Nº 2446 - Novembro de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A transformação dos conflitos armados e as forças da Revolução nos Assuntos Militares
Tenente-coronel
Francisco Proença Garcia
Uma possível introdução
 
A Guerra é um fenómeno global, com expressão em todas as regiões do mundo, da Europa à Oceânia, das Américas à Ásia, passando por África, sendo a sua problemática reconhecida como central por todos os estudiosos das Relações Internacionais, motivo pelo qual nos propomos apresentar um breve ensaio sobre esta temática.
 
Procurando responder a este desafio articulámos o trabalho em duas partes distintas mas interrelacionadas. Na primeira parte é traçada uma perspectiva da transformação da natureza dos conflitos armados. Esta breve análise permite-nos, desde logo, verificar a quão profunda tem sido a evolução do fenómeno guerra. De facto, apesar de nos mantermos no modelo trinitário clausewitziano, evolui-se quanto aos actores, deixando a guerra entre Estados de representar o principal papel, para um modelo de guerra irregular, global, assimétrica e permanente, sem uma origem clara e que pode surgir em qualquer lugar.
 
Na segunda parte tentamos caracterizar as guerras da era da informação. Aqui o cenário dominante é o da alta tecnologia, do espectáculo mediático e das baixas zero. Neste sentido apresentamos como breve exemplo a violência global permanente no Teatro de Operações do Iraque.
 
 
A transformação da natureza dos conflitos armados - uma perspectiva
 
Quando se pensa ou fala em guerra, normalmente a imagem associada é a da confrontação de matriz assente no Estado, com as respectivas Forças Armadas e população. Porém, a guerra como instrumento da política do Estado que opunha um Estado a outro e umas Forças Armadas a outras Forças Armadas constitui um fenómeno relativamente recente e que poderá ter tendência a desaparecer.
 
Num mundo hoje marcado pela volatilidade identitária (Badie, 2001) as incertezas são muitas, as zonas de interesse estratégico fundamentais alteraram-se, e passaram a ser aquelas que são capazes de exportar a sua própria instabilidade (Ramonet, 2001). Hoje a violência global é assimétrica e permanente, não tem uma origem clara e pode surgir em qualquer lugar. Para muitos, trata-se de uma situação típica do mundo tendencialmente unipolar do ponto de vista do esforço militar.
 
As guerras contemporâneas, acentuadamente depois de 1945, tornaram-se cada vez menos entre Estados1 e passaram a contemplar outros actores, infra-estaduais e supra-estaduais capazes de executar operações militares, verificando-se uma extrema plasticidade dos seus actuantes, assemelhando-se muitas vezes a uma luta pela sobrevivência, sem regras, sem objectivos claramente definidos, deixando assim o Estado de possuir o monopólio do uso da violência.
 
O futuro pode-se revelar muito diferente da realidade de hoje. Levanta-se a hipótese de se assistir ao regresso do mundo ocidental ao passado pré-Westfaliano2. O processo que está em curso será progressivo, irregular e caótico (Creveld, 1991), pois o falhanço do Estado favorece o crescimento da violência internacional não-estadual (Berzins e Cullen, 2003), em casos extre­mos, privatizada (Kaldor, 2001). A tendência aponta para que as guerras eventualmente com base em considerações etnonacionalistas, persistam entre Estados pequenos e fracos, ou em países menos desenvolvidos, do que envolvendo as grandes potências (Holsti, 1996).
 
No caso dos países menos desenvolvidos, onde são inúmeros os Estados que jamais foram capazes de se afirmarem face a outras entidades sociais (nomeadamente em relação à tribo e aos grupos etnolinguísticos), tem-se observado que no decorrer de confrontações violentas a distinção entre governo, Forças Armadas e população começou a esbater-se antes mesmo de ter sido correctamente estabelecida (Creveld, 1991 e Olsen, 2003).
 
São diversas as perspectivas de guerras num futuro presente, mas genericamente podem ser classificadas como regulares e irregulares3. Como guerras regulares consideramos os conflitos que obedecem ao modelo convencional pós-Vestefália. Neste sentido, nas guerras irregulares os principais actores já não são os Estados e as suas Forças Armadas. Os Estados podem entrar em guerra contra uma rede terrorista, uma milícia étnica, um movimento independentista, um exército rebelde ou ainda contra organizações criminosas transnacionais. As guerras irregulares podem também ser travadas entre estas últimas entidades, não envolvendo nenhum Estado. Em ambas as tipologias a superioridade no acesso e tratamento da informação é determinante.
 
