Nº 2470 - Novembro de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Formação e percursos da tradição militar macedônica: dispositivos táticos na segunda guerra púnica
Prof. Doutor
Henrique Modanez de Sant´Anna
Introdução
 
Este artigo está dividido em três partes. Inicialmente, tratamos do contexto pós-guerra do Peloponeso como sendo o de uma revolução militar de fins do século V a.C., instauradora na Grécia de concepções táticas que fundem gradualmente as tradições desenvolvidas entre os helenos e os persas.
 
Em seguida, elaboramos reflexões sobre a formação do exército macedônico, entendido enquanto elemento de maior sofisticação bélica no mundo clássico até a consolidação da disciplinada legião romana. Por último, em uma perspectiva comparativa, aplicamos de forma breve a análise referente à manobra envolvente (dispositivo tático que melhor representa a fusão das duas tradições mencionadas acima) no cenário da segunda guerra púnica, especialmente no que diz respeito às forças cartaginesas e romanas.
 
 
1.  A revolução militar de fins do século V a.C.
 
Durante a Guerra do Peloponeso, conflito entre as póleis durante o século V a.C., os elementos das duas linhas de desenvolvimento militar, que há pouco haviam deixado de ser estranhos uns aos outros, passaram a ser combinados, conforme dito anteriormente, a ponto de produzirem gradualmente um novo modelo de guerra. Este, por sua vez, pode ser encarado como integrante de uma autêntica revolução militar (FERRILL, 1997), organizada em um sentido diverso da que ocorreu no momento da consolidação da cidade-estado.
 
Ao lado das inovações resultantes do conflito peloponésio, como o fortalecimento marítimo e a “introdução de um esquema de abastecimento fundado na obtenção de recursos dos seus aliados, com um sistema imperial de sustentação do esforço de guerra” (FUNARI, 2006: 19), foram fixadas ações militares de aprimoramento tático nas guerras de cerco e de inversão do princípio estratégico defensivo grego.
 
De acordo com Ferrill (1997: 149), entre 404 a.C. (fim da guerra do Peloponeso) e 336 (ascensão de Alexandre, o Grande) concepções táticas advindas do oriente próximo foram introduzidas sistematicamente no mundo ocidental, especialmente a capacidade logística do império persa, as manobras de flanqueamento e o emprego de infantaria levemente armada, que se bem utilizada colocava a pesada falange de hoplitas em situação de grande descon­forto.
 
Embora não possamos afirmar que os helenos que vivenciaram essa autêntica revolução militar tenham encaminhado uma reforma em seus exércitos e pensamento tático a ponto de produzir uma força militar integrada, seria imprudente pensar que o exército macedônico foi concebido apenas no século IV a.C., especificamente sob as idéias de Filipe II. O ponto de discussão diz respeito ao movimento que antecede a reforma do exército disponível a Alexandre, o Grande, ao longo da primeira fase de sua anábasis.
 
Na batalha de Leuctras (371 a.C.), momento em que a lendária falange espartana foi derrotada em uma espécie de “ironia considerável” (FERRILL, 1997: 166) por uma outra falange (tebana), os sofisticados dispositivos táticos característicos do exército macedônico já estavam difundidos no cenário grego, mas não assumiram forma integrada.
 
A validade na tática empregada em Leuctras quase sempre é atribuída à genialidade de Epaminondas, mas nesses casos o contexto de difusão dos elementos presentes em 371 a.C. não é levado em consideração. Em outras palavras, ao dispor suas tropas de forma invertida, ou seja, os melhores soldados tebanos posicionaram-se na ala esquerda e não na direita, Epaminondas procurou densificar o lado que entraria em confronto direto e frontal com os esparciatas. Desse modo, pôde usufruir do maior nível de eficiência da formação em falange, aprofundando a fileira e garantindo maior potência na marcha rumo a outro bloco coeso, princípio que rege a falange modificada por Filipe II alguns anos mais tarde.
 
Na outra ala de seu exército, Epaminondas legou o comando a Cleombrotus, que tinha como tarefa evitar o combate direto com a infantaria aliada dos espartanos, recuando a ponto de modelar uma formação oblíqua na linha de frente tebana, enquanto tropas montadas realizavam manobras de flanqueamento, colocando a falange em situação de desconforto. Sendo assim, tendo concentrado o batalhão sagrado (tropa de elite tebana) em uma posição de fortalecimento pelo alongamento das fileiras, pôde “esmagar a cabeça da serpente” (FERRILL, 1997: 167).
 
