Nº 2479/2480 - Agosto/Setembro 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Globalização e Defesa: Decisão Política, Capacidades e Emprego da Força
Professor Doutor
Joaquim Aguiar
Segundo Painel
 
 
Moderador: Almirante Nuno Vieira Matias
 
 
Segunda comunicação
 
Globalização e Defesa: Decisão Política, Capacidades e Emprego da Força
   
Professor Doutor Joaquim Aguiar
 
 
As noções de defesa e de segurança estão directamente associadas à existência de um território nacional delimitado por fronteiras, à existência de um território de identidade integrando uma comunidade de valores e de destino, mas também à existência de um Estado nacional que exerce o poder num território de soberania e conduz a sociedade de modo a formar as capacidades para responder a ameaças (defesa) e para assegurar o respeito das normas jurídicas estabelecidas nesse território (segurança). O quadro doutrinário sobre os assuntos de defesa e segurança, que foi sendo elaborado nas condições e experiências históricas do passado, teve como alicerces essenciais a forma política do Estado nacional, os territórios nacionais, de identidade e de soberania, com uma organização dos sistemas de políticas públicas que tinham como resultante última a formação de capacidades que permitissem responder às necessidades de defesa e de segurança.
 
São estas condições do passado que estão agora em processo de mudança radical e rápida, obrigando a reformular noções e processos, impondo a reconfiguração sistemas de políticas públicas e de dispositivos de regulação, exigindo a reconsideração do que foram as funções e poderes do Estado nacional (regulamentador soberano dentro do território nacional) para estruturar as funções e as competências do Estado estratégico (organizando condições competitivas de atractividade, gerindo mobilidades em espaços abertos sem delimitação de fronteiras e formando capacidades de modo a reduzir vulnerabilidades e a produzir os meios de resposta a ameaças e de controlo da infiltração de interesses e de grupos hostis que não respeitam a legalidade estabelecida).
 
Nestes períodos de mudança forma-se um contexto paradoxal, onde a memória do passado é fonte de erros (porque essas condições do passado já não existem), mas onde o entusiasmo com o futuro é fonte de ilusões (porque ainda é preciso explicitar como se passa do presente, influenciado por um passado que já não existe, para o futuro anunciado, cujas condições ainda não estão definidas). Em termos práticos, estes períodos de mudança são tempos de incerteza e a decisão política só terá sentido se reconhecer essa incerteza essencial e não a acentuar com a imposição de convicções formadas nas condições do passado ou com a formulação de utopias que não serão realizáveis.
 
O que era pensável e realizável nessas condições do passado, o que determinava o campo de possibilidades para a acção política e para a condução política da evolução das sociedades, estava configurado pela forma política do Estado nacional, pela existência de um território de soberania delimitado por uma fronteira e pelo efeito de coesão gerado num território de identidade integrando uma comunidade de valores e de destino. O exercício do poder assumia a responsabilidade de coordenar as condições de viabilidade e de sustentabilidade das actividades desenvolvidas nesse território nacional, mesmo utilizando medidas de protecção que isolavam os mercados nacionais dos mercados mundiais. Nestas condições tradicionais, estabelecia-se uma distinção clara entre o que era a política de defesa (no duplo sentido de organizar os meios para responder a ameaças externas e de não gerar vulnerabilidades, por efeito de desequilíbrios ou por opções de política interna­cional, que pudessem estimular ameaças ou pressões externas) e o que era a política de segurança (garantir internamente o cumprimento das normas jurídicas estabelecidas, controlando a conflitualidade, a desordem e a criminalidade).
 
 
O processo de globalização altera radicalmente a forma política do Estado nacional, o efeito delimitador das fronteiras e o efeito diferenciador dos territórios de soberania e de identidade. Perde-se o factor de referência e de responsabilidade que era o território de soberania nacional e o exercício do poder político deixou de responder ao objectivo da estabilidade interna para passar a ser orientado pelo objectivo da atractividade (seja dos investimentos - para sustentar as actividades sectoriais e o crescimento modernizador - seja dos eleitores - para reproduzir o poder com renovação da legitimidade eleitoral). De uma condução política activa (responsável pela regulação interna) e estratégica (responsável pelas acções de modernização), passou-se para uma condução política passiva (em que o poder político nacional interioriza determinações de centros de decisões exteriores, acompanha as exigências dos investidores e responde aos desejos dos eleitores).
 
