se as sociedades.
 
Por ser interessante como via de estimulante responsabilidade social e democrática - obviamente - se recorda Kant. Diz ele que todo o poder político deve estar de tal modo internamente organizado que não seja o seu chefe a optar pela guerra, que nada lhe custa (porque a subvenciona à custa de outrem, a saber, do povo), mas sim “o povo, que a paga, a ter voto decisivo sobre se deve ou não haver guerra” (A Paz Perpétua, p.99).
 
Estimulante é este trecho porque nos lembra que é da nossa responsabilidade não permitir que outro regime, que não o constitucional pluralista, do Estado democrático de direito, nos reja; que é da nossa responsabilidade impedir-lhe opções que não tenham inteiro acolhimento constitucional, e sobre as opções com suporte constitucional exercer uma activa fiscalização, e apertado controlo, para que o poder político não se iluda, nem nos iluda, com desadequadas utilizações de meios e desinteressantes finalidades.
 
 
Os Exércitos
 
Olhando a história, de sempre e em todos os lados, forçoso é concluir que a situação de guerra, ou de guerra possível, é consubstancial ao género humano. Por isso mesmo, necessários são os exércitos aos povos, para defender a sua independência e propriedade.
 
Estes exércitos, na sua configuração republicana genuína, eram uma representativa expressão de toda a nação.
 
Nasceu este tipo de exército da Revolução Francesa. Na verdade, logo em 1789, abolido era, em França, o exército permanente do rei, com a adopção da conscrição, que repartia os jovens cidadãos, chegada a idade da cidadania plena, por classes, que se chamavam à prestação do serviço militar em função das necessidades.
 
Surgem, assim, os exércitos modernos em que o lealismo dinástico, a ligação à pessoa do soberano, era substituído por um sentimento colectivo, o patriotismo moderno. Símbolo desta revolucionária transferência de leal­dade ocorre na batalha de Valmy. Pela primeira vez, os soldados franceses batem-se, não com o grito de “viva o Rei”, mas com o de “viva a Nação”.
 
Abrange a conscrição todos os cidadãos, independentemente de raças, crenças, situação económica, social ou cultural. À partida, todos são chamados e considerados iguais. As diferenças, depois, estabelecem-nas os exércitos, no escrupuloso princípio meritocrático. Aos lugares de maior responsabilidade são chamados os que maiores habilitações educativas têm, ou que, no seu trabalho militar, se distingam pelo seu mérito.
 
Diferentes são hoje, no seu recrutamento, os exércitos. Diferenças que procuram responder à complexidade crescente dos sistemas de meios utilizados e à qualificação especial que exigem. Reconhecendo a realidade determinante deste facto, não se pode deixar de, no mínimo, sentir-se pesar pelo facto de os Exércitos terem deixado de ser, em grande parte, o que eram: escolas republicanas de igualitária e meritória socialização, em que a todos os mancebos capazes, física e intelectualmente, pertencia servir.
 
 
Os Combatentes
 
Propósito meu foi, como referi, não revisitarmos apenas a memória de tantos e tantos portugueses, em especial os que à Pátria deram a vida; não apenas prestar-lhes justa e comovida homenagem. Foi, também, reflectirmos sobre as razões que os levaram aos caminhos da guerra, mostrar quanto todos - Estado, Sociedade Civil e Cidadãos - são responsáveis e devedores, e são, sobretudo, herdeiros responsáveis da sua lição, do seu legado, que nos cabe preservar e transmitir como exemplo de referência e de reflexão às novas gerações.
 
Como disse o saudoso Padre Manuel Antunes, invocando Hegel, “o pensamento como a vontade deve começar pela obediência”. E a obediência deve olhar, com cuidada reflexão, a tradição. E, para Manuel Antunes, “a autêntica tradição consiste em fazer, aqui e agora, o que fariam os melhores dos nossos maiores se vivos fossem” (p.34). E no quadro de honra dos nossos maiores se contam, por irrecusável direito, os combatentes heróis, os que, pela nossa comunidade nacional - sem perguntas nem hesitações - deram a vida.
 
Tradição é, nas cerimónias militares em que se invocam os mortos pela Pátria, chamá-los pelo seu nome e responder-lhes pela voz unissonamente de todos os presentes: PRESENTE. Aqui, nesta Sala do Capítulo de Santa Maria da Vitória, não poderíamos citá-los todos. Mas podemos, a todos eles, em preito de justa homenagem e devida gratidão, dizer que presentes permanecem, eles, na nossa memória, no nosso coração, na nossa responsabilidade social. A eles poderemos, dizer, também, e com igual propósito de gratidão e homenagem, “nunca mais” às guerras injustas, porque empenhados nos declaramos em definitivamente preservar a democracia e, nela, não abdicaremos, nunca, da nossa responsabilidade de alguém decidir por nós questões de tamanha gravidade, como é a da guerra.
 
E, finalmente, poderemos dizer que imortais, para nós, são, como são para muitos dos nossos imortais poetas, como Fernando Pessoa, que, em Mar Português, os recorda e honra.
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2007-09-24
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General

António dos Santos Ramalho Eanes

General do Exército. Em 1976 foi eleito Presidente da República, sendo reeleito em finais de 1980. Foi o primeiro Presidente da República eleito, logo a seguir ao 25 de Abril, tendo cumprido dois mandatos, entre 1976 e 1986.  Sócio Honorário da Revista Militar.

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