Juntamente com o episódio de Leuctras, são percebidos outros elementos de mudança na natureza da guerra antiga, todos presentes no exército integrado macedônico. Especialmente a partir do fim da Guerra do Peloponeso, hoplitas buscaram servir de mercenários no exército do Grande Rei, assim como peltastas (soldados de infantaria armados com uma lança útil tanto para o arremesso quanto para a estocada e com o pelta, escudo leve que permitia uma grande mobilidade ao soldado) foram empregados nas batalhas gregas. Ao contrário do que comumente se pensa, os mercenários mudavam constantemente de lado, mas seu comportamento era ordenado por um sentimento de profissionalismo, o que atesta sua eficiência e serve de ponto de apoio para se pensar as diversas construções acerca do militarismo cívico.
 
Esta perspectiva é relevante na medida em que a necessidade do correlato cívico deixa de existir com o exército macedônico, pois o ideal de disciplina adaptado na falange de mercenários gravita em torno do conhecimento da eficiência deste tipo de formação e não mais no sentimento de liberdade pelo exercício do consenso. Com isso, somos levados a seguinte questão: por que os macedônicos foram capazes de fazer dialogar as contribuições das duas linhas independentes de desenvolvimento militar e, portanto, quais são as especificidades que asseguram a possibilidade de integração tática de modo desconhecido pelas póleis e pelas satrapias persas?
 
 
2.  Filipe II, Alexandre e o exército macedônico
 
Em primeiro lugar, os macedônios estavam próximos o suficiente do cenário helênico para compreender o princípio da disciplina que organizava a eficiência da falange no choque frontal. Por outro lado, a distância do regime políade possibilitou a incorporação das aplicações táticas atribuídas às tropas montadas, de acordo com a tradição militar característica do mundo persa.
 
A fixação dos gregos na batalha decisiva encaminhada por um corpo cívico que buscava o choque frontal e desprezava manobras de flanqueamento (dada a sua pobreza no que se refere a grandes variações táticas), não permitiu uma introdução massiva (a ponto de produzir uma integração completa) das inovações militares trazidas pelo contato com os persas e em parte difundidas no pós-guerra do peloponeso. Em contrapartida, a ausência de convenções (protocolos e limitações) (LYNN, 2003) de guerra ao estilo grego no pensamento militar persa impossibilitou que a falange assumisse a centralidade dos dispositivos táticos.
 
Sendo assim, somente uma cultura como a macedônica, em que o rei era sempre o chefe militar (embora se servisse de reuniões com seus comandantes para a decisão acerca do plano e batalha) e combatia em uma Companhia de Cavaleiros, possuía a especificidade exigida para levar a cabo uma reforma que permitisse a integração do exército. Segundo Giovanni Brizzi (2003: 18), as tropas combinadas de Filipe II radicalizavam o requisito do aprofundamento da falange disciplinada sem expor os flancos por carência de mobilidade, graças às excelentes tropas montadas dispostas nas alas1.
 
No tempo de Alexandre, o exército macedônico era ordenado em batalha de modo a produzir um avanço contínuo e com todo o contingente interligado, tornando as possibilidades de movimentação variadas o suficiente para o combate em regiões diversas e contra adversários muito diferentes. Seguindo uma formação básica ao dispor as tropas montadas nas alas, protegendo a infantaria de possíveis flanqueamentos, fazia incidir em campo aberto contra o inimigo um tipo de manobra que se tornou a mais eficiente pelo menos até Cipião, em Zama (202 a.C.).
 
Na ala esquerda, próximos ao corpo de infantaria dos falangistas, estavam dispostos os cavaleiros tassálios, que segundo Ferrill, formavam um grupamento montado pesadamente armado e que podia tanto investir contra o flanco inimigo quanto desfazer linhas de infantaria ligeira (FERRILL, 1997: 179). Na ala direita, entre o contingente dos hypaspists (soldados de infantaria com maior mobilidade que os falangistas) e a falange ordenada em profundidade localizavam-se os Companheiros, tropa de cavaleiros aristocratas que compunham a guarda pessoal do rei. À frente da linha de choque estavam organizados, cumprindo função tática semelhante a desempenhada pelos velites romanos2, arqueiros e fundeiros, ambos ladeados por cavalaria ligeira.
 