 
A passagem da época do Estado nacional e da economia nacional para a época da globalização competitiva e das redes sectoriais integrando espaços multinacionais não é instantânea, não é linear e não pode ser assegurado que seja bem sucedida em todos os casos.
 
Não é uma passagem linear porque os dois campos de possibilidades, os que são gerados nos territórios de soberania nacional e os que surgem nos espaços de poder pós-nacional, são muito diferentes, o que significa que também os modos de condução política, nas suas linhas orientadoras e nos seus instrumentos, terão de ser diferentes. Se não existir uma fronteira bem definida (com a consequente responsabilidade pelos assuntos internos atri­buída ao poder nacional) e quando se deseja e se promove a penetração do espaço interno fluxos de capitais, de produtos e de competências vindos do exterior, a noção tradicional de defesa, como resposta às ameaças externas, perde nitidez. Não será fácil distinguir entre uma penetração do espaço interno por interesses hostis e a entrada de recursos que favorecem o desenvolvimento interno. Por outro lado, a fragmentação dos diversos interesses que se expressam no território nacional (uns fixados no interior, outros ligados a centros de decisão externos) faz aumentar o relevo das questões da segurança, da regulação da ordem interna. Tanto em termos de política de defesa, como em termos de política de segurança, as partes em confronto ou a qualificação dos interesses em presença em termos de amigos e de inimigos nem é fácil, nem é estável, o que transforma as linearidades tradicionais em complexidades actuais.
 
Não é uma passagem instantânea, pois há um período de transição e de adaptação a condições que ainda são mal conhecidas que pode ser um período longo, durante o qual ocorrem oscilações e instabilidades. Durante este período, persiste a memória do passado, mas ainda não existe uma visão do futuro estabilizada, com uma forma política bem definida, ou tão definida como foi a forma política do Estado nacional, com o correspondente sistema de políticas públicas. A coexistência de dois campos de possibilidades distintos é fonte de perplexidade e de conflitualidade de interesses, na medida em que o referencial utilizado por diferentes grupos sociais nesse território nacional não é o mesmo. Por um lado, as políticas públicas não atingem os objectivos esperados e anunciados porque mudaram as condições e a eficácia dos instrumentos. Por outro lado, a diferenciação dos interesses na sociedade é influenciada pela referenciação dos grupos sociais, com os seus interesses radicados no interior ou no exterior, ao campo de possibilidades que lhes for mais favorável.
 
Não é uma passagem que tenha o seu sucesso garantido, pois este depende da capacidade para estabelecer uma forma política (e o correspondente sistema de políticas públicas) que organize as funções de regulação para o que será o novo campo de possibilidades no padrão de modernização da globalização competitiva. É mais difícil evoluir para uma nova forma política quando a generalidade das políticas públicas não consegue concretizar os seus objectivos, o que difunde na sociedade a percepção de um contexto de crise que agrava a incerteza e que reforça o apelo aos proteccionismos do passado que eram assegurados pela forma política do Estado nacional. Também é mais difícil fazer convergir os interesses sociais para a concepção de uma nova forma política quando a sociedade está dividida entre duas formas políticas indefinidas - uma conhecida, vinda do passado, mas que já não consegue realizar os objectivos que escolhe; outra ainda indeterminada, projectada para o futuro, mas que não gera entusiasmo e adesão numa sociedade que se encontra num contexto de crise e de incerteza.
 
A passagem de um campo de possibilidades para outro implica a passagem de uma forma política para outra, mas estas passagens exigem a reformulação da articulação entre política, economia e sociedade, obrigando à redefinição das funções e das posições da defesa e da segurança no sistema de políticas públicas.
 