Tudo indica que, regulares ou irregulares, há duas aproximações fundamentais para caracterizar as guerras actuais e num futuro não muito distante. A primeira assenta na crença que as guerras espectáculo, possibilitadas pelas forças da Revolução nos Assuntos Militares em Curso (RMC) (Garcia, 2000) ou Revolution in Military Affairs (RMA)4, que têm por base os enormes avanços das tecnologias de informação, dominarão. A segunda visão, que procura o entendimento de fenómenos como as “guerras de um novo tipo”, tende a defender que a revolução está maioritariamente a ocorrer nas relações sociais da guerra. Nesse sentido, o elemento central da equação não é a tecnologia, mesmo que aquelas sejam influenciadas por esta última.
 
Neste estudo a atenção recairá sobretudo nas guerras feitas por forças RMC.
 
 
As guerras espectáculo das forças RMC
 
A guerra deste início de século foi de algum modo antecipada no livro de Alvin e Heidi Toffler, Guerra e Anti-guerra, de 1994. Nesta obra os Toffler anunciaram a divisão tripartida do mundo e das guerras em vagas: A vaga das “guerras agrárias”, típica do período das revoluções agrárias; a vaga das “guerras industriais”, produto da revolução industrial, e por fim a vaga da “guerra da informação”, resultante da revolução da informação e do conhecimento.
As guerras típicas das sociedades de terceira vaga tem por base as forças RMC e estão ligadas sobretudo aos grandes poderes, nomeadamente aos EUA e seus aliados. Porém, as forças RMC na sua formulação mais profunda estão associadas exclusivamente - actualmente e nos tempos mais próximos - às capacidades do poder militar dos EUA (Ullman e Wade, 1996 e Chisholm, 2003).
 
Há uma tendência que erradamente se generalizou que caracteriza as guerras feitas por forças RMC, apenas pela alta tecnologia, nomeadamente a tecnologia ligada à informação. Na verdade, se apenas estiverem ligadas à tecnologia, podemos considerar que são guerras de forças pós-modernas, mas não são RMC. A forças RMC actuais assentam na tecnologia da sociedade da informação, caracterizam-se pela utilização do espaço, pelas novas tácticas e composição orgânica das unidades, pela necessidade essencial de conter a violência dentro de limites políticos, éticos e estratégicos aceitáveis pela comunidade internacional (Telo, 2003), mas também pela civilinização (civil quanto possível, militar quanto necessário) (Vaz, 2002) e sobretudo pelo modelo de organização das tecnologias existentes e já disponíveis mesmo no mercado civil, e a partir das quais é possível criar novas e diferentes capacidades num sistema de sistemas.
 
A tecnologia não modifica a natureza da Guerra, mas o seu carácter, o que implica um novo conceito para o termo Guerra, que agora designa uma situação que não se distingue claramente dos períodos de paz.
 
A ordem de batalha nas guerras centradas e em rede, de alta tecnologia, desenvolve-se em volta do conceito de Domínio Rápido (Ullman e Wade, 1996), de operações RISTA (Reconnaissance, Intelligence, Surveillance and Target Aquisition) com profusa utilização de armas inteligentes, de elevada precisão; selectivas. O novo campo de batalha está dominado por um sistema de sistemas, com base no C2W (Command and Control, Warfare), constituindo uma 5ª dimensão da guerra (Pereira, 2003), onde a manobra informacional se sobrepõe, e por vezes substitui a manobra do terreno.
 
Face à esmagadora superioridade tecnológica e a operações baseadas nos efeitos, as baixas tendem a ser zero, ou a aproximar-se do zero, pelo menos de um dos lados. O objectivo já não é o aniquilar, mas imobilizar, controlar, alterar e moldar o seu comportamento de forma a criar um novo ambiente político com perdas controladas, mesmo para o inimigo, evitando reacções negativas da opinião pública. É por esta razão que Edward Luttwak definiu este fenómeno como guerra pós-heróica (Luttwak, 1995); a força pode ser empregue sem o risco de perdas de vida.
 
As novas tecnologias e a digitalização das unidades ditam novas doutrinas estratégicas, tácticas e organizacionais. A tendência é para a robotização do campo de batalha de uma forma progressiva.
 
As forças RMC empregam muito a guerra de informação, o vector moderno da guerra psicológica e da subversão tradicionais (Valle, 2001). No actual ambiente operacional (e no futuro), o mais importante é (e continuará previsivelmente a ser) o domínio da informação, mais precisamente, o acesso, o controlo e o respectivo processamento com o objectivo de obter a sua transformação em conhecimento e depois partilhá-lo.
 