O corpo central do exército macedônico, isto é, os famosos falangistas reformados por Filipe II, dividiam-se em unidades menores chamadas syntagmas (256 homens), que por sua vez reuniam-se em grupo de seis, formando um batalhão (taxis)3.
 
Embora autores como Antonio Guzmán Guerra (1982: 125) afirmem que a falange macedônica é apenas ligeiramente diferente da grega, deve estar claro que a alteração aparentemente pequena nos armamentos utilizados (escudo menor e lança mais pesada e alongada - sarrisa) pelo falangista de fato preserva o princípio da disciplina e do choque frontal, mas inverte a função estratégica proporcionada por esse tipo de tropa, incidindo sobre aplicação do exército em campo de batalha.
 
Em combate com os tribalos, um dos povos trácios que organizaram sublevações contra o poder do novo rei macedônio, Alexandre pôde colocar em prática o tipo de ofensiva que melhor exemplifica a integração do exército macedônico: a manobra envolvente. Nesta ocasião o envolvimento combi­nado não chegou a ser completado, mas as etapas de movimentação expressam a funcionalidade deste dispositivo tático.
 
No contexto de afirmação da autoridade legada por seu pai, Alexandre precisava legitimar-se tanto na Hélade quanto nos reinos situados entre a Macedônia e as póleis. Deste modo, fez marchar seu exército por essas regiões, sendo que os tribalos e os ilírios foram seus primeiros adversários, anteci­pando o grande cerco e massacre de Tebas. Com o conhecimento de que o rei dos tribalos, Sirmo, havia ordenado que seu povo escapasse do choque com os macedônios, fazendo-o avançar até as ilhas próximas do rio Istro, Alexandre retornou com seu exército e marchou em direção ao acampamento inimigo. Diante da preocupação em não deixar sublevações situadas em sua retaguarda, o pupilo de Aristóteles dispôs suas tropas e a fez investir contra os tribalos por meio de ataques dos arqueiros e fundeiros (ARRIANO, I, 2).
 
Somente após o contra-ataque dos soldados tribalos, que avançavam para conter o arremesso de projéteis por meio de uma aproximação do combate, Alexandre lançou “contra eles sua falange formada em profundidade” (ARRIANO, I, 2). Em seguida, os macedônios passaram à segunda etapa do ataque combinado, momento em que Filotas, responsável pelo comando da cavalaria da Alta Macedônia, investiu contra o flanco direito do inimigo. Enquanto isso, Heraclides e Sópolis, comandantes das cavalarias beócia e da advinda de Anfípolis, prensavam a ala esquerda, fornecendo duas possibilidades aos tribalos: o recuo, enquanto a retaguarda era uma possibilidade de fuga ou o avanço frontal, que resultaria no enfrentamento da muralha de sarrissas. Deste modo, deixando ressaltar o testemunho de Arriano,
 
“enquanto durou, de ambos os lados, o arremesso de projéteis, os tribalos puderam resistir. Porém, quando a falange, disposta em formação com­pacta, desferiu seu ataque violentamente e a cavalaria investiu contra os inimigos por todos os lados, (...) os tribalos deram a volta e atravessaram a margem em direção ao rio” (ARRIANO, I, 2).
 
Ao longo de quase toda a primeira fase da campanha de Alexandre (da marcha contra a Hélade até a batalha de Gaugamela), em se tratando das batalhas realizadas em campo aberto, o princípio da manobra envolvente (de acordo com a disposição apresentada acima) foi empregado de formas variadas, mas obedecendo às possibilidades oferecidas por esta movimentação básica. Este modo de conduzir a batalha decisiva e o choque frontal, assimilando as manobras de flanqueamento e o uso da infantaria ligeira de forma integrada, fundou uma prática militar que se distancia da helênica por sua posição específica em relação ao cenário bélico de fins do século V a.C..
 