1. Globalização e mudança do campo de possibilidades
 
A globalização é um contexto estratégico caracterizado pela mobilidade e pelos fluxos, que se distingue do contexto estratégico caracterizado pela regulamentação das mobilidades dentro de espaços delimitados por fronteiras nacionais. A globalização competitiva, por sua vez, é caracterizada pela orientação dos fluxos em direcção aos centros mais competitivos e que oferecem uma melhor remuneração aos factores dotados de mobilidade (isto é, que têm competências que são valorizadas pelos centros que os atraem). Este último é um contexto estratégico muito diferente daquele em que, podendo controlar a mobilidade dos factores, o poder político assegurava que se manteriam dentro do território nacional factores de competências e de competitividade diversas, onde todos participavam nas políticas de desenvolvimento e nas políticas de distribuição de rendimentos, contribuindo para a finalidade geral de uma sociedade sem desigualdades muito acentuadas.
 
As diferenças entre estes dois contextos estratégicos podem ser ilustradas por alguns contrastes nítidos, reveladores de que a passagem entre estes dois campos de possibilidades implica um trabalho cuidadoso de redefinição de instrumentos e de reformulação de políticas.
 
 
É da natureza do Estado nacional que precise da delimitação da sociedade fechada, do mesmo modo que é da natureza da sociedade fechada ter como forma política o Estado nacional. Esta relação biunívoca estabeleceu-se na própria evolução histórica, onde a integração numa unidade nacional foi conduzida pela afirmação do Estado nacional, mas também porque a eficiência e funcionalidade do Estado nacional pressupunham que o seu campo de acção estivesse delimitado por fronteiras de protecção (aquelas que determinavam a existência de um território de soberania, de um território de identidade) dentro das quais o poder do Estado nacional cumpria a sua responsabilidade de regular a viabilidade e a sustentabilidade das actividades.
 
A sociedade fechada é uma sociedade enquadrada por fronteiras, é uma sociedade de espaços onde as unidades de referência são o território e a população, é uma sociedade artificializada porque o poder do Estado nacional estabelece as condições em que se exercem as actividades no seu interior e, porque o poder político controla as mobilidades, onde é possível estabelecer um contrato social entre os elementos dessa comunidade na base do qual se estrutura um sistema de segurança social de transferências de solidariedade entre gerações (que complementa as insuficiências dos sistemas de segurança social de tipo contributivo e de capitalização).
 
A sociedade aberta não tem uma forma bem definida, não só porque as suas fronteiras perderam o seu efeito diferenciador quando passa a haver liberdade de mobilidade, mas também porque a sua geometria é variável em função da evolução dos seus centros competitivos ao longo do tempo (é da natureza da competição que uma posição de destaque conquistada esteja permanentemente ameaçada pelas variações da tecnologia e pela inovação nas organizações em outros centros competitivos). Esta geometria variável da sociedade aberta transforma a sociedade de espaços em sociedade de fluxos, que se deslocam pelos mercados através das redes de empresas e de comunicação. Estando inserida em relações competitivas, a sociedade aberta já não pode ser regulada e artificializada pelas intervenções correctivas do Estado nacional, pela sua artificialização por obediência ao sistema de valores nacionais, tem de aceitar o princípio geral da valorização dos mais eficientes ou dos que obtêm um valor de mercado superior, o que aprofunda as desigualdades dentro de cada sociedade e revela a incapacidade da forma actual do Estado nacional para corrigir esses desequilíbrios. O resultado último desta evolução é que o Estado pós-nacional, aquele que opera nas sociedades abertas, já não pode cumprir o contrato social que o Estado nacional estimulou e garantiu nas sociedades fechadas. Sem a protecção das fronteiras e sem as regulamentações do Estado soberano no território nacional, as sociedades abertas revelam se sociedades de risco, sem possibilidade de recurso às transferências internas de solidariedade - isto é, retomam a realidade da natureza humana, sem os benefícios de segurança social que tinham sido concebidos e instalados pelo Estado nacional no contexto da sociedade fechada.
 