Em breve, a psicotecnologia disponibilizará novos instrumentos capazes de influenciar os “corações e as mentes” o que incrementará ainda mais o papel da guerra psicológica e dos guerreiros da informação que nas suas operações de informação e psicológicas, aprendem a implantar falsas realidades e a induzir movimentos psico-culturais e políticos, em prol de determinados interesses nacionais, criando uma realidade virtual quando a realidade efectiva contradiz os imperativos estratégicos de momento, no fundo uma verdadeira guerra de representações (Valle, 2001).
 
Ao nível estratégico a guerra de informação implica um domínio do ciber-espaço, pois não podem ser descurados os ciber-ataques, com as suas bombas lógicas, vírus e cavalos de Tróia. Esta diferente forma de guerra implica uma política de segurança e defesa para o ciber-espaço, pois este impôs uma nova dimensão geopolítica, a do próprio o ciber-espaço (Adams, 1993; Nunes, 2003).
 
Nas guerras das forças RMC a supremacia dos meios e sistemas de comunicações é um factor imperioso. Na maior parte dos casos o espaço tende a ser entendido como a quarta dimensão da guerra. Quem tiver capacidade para dominar o espaço dominará o mundo. Com a colocação de sistemas de armas de intervenção global o espaço será militarizado (Boniface, 2002), criando uma nova forma de dissuasão.
 
Com a civilinização, a distinção entre civil e militar ficará esbatida, pois já não são apenas as Forças Armadas que entram em combate, mas as comunidades políticas que elas servem. Assim, este fenómeno de inter-penetração é indicador de um novo tipo de Forças Armadas. Estas tendem a ser profissionais, com efectivos substancialmente mais reduzidos, com uma maior ligação aos meios universitários e centros de investigação, a integrarem mais mulheres e minorias (Vaz, 2002) e, em certa medida, tende-se para uma privatização da actividade militar (Moskos, Williams e Segal, 2000, Vaz, 2002).
 
As guerras com forças RMC são também guerras distantes. O poder que está na defensiva é castigado e muito limitado na sua resposta. Muitas vezes sente-se mesmo impotente (Telo, 2003). Também distante no comando e controlo, onde os media e a informação sobre a guerra desempenham um papel primordial.
 
Nas guerras RMC a duração em termos de uma acção militar intensa é muito curta - semanas - e é importante que assim seja, sobretudo por razões de opinião pública e de interesse político (Telo, 2003). Isto não quer dizer que no período posterior à acção militar decisiva, tipicamente de estabilização, a presença militar não se arraste por vários anos, já que actua em ambiente subversivo.
 
Parece ser consensual a convicção de que as guerras de hoje já não correspondem à classificação clássica do prussiano Clausewitz para quem a Guerra era “ (…) um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios (…)” (Clausewitz, 1976). Na verdade, hoje aquela máxima inverteu-se: a Política, sim, passou a ser a continuação/diversificação do estado de guerra. António Telo considera mesmo que hoje a guerra é a forma “superior” da política (Telo, 2003), superior apenas porque mais exigente, pelo que obriga a cuidados especiais e uma elaboração do pensamento mais complexa, porém, em nosso entender, a guerra, ou melhor, a violência global permanente não é política, mas deve-se sim ao falhanço da acção política.
 
Uma das mais importantes implicações desta mudança qualitativa de conceito de guerra, é a alteração dos laços funcionais entre o poder político e o aparelho militar. A envolvente política perpassa agora verticalmente todos os níveis de actuação militar: A estrutura de comando militar nos diversos níveis de responsabilidade preocupa-se principalmente com a actuação política (Telo, 2003). Mesmo ao nível táctico, um comandante de uma pequena força desempenha esse papel no seu contacto com a população e autoridades locais.
 
As guerras que envolvam a grande potência sozinha ou em coligação, sejam elas regulares ou irregulares, serão sempre efectuadas por forças RMC. Na actual Guerra no Iraque, a intervenção da coligação internacional pautou-se pela superioridade tecnológica, pela supremacia aérea, com domínio do espaço, pelo uso de armas inteligentes e também por uma intensa guerra de informação, num cenário típico de guerra regular.
 
A força RMC da coligação, com combates sucessivos e assimétricos, vergou a vontade de combater iraquiana e a operação militar foi uma nova Blitzkrieg. Porém, após a ocupação militar, houve uma transformação da natureza do conflito armado, deixando de obedecer ao modelo vestefaliano; além dos Estados passou a envolver outros actores. Conforme a circunstância qualificamos os seus elementos como bandidos, terroristas, guerrilheiros, mercenários ou milícias. Estes não representam um Estado e não obedecem a um governo.
 