Sendo assim, o argumento gira em torno das diversas adaptações, cartagi­nesas e romanas, da tradição militar que tem sua expressão máxima na eficiência da manobra de envolvimento. Por isso, devemos ocupar-nos do mapeamento, mesmo que breve, das práticas militares romanas e cartaginesas, a fim de montar um quadro de referência no qual possamos fazer atuar a narrativa que sustenta a plausibilidade da aproximação cartaginesa com a cultura militar macedônica e de sua conseqüente ligação com a guerra romana de fins do século III a.C.
 
 
3.  Percurso romano e cartaginês da tradição militar macedônica
 
Ao longo dos primeiros séculos republicanos, os romanos afirmavam que aprendiam táticas advindas de povos que ao final eram sempre submetidos por eles. Em um primeiro momento, é provável que tenham incorporado a organização cerrada dos etruscos e as aplicações manipulares por meio da guerra com os samnitas (NILSSON, 1929: 4). A primeira reforma conduz ao reinado de Sérvio Túlio (578 - 534 a.C.) e à contagem por centúrias, mesmo que não possamos atribuir essas alterações a um único rei; a segunda reforma aponta para a ampliação da flexibilidade tática da legião, quando os romanos necessitavam adentrar nas montanhas de Sânio sem serem esmagados pela falta de mobilidade da formação ao “estilo grego hoplita” (KEPPIE, 1998: 17).
 
Segundo Giovanni Brizzi,
 
“não apenas para os gregos, de fato, a escolha conduz à falange hoplítica: as duas grandes potências do ocidente mediterrâneo são, por sua vez, ambas póleis, e terminam, portanto, por confiar nessa estrutura, que se adapta admiravelmente à cidade-estado” (BRIZZI, 2003: 25)
 
Esta afirmação produz dois níveis de análise, que estabelecem os fundamentos para a reflexão sobre o padrão tático assumido pelos romanos e sua relação com a organização social. Em primeira instância, envolve de forma problemática elementos advindos das discussões sobre se Cartago pode ser entendida como uma cidade-estado, devido à sua organização política particular (mesmo que nela residam elementos característicos de uma pólis4). Interessante seria pensar que a historiografia peca por se submeter aos termos utilizados por Políbio, que se esforça para enquadrar a política cartaginesa nos referenciais gregos e romanos:
 
“A constituição dos cartagineses parece-me ter sido bem concebida em sua origem quanto aos seus pontos mais característicos. Com efeito, eles tinham reis e o Conselho de Anciãos era de natureza aristocrática, e o povo tinha a supremacia nos assuntos de sua alçada; em conjunto a estrutura do Estado assemelhava-se consideravelmente à de Roma e de Esparta” (POLÍBIO, VI, 51).
 
Talvez por isso tantos historiadores utilizem a nomenclatura pólis para a compreensão da “constituição cartaginesa”, muito embora hermeneuticamente mais correto fosse o emprego de termos produzidos pelos próprios fenícios.
 
Em um segundo momento, a postura de Brizzi incorpora a formação de uma legião-hoplita muito próxima do argumento apresentado por Lawrence Keppie, em seu livro The making of the roman army (1998). Pensar o modelo helênico de guerra não deve significar, embora o nome inicialmente sugira o oposto, choque entre hoplitas e política estruturada em torno da lógica políade. O termo que parece helenizar as forças legionárias quer simplesmente fornecer um direcionamento tático e uma aproximação que englobe a noção de disciplina. No limite, estamos nos referindo a uma aproximação tática que não envolve o contexto políade de exercício da igualdade, mas assegura a formação cerrada regida pelo dever cívico e pela marcha disciplinada.
 
Nesses termos, torna-se interessante pensar que, se os romanos desenvolveram suas práticas militares adaptando antecedentes gregos, o fizeram sem necessitar do estabelecimento de uma democracia, embora o pré-requisito cívico fosse contundente durante a primeira fase republicana. Em outras palavras, se observamos que plebeus passaram a reclamar com mais impacto social uma participação nas magistraturas e nos espólios de guerra, não podemos descartar que o século V e o primeiro terço do IV a.C. também foram marcados por uma “oposição deliberada ao patriciado, o que levou a uma reorganização da sociedade tendo por base estes dois grupos” (ALFOLDY, 1989: 29).
 