Estes dois campos de possibilidade estabelecem duas visões do mundo muito diferentes, a que correspondem dois modos de acção política que não são comparáveis - mas que, não obstante, coexistem nas sociedades actuais, neste período de transição. O que é separável em termos analíticos (dois campos de possibilidade) não pode ser diferenciado nas relações sociais concretas (um campo de acção ambíguo e complexo, com, pelo menos, dois modos de acção política). Em cada sociedade, em cada grupo social, os dois referenciais - o do Estado nacional e o do Estado pós-nacional, o da sociedade fechada e o da sociedade aberta, o do proteccionismo e o da competitividade, o da igualdade promovido pelo poder político e o da desigualdade induzido pelos indicadores competitivos - estão misturados porque o processo de mudança entre épocas históricas não é instantâneo. Esta mistura de dois modos de acção política reflecte-se no modo como se formulam os programas políticos e, de modo mais preciso, no modo como os partidos orientam os eleitores nos períodos eleitorais. Não podendo optar pelos programas políticos do passado (porque perderiam relevância junto dos eleitores que querem políticas de modernização), os partidos políticos também não podem escolher as condições do futuro (porque estariam a ameaçar os interesses estabelecidos e as expectativas sociais, que foram criados e alimentadas sob influência das condições do passado).
 
A mistura de referenciais tão diferentes gera uma ambiguidade na formulação de políticas e na apresentação de alternativas que é, em si mesma, origem de crise de condução política, pois procura se realizar, simultaneamente, duas visões do mundo distintas (que separam o passado do futuro), tentando compatibilizar dois modos de acção política que não são comparáveis - o que tem como resultado natural que os recursos aplicados na visão do mundo do passado têm uma utilidade menor e fazem falta para explorar a visão do futuro.
 
Esta ambiguidade na formulação das políticas e de alternativas torna-se mais complexa quando é articulada com a alteração do factor de hegemonia, a forma de poder que assegura a superioridade nas relações entre Estados. A evolução do Estado nacional para o Estado pós-nacional altera o valor específico daquele que foi, historicamente, o factor de hegemonia - o poder militar. Mas este clássico factor de hegemonia é superado por formas e poder de contornos pouco definidos e instáveis na sua composição. É o que se pode ilustrar com a figura seguinte.
 
 
O factor de hegemonia clássico era composto pelo território, pela população e pelos recursos: quanto maior fosse a dotação nestes três elementos, maior seria a intensidade do poder específico desse Estado. O tipo de poder que sustentava estes atributos, que impedia a sua apropriação por outros Estado ou que permitia aumentar essa dotação desses factores, era o poder militar - um factor essencial na forma política do Estado nacional.
 
A criação de mercados internacionais, estruturados em função de nego­ciações de liberdades de trocas comerciais, foi um desenvolvimento que permitiu deslocar a conflitualidade militar para a conflitualidade económica. O poder militar continuou a ser indispensável para sustentar os acordos estabelecidos ou para proteger os recursos nacionais, mas a relação principal passou a ser a competitividade económica, ainda que usando instrumentos de intervenção do Estado nacional: as taxas de juro e de câmbio, a legislação interna que favoreça a vantagem competitiva, a formação de capital humano, modalidades implícitas de proteccionismos - e até a investigação na indústria militar, fonte de inovações tecnológicas com aplicação económica geral que eram um subproduto do incremento do poder militar.
 
A passagem para o factor de hegemonia que é a mobilidade, que se gera no padrão de modernização da globalização competitiva, já não inclui o Estado nacional como unidade central de análise. Pelo contrário, o factor de hegemonia que é a mobilidade fragmenta os espaços que o Estado nacional integrou, constituindo centros competitivos que têm uma base regional, embora operem na escala mundial. A nova lógica das localizações industriais favorece os espaços onde já se encontram actividades que sejam complementares, que ofereçam as competências necessárias para que uma específica actividade possa ser realizada nas melhores condições - o que significa que é um processo cumulativo, reforçando as vantagens iniciais de um centro competitivo.
 
Para o factor de hegemonia mobilidade, o poder militar perdeu o seu atributo de centralidade na acção política, ganhando peso, em contrapartida, os serviços de informação e os dispositivos policiais que assegurem o controlo da criminalidade e do terrorismo no espaço de cada centro competitivo. O poder militar não é eficaz para controlar ou para conquistar os fluxos das mobilidades, mas estes possibilitam a circulação de elementos hostis ou perturbadores que são melhor dominados pelos dispositivos de segurança do que pelo poder militar clássico. A perspectiva da defesa nacional, que era um vector estruturante do Estado nacional, tende a ser substituída pela perspectiva da segurança, que se centra na organização da ordem interna em cada centro competitivo. A unidade central de análise passa a ser o centro regional e a sua articulação com os mercados mundiais, perdendo peso o efeito da capital onde residem as instituições do poder do Estado nacional.
 