As operações militares de estabilização, apesar de feitas por forças RMC, fazem-se agora num ambiente de cariz subversivo, de combate próximo, onde não existe uma estratégia e uma táctica bem definida, sendo os objectivos fluidos, onde a inovação impera e a surpresa/imprevisibilidade são as suas principais características. O emprego do terror é frequente, desaparecendo a distinção civil/militar, estando os combatentes misturados com a população que desempenha aqui um papel fundamental de apoio de retaguarda logístico, em informações e ao mesmo tempo fonte de recrutamento. Por outro lado também é o alvo principal e a maior vítima.
 
Em ambientes operacionais destes é normal a generalização da violação do direito aplicável aos conflitos armados (internacionais e não internacionais), bem como do regime de protecção dos direitos humanos (Kaldor, 2001).
 
No Iraque devemos ter presente a velha premissa de que as guerras de cariz subversivo não se ganham com acção militar, mas perdem-se pela inacção militar.
 
 
Uma conclusão
 
Apesar das incertezas típicas que o futuro nos reserva, a guerra continuará a ser uma questão de Poder e, no actual século, cremos que continuaremos a assistir a guerras provocadas pela alteração de relação de forças entre actores não estaduais e os Estados, guerras irregulares e em ambiente subversivo, sem regras, sem princípios, sem frente ou retaguarda, onde os objectivos são fluídos, na boa compreensão que a única legitimidade é a do exercício. Por outro lado, assistiremos às guerras espectáculo (regulares ou irregulares), típicas das sociedades de terceira vaga e que tem por base as forças RMC, com um novo tipo de Forças Armadas, de alta tecnologia, com profusa utilização do espaço como a 4ª dimensão da guerra.
 
 
Referências Bibliográficas
 
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 1 Kalevi Holsti na sua obra, The State, war, and the State of War, é esclarecedor. Os seus dados estatísticos referem-se ao número de Estados e a respectiva percentagem, que se envolveram em conflitos inter-estatais de 1715 e 1995. A tabela que construiu indica uma média de 0,005 conflitos entre Estados de 1945 a 1995, em contraste com 0.019 por Estado e anualmente nos Estados europeus no século XVIII, 0.014 no século XIX e 0,036 entre 1919 e 1939. De salientar que após 1945 não se registou nenhuma guerra entre as grandes potências (Kalevi Holsti. The State, War, and the State of War. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 23). Michael O´Hanlon considera mesmo que as guerras entre Estados se encontram em vias de extinção (Michael O’Hanlon, Coming Conflicts, Interstate War in the Next Milenium, Harvard International Review, Summer 2001.
 2 Na história existiram as estruturas tribais, as estruturas feudais, as associações religiosas, os bandos de mercenários ao serviço de senhores da guerra, e mesmo organizações comerciais. Muitas destas entidades não eram sequer políticas nem detentoras de soberania. Não possuíam governo, Forças Armadas nem população (em sentido actual do termo), mas defrontavam-se em guerras e campanhas bem organizadas.
 3 São inúmeras as tipologias que se podem adoptar. As mais usuais entre os militares usam o tradicional espectro da guerra, onde estas ou são internas ou internacionais, e depois com inúmeras formas de guerra variando as internacionais em função do grau de intensidade de emprego da violência. Estas formas possuem características políticas, psicológicas e técnicas específicas e o espectro subdivide-se entre guerra-fria e guerra quente (como guerra convencional, convencional sob ameaça nuclear). Como guerras internas surgem-nos a guerra subversiva, a revolta militar, o golpe de estado, a revolução e as guerras civis. Outros autores como Steven Metz classificam as guerras em formais, informais e de zona cinzenta (Metz 2000), ou as guerras novas e velhas (Kaldor, 2001), ou ainda Kalevi Hoslti, com as guerras institucionais, totais e as guerras de terceiro tipo (Holsti, 1996). Costumam caracterizar-se os conflitos como irregulares, ou não convencionais, quando não envolvem Forças Armadas num campo de batalha, nem recorrem a operações tradicionais no mar e no ar (Bruce Russet; Harvey Starr; David Kinsella. The Menu of Choice. 6th ed. Bedford/St. Martin’s Press, 2000, p.204).
 4 A adopção da expressão RMC e não de RMA deve-se ao facto de considerarmos o fenómeno como um processo dinâmico, em contínua evolução, tratando-se da revolução actual e não um processo findo e passível de confusão com outros parecidos ocorridos ao longa da História.
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