Sendo assim, os romanos caminhavam para a composição de uma nova e sólida aristocracia (nobilitas), pautada na tentativa de equilíbrio das forças divergentes, mas nunca no sentido de promover uma igualdade em termos gregos. Por outro lado, assumindo que a probabilidade dos romanos terem inspirado a força autêntica de seus exércitos (disciplina) a partir de uma reinvenção de práticas etruscas, somos tomados de certo desconforto dada à carência de conhecimentos sobre esses dispositivos bélicos. Em que medida os habitantes da Etrúria puderam organizar-se de modo disciplinado, uma vez que tal formação exige, em primeiro momento, tal qual nos mostra a situação helênica, a compreensão de igualdade obtida nos rituais políticos e militares?
 
Segundo Martin Nilsson (1929: 11), o que não pode ser negado é o paralelismo entre os casos grego e romano. A especificidade da experiência romana atesta um direcionamento tático semelhante ao dos gregos até a guerra contra os samnitas, onde os manípulos fazem emergir a força individual do legionário e de sua disposição em tabuleiro de xadrez. Por enquanto, podemos fazer como Nilsson e assumir apenas a existência de um paralelismo entre a falange hoplítica grega e a formação cerrada legionária de princípios da República, assegurando a análise de ambos os casos como específicos e expressando valores militares distintos.
 
Em outras palavras, aceitamos a idéia de legião-hoplita como aquela que apresenta, conforme dito acima, um direcionamento tático semelhante ao da falange grega, especificamente na ênfase dada ao espírito de coesão dos homens em armas. Ainda que permaneça no pensamento militar romano a glorificação do soldado que vence o mais forte dos inimigos em um combate singular, é no treinamento do legionário como aquele que integra a “muralha marchante de Roma” que reside a eficiência de um dos exércitos mais temidos do mundo antigo.
 
A base para a reflexão acerca da legião romana (o que permitirá a sustentação da especificidade do “percurso cartaginês”) parece ser a reforma serviana, uma vez que a vinculação entre os que podem pagar os armamentos, contribuindo para a formação do exército, e a defesa da res publica se fez em uma concepção de dever cívico e, portanto, de tropas disciplinadas. O elemento em comum, o que deve ser defendido por todos, não resulta de uma idéia de igualdade entre setores sociais; antes disso, advém da “coisa pública”. No caso grego, encontramos um sentimento de igualdade entre cidadãos como motor da noção de disciplina. Entre os romanos, a idéia de igualdade resultante da participação nas decisões políticas inexiste. Em Roma, o elemento em comum, o que deve ser defendido, é o que a todos pertence. A República é o elemento de coesão que aponta para a necessidade da disciplina.
 
De acordo com Tito Lívio, Sérvio Túlio fixou o sistema de centúrias, que servirá posteriormente para a contagem das unidades mínimas do exército romano. A reforma serviana é, evidentemente, civil e militar. Desta alteração na forma de recrutamento deriva o nome centurião, o soldado experiente capaz de comandar uma centúria. Quanto aos armamentos e ao detalhamento da organização por patrimônios, deixemos falar o historiador latino:
 
“Com os cidadãos que possuíam cem mil asses ou mais, organizou oitenta centúrias, quarenta de homens idosos e quarenta de jovens, chamadas de primeira classe (...) Como armas defensivas possuíam o capacete, o escudo redondo, as perneiras e a couraça, tudo em bronze. (...) A segunda classe compreendia as fortunas que iam de cem a setenta e cinco mil asses e formava vinte centúrias, incluindo homens de idade e jovens. Suas armas eram o escudo oblongo, ao invés do redondo e à exceção da couraça todas as demais armas eram as mesmas da primeira classe. Para a terceira classe fixou a fortuna em cinqüenta mil asses. Era formada de igual número de centúrias (...) [e] usavam as mesmas armas, com exceção de perneiras. Na quarta classe a fortuna era de vinte e cinco mil asses. Havia o mesmo número de centúrias porém (...) usavam apenas a lança e o dardo. A quinta classe, mais numerosa, formava trinta centúrias. Era armada de fundas e projéteis de pedra. (...) A fortuna exigida era de onze mil asses. Os demais cidadãos que o censo indicara possuir menores haveres formavam uma única centúria, isenta do serviço militar” (TITO LÍVIO, I, 43)
 