Como sempre acontece nos processos de evolução histórica, estas mudanças não fazem desaparecer as fases anteriores - mesmo que o factor de hegemonia actual seja a mobilidade, não desapareceu o valor do território, da população e dos recursos. Por razões idênticas, não desapareceu o valor do poder militar na perspectiva da defesa, ainda que as políticas de segurança tenham agora um peso superior. O que se altera é o valor estratégico destas categorias, no sentido em que não é possível pensar a mobilidade como se ainda houvesse os poderes de proteccionismo do Estado nacional, ou pensar a defesa como um valor associado à preservação da unidade nacional quando esta está fragmentada em centros competitivos e quando a sociedade está distorcida por desigualdades crescentes.
 
2. A avaliação da trajectória portuguesa neste processo de mudança
 
As mudanças de grande intensidade que marcam a entrada numa nova época histórica não são, em si mesmas, boas ou más. São realidades constituídas por novas condições de acção, a que uns se adaptam melhor do que outros. O que será uma boa mudança para uns, irá ser uma má mudança para outros, e um dos factores que estabelece a distinção entre estes dois tipos básicos de destinos é a rapidez com que se interpreta o sentido dessa mudança. No caso de Portugal, a perspectiva de prazo longo, sintetizada no quadro seguinte, revela que a capacidade de interpretação dos seus sucessivos quadros de possibilidades não foi satisfatória.
 
O indicador utilizado neste quadro foi a taxa de crescimento anual do produto interno bruto, que é uma medida sintética da vitalidade de uma economia. É um resultado que integra diversos factores de ordem económica, social e política, que é influenciado pela evolução de outras sociedades e de outras economias com as quais há relações mais estreitas, mas revela a qualidade da adaptação às variações das circunstâncias. Neste caso especifico, a consideração destes valores permite estabelecer uma narrativa consistente, a partir da qual é possível estabelecer o sentido e a avaliação desta evolução.
 
O elemento mais marcante desta narrativa contida nos números é a trajectória descendente da economia portuguesa e das economias europeias do indicador da taxa de crescimento anual. A linha de tendência portuguesa começa por estar acima da linha de tendência europeia, sinalizando que Portugal estava num processo de aproximação à vitalidade europeia por recuperação de um atraso histórico: crescer mais depressa não significava ter mais riqueza do que as economias europeias, mas indicava que havia um processo de recuperação da distância entre os níveis de riqueza destas sociedades. No fim do período, porém, a vitalidade da economia portuguesa é inferior à da vitalidade das economias europeias, o que indica que esse processo de recuperação do atraso não foi bem-sucedido, e que já não será fácil voltar a ter um diferencial positivo nas dinâmicas de crescimento em benefício da economia portuguesa. Entre o princípio e o fim destas linhas de tendência alteraram-se as condições de modernização, passou-se do padrão de modernização da economia nacional para o padrão de modernização da globalização competitiva, e este é menos favorável para as economias e as sociedades que têm um atraso acumulado em relação à constituição e desenvolvimento dos centros de modernização.
 
 
A primeira fase, até à crise do petróleo de 1973 e à mudança política em 1974, revela um crescimento significativo da economia portuguesa numa estratégia económica de internacionalização de plataformas industriais e financeiras, mas a mudança de circunstâncias que então ocorreu interrompeu essa estratégica económica e desmantelou essas plataformas industriais e financeiras. Com a integração europeia, em 1986, iniciou se uma nova fase de crescimento significativo, estimulado pela atracção de investimento externo e pela entrada de fundos comunitários: já não era uma estratégia económica nacional e endógena de desenvolvimento, passava a ser uma linha de acção dependente de estímulos externos e o seu sucesso seria decidido pela rapidez de modernização interna, já que a integração europeia implicava que não seria possível recorrer a políticas económicas e sectoriais de tipo proteccionista. A crise económica europeia de 1992, induzida pelos custos de ajustamento às mudanças políticas ocorridas no centro da Europa depois da desagregação da União Soviética, revelou que a economia portuguesa era demasiado sensível à instabilidade europeia - ou seja, que não tinha conseguido atingir um patamar de controlo interno dos factores de crescimento económico. A integração europeia de Portugal tinha sido positiva, mas não tinha sido suficiente para se criarem condições de autonomia económica.
 
A terceira fase de crescimento com taxas anuais superiores às europeias surge com a preparação da entrada no sistema da moeda única europeia, que induziu uma descida considerável da taxa de juro, tornando mais fácil suportar os encargos com o endividamento do Estado, das empresas e das famílias. Todavia, o crescimento deste período foi alimentado por uma estratégia económica de exploração do mercado local de bens e serviços não transaccionáveis, o que indica que não foram criadas as competências necessárias à internacionalização - numa época onde o sucesso económico está associado à competição em mercados mundiais. Fixada no mercado local, a economia portuguesa não gerou o efeito de escala que lhe permita sustentar estratégias de modernização.
 
Não é diferente a narrativa que descreve a evolução da economia portuguesa desde a integração europeia, mas a observação do quadro que regista esses valores permite contrastar o primeiro período, com resultados prometedores, do último período, com resultados medíocres - e ainda mais insatisfatórios quando são comparados com os obtidos pelas outras economias que também beneficiaram dos programas comunitários especiais dos fundos de coesão, aqueles que eram vocacionados para promoverem a modernização destas economias e destas sociedades.
 
O ponto de chegada nesta evolução é, em termos práticos, o ponto de partida para o futuro. Sabe-se, agora, que as estratégias de crescimento e de modernização fracassaram, e que Portugal parte para o futuro numa posição mais desfavorável do que qualquer das posições que teve no passado. Mas esta é a base real que deve ser tida em conta quando se interpreta o campo de possibilidades e se formulam novas estratégias. Não é esta a narrativa mais comum nas afirmações dos responsáveis políticos e da generalidade dos comentadores. Não obstante esta discrepância entre os discursos e as realidades, a evidência dos números, quando considerados no longo e no médio prazo, indica que não estão operativos factores internos de regeneração da estratégia económica no caso português. As oportunidades de modernização que não foram adequadamente aproveitadas não voltarão a repetir-se e as condições de crescimento económico no padrão de modernização da globalização competitiva serão mais exigentes, em competências profissionais e em inteligência estratégica, do que foram as condições de crescimento económico no padrão de modernização da economia nacional.
 
 
3. A base da formação das políticas públicas
 
As alterações ocorridas ao nível do Estado (com a passagem da forma política do Estado nacional para a forma política do Estado pós nacional), ao nível do padrão de modernização (com a passagem das estratégias de economia nacional para as estratégias da globalização competitiva em mercados abertos) e ao nível da sociedade (com a passagem dos territórios de soberania e de identidade para os fluxos entre centros competitivos) têm implicações para a estruturação do sistema de políticas públicas. Mesmo que se mantenham as designações tradicionais, tanto os conteúdos como o modo de formação dessas políticas tiveram de se alterar para se adaptarem ao novo campo de possibilidades.
 
Nas relações de articulação entre as diversas políticas públicas há uma estrutura permanente, que é função de valores essenciais de preservação da viabilidade e sustentabilidade da sociedade, mas a configuração concreta das políticas públicas varia com a identificação do que é o seu campo de possibilidades num período histórico concreto. Essa estrutura permanente é representada na figura seguinte.
 
 
As políticas públicas articulam quatro condições: as políticas, as econó­micas, as motivacionais e as de segurança. As condições políticas estabelecem a ordem interna e a legitimação do poder, que são as bases que permitem formular a condução estratégica da sociedade na afirmação dos seus interesses e valores nacionais. As condições económicas estabelecem os termos em que se assegura a subsistência da população e as vias para o seu desenvolvimento. As condições de motivação reforçam os traços da identidade nacional, formando os laços de coesão interna, ao mesmo tempo que determinam a diferenciação em relação ao exterior. Finalmente, as condições de segurança definem os modos de defesa e, nas relações que são compatíveis com a identidade nacional, definem os termos em que se pode participar em alianças que reforcem o objectivo da defesa.
 
São estas quatro condições que formam a estrutura permanente das políticas públicas. No entanto, a sua tradução concreta em programas políticos depende do que forem as circunstâncias que caracterizam o campo de acção. Quando há mudanças de grande intensidade, a articulação entre as quatro condições não está garantida, podem surgir interrupções nas articulações que dificultam a formação de políticas consistentes e que se regulem ou se dessas mudanças de grande intensidade que perturba as relações tradicionais entre as quatro condições, pondo em causa a continuidade das trajectórias escolhidas em períodos anteriores a essa mudança de grande intensidade. É o que se ilustra na figura seguinte.
 
 
A mobilidade e o desmantelamento das barreiras alfandegárias alteram o exercício da soberania económica e retiram ao poder político nacional a capacidade para estabelecer as condições de viabilidade das actividades. No entanto, não é menos importante a alteração do padrão demográfico nas sociedades desenvolvidas, aquelas onde se tinham instalado dispositivos de segurança social baseados na solidariedade entre gerações, e que perde a sua viabilidade quando as gerações futuras (geradoras de rendimentos) são mais pequenas do que as gerações anteriores (beneficiárias da cobertura do risco financiada com as transferências feitas pelas gerações em actividade remunerada). A articulação entre as condições económicas e as condições políticas passou a ser problemática, quando se esperava (e se precisava) que ela fosse complementar para enfrentar os desafios competitivos. A resultante última desta dificuldade de articulação, quando as actividades perdem viabilidade por não serem competitivas e quando as sociedades perdem a percepção de segurança perante o risco social que estimulava o consumo, é a diminuição do ritmo de crescimento económico, seja por efeito da acumulação de endividamento (efectivo, porque já consumado, ou implícito, porque corresponde a responsabilidades contratuais assumidas para o futuro), seja por redução do consumo das sociedades que escolhem a poupança (quando compreendem que não terão protecção social financiada por transferências entre gerações).
 
Esta crise de expectativas difunde nas sociedades um sentimento de perplexidade, que depressa evolui para atitudes de fragmentação que ameaçam as relações de coesão social. As exigências da competitividade, por um lado, a necessidade de financiamento individual ou familiar dos dispositivos de protecção dos riscos sociais, por outro lado, reforçam o individualismo contra a solidariedade e aumentam as desigualdades em cada sociedade. Em geral, o que se pode esperar deste tipo de relações é a acentuação da conflitualidade interna na sociedade - o que dificultará a condução de políticas competitivas que precisam de cooperação dentro da sociedade e de um sentimento de confiança em relação ao futuro.
 
Estas primeiras duas dificuldades de articulação, entre a política e a economia e entre a economia e a sociedade, repercutem-se a seguir na dificuldade de articulação entre a sociedade e a segurança nacional - porque perdeu nitidez o que realmente se quer e se pode defender. O que se quer defender torna se ambíguo quando se deseja importar os produtos ao melhor preço e quando se promove a entrada de investimentos externos ou quando se recorre ao endividamento externo para se manter o nível de consumo interno. O que se pode defender também não tem uma identificação unívoca, quando o isolamento nacionalista implicaria o abandono das relações competitivas, o que tornaria inevitável a desistência de qualquer estratégia de modernização. Para além destas ambiguidades nas relações económicas internacionais, o efeito das mobilidades é um outro gerador natural de ambiguidades na óptica da defesa: tanto os movimentos de capitais como os movimentos de pessoas têm um lado positivo quando se integram em estratégias de desenvolvimento, mas são factores de perturbações súbitas quando são retirados e deslocalizados ou quando produzem conflitualidades sociais que são inéditas nas suas motivações e nas suas manifestações (porque já não se referenciam ao Estado nacional, mantêm-se difusas e dirigidas contra inimigos que não são bem definidos).
 
Esta descrição do novo campo de possibilidades das políticas públicas nas sociedades abertas e no Estado pós-nacional confirma a função instrumental estratégica que têm os conectores das articulações, representados no