Diante das alterações constantes da legião romana, deve ser enfatizado que após a reforma serviana e a fixação das unidades manipulares, durante as guerras samnitas, os romanos adotaram, no início do século III a.C.,um sistema de organização que Brizzi entende como sendo sua forma definitiva (BRIZZI, 2003: 27). Definitiva pois dispõe as tropas de choque nas unidades dos hastati, princeps e triarii, sendo estes antecedidos na batalha apenas pelos velites, soldados ligeiros armados com dardos e um pequeno escudo redondo, responsáveis por garantir que as tropas pesadas não sucumbissem a projéteis, mesmo antes de cumprir sua função tática. De acordo com Philip Sabin (2000: 9), a alternativa romana para a formação de uma linha de frente profunda, durante os primeiros séculos republicanos ou a partir da instau­ração da coorte no século I a.C., foi o desenvolvimento de sua infantaria em linhas múltiplas, o que possibilitou aplicações táticas em diferentes níveis. Devido a isso, Cipião pôde, em Zama (202 a.C.) adaptar a manobra envolvente realizada por Aníbal Barca sem limitações referentes ao emprego da infan­taria5.
 
Os hastati, melhor armados que os velites, os seguem em idade e posses, sendo antecessores dos princeps, os soldados em pleno vigor físico. Encer­rando a formação em três linhas sucessivas encontram-se os triarii, soldados mais experientes e responsáveis por intervir caso a situação exija um esforço defensivo. A legião, armada nos tempos de Aníbal com o scutum e o gladium (espada curta ibérica que corta de ambos os lados, além de perfurar), era disposta em trinta manípulos, perfazendo um total de mais de quatro mil homens, dependendo da quantidade destinada a uma centúria e da homogeneidade na contagem das mesmas.
 
No momento em que a legião estava organizada nestes níveis, a lança rapidamente deixou de ser a arma principal do soldado romano para ceder espaço à espada, um verdadeiro indício da luta individual regida pela precaução da disciplina. Eis o argumento de Brizzi: o legionário é o elemento que faz convergir a capacidade combativa individual e a coesão presente nas falanges gregas (BRIZZI, 2003).
 
Dividida em forma de tabuleiro de xadrez, permitia que todas as fileiras participassem da linha de frente, pois podiam alternar-se devido à sua posição no campo, fazendo com que o inimigo sempre lidasse com tropas de fôlego renovado.
 
Frente aos trinta manípulos6, formadores da infantaria de choque romana, assinalamos que enquanto os triarii exerciam função defensiva, entrando em cena apenas em momento de desorganização ou crise, os hastati e os principes possuíam função ofensiva. Neste contexto, os legionários já se encontravam armados com o pilum, poderosa lança de arremesso a média distância, que permitia romper a organização da linha inimiga e concretizar uma etapa importante entre a retirada dos velites, por entre as fileiras de legionários, e o confronto corpo-a-corpo das tropas de choque.
 
Por último, dois tipos de cavalaria eram utilizados pelos romanos: a formada pelos eqüites, nobres romanos que possuíram grande participação política nos fins da República, e pelos povos aliados ou socii, responsáveis por ceder o maior número de cavaleiros, como no caso de alguns celtas da Gália.
 
Observadas as relações entre as práticas militares romanas e helênicas, ao menos em seu direcionamento tático, podemos previamente estabelecer um paralelo entre a cultura militar macedônica e a cartaginesa, objetivando, deste modo, sustentar a existência de um percurso alternativo ao que chamamos de tradição militar clássica. Evidentemente que o foco não se refere à marinha de guerra, pois interessa-nos o aspecto pouco explorado do militarismo púnico: a linha tática do exército anibálico.
 
Durante a primeira guerra púnica, conflito encarado como sendo de “atrito, desgastante e tolo” (MEIKLEJOHN, 1938: 9), uma vez que os romanos ape­lavam para batalhas sem grandes fundamentos estratégicos7, vale destacar a figura de Amílcar Barca, aristocrata cartaginês que enfatizava a necessidade de uma reforma que deslocasse o controle do exército exercido pelo conselho e o concedesse ao comandante de expedição. A contratação de um mercenário espartano (Xantipo), para a reorganização da armada terrestre púnica, deve ser percebida como instrumento que inaugura uma tradição militar aos moldes macedônicos. Embora espartano, Xantipo realizou alterações aos moldes macedônios, reconhecendo a mobilidade e o impacto das tropas montadas cartaginesas. Desse modo, dispôs o exército de modo que os elefantes protegessem a fraca infantaria, e acentuou os princípios de envolvimento possibilitados pelas manobras de cavalaria.
 
 
Conclusão
 
A partir de Xantipo, fruto do contexto de revolução militar do século V a.C. e conhecedor da anábasis de Alexandre Magno, Amílcar pôde conceber uma nova forma de aproximação tática, pautada em adaptações da tradição militar macedônica. Com isso, pretendemos romper com a idéia de que os cartagineses são devedores diretos da guerra grega, pois acentuamos o que antes era considerado um hiato entre a guerra de hoplitas e as reformas encaminhadas sob o comando de Barca. A percepção de uma continuidade ideal entre Xantipo, Amílcar Barca e Aníbal (BRIZZI, 2003:48) remonta a “Filipe II” mais do que a “Leônidas” e, quando o faz, é apenas de forma indireta, devido à dívida que a falange macedônica possui com a composta por soldados-cidadãos.
 
A reforma militar de fins do século V a.C. expressou um contexto de alterações táticas que possibilitou a emergência do exército macedônico como ponto de fusão de duas tradições militares: a grega e a persa. O elemento de síntese dessas linhas de desenvolvimento bélico foi à manobra envolvente, tática utilizada por Alexandre, o Grande, ao longo de toda a sua anábasis. O envolvimento combinado, diferentemente da manobra de flanqueamento, não era conhecido pelos romanos até o desenrolar da segunda guerra púnica e permitiu, a partir de adaptações controladas pela disciplina legionária, a vitória de Cipião sobre Aníbal em Zama (202 a.C.).
 
 
Bibliografia
 
ALFÖLDY, Géza. A história social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
ARRIANO. Anabásis de Alejandro Magno (I-III). Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Gredos, 1982.
BRIZZI, Giovanni. O Guerreiro, o soldado e o legionário. São Paulo: Madras, 2003.
FERRILL, Arther. The Origins of War. New York: Westview Press, 1997.
KEPPIE, Lawrence. The making of the roman army. Oklahoma: Oklahoma press, 1998.
LYNN, John. Written in blood: the classical greek drama of battle and the western way of war. In: Battle: a history of combat and culture. Boulder, Westview Press, 2003. pp. 1-28.
MEIKLEJOHN, K. W. Roman strategy and tactics from 509 to 202 B.C. Cambridge: Greece & Rome, vol. 8, nº 22, p. 8-19, 1938.
NILSSON, Martin P. The introduction of hoplite tactics at Rome: its dates and its consequences. The journal of roman studies. London, v. 19, p. 1-11, 1929.
POLÍBIO. Histórias. Tradução de Manuel Balasch Recort. Madrid: Gredos, 1991.
SABIN, Philip. The face of roman battle. London: The journal of roman studies, vol. 90, p. 1-17, 2000.
TITO LÍVIO. História de Roma (I). Tradução de Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Paumape, 1989.
 
 
* Este artigo é desdobramento de uma pesquisa de mestrado iniciada em fins de 2005 e com conclusão prevista para Dezembro de 2007.
**     Discente do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Goiás, professor de história antiga da Universidade Estadual de Goiás e editor do periódico Liber Intellectus.
 
 1 Mesmo a cavalaria macedônica sofreu influência direta da falange, pois utilizava-se de lanças com o mesmo cumprimento que a do falangista, diferenciando-se apenas pelo peso da mesma (FERRILL, 1997: 177).
 2 Assunto que será desenvolvido no item 2.5.
 3 Segundo Ferrill, o exército de Alexandre quando da campanha asiática possuía doze batalhões (FERRILL, 1997: 178).
 4 Conselho, assembléia e magistraturas.
 5 Este assunto será melhor desenvolvido no capítulo 3.
 6 Cada manípulo possuía duas centúrias, sendo que uma centúria variava entre oitenta e cem homens.
 7 Segundo Meiklejohn (1938: 9), muitos soldados marchavam rumo à morte certa e mesmo sabendo disso, eram encaminhados apenas para desgastar tropas inimigas.
 
 
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2008-02-08
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by COM Armando Dias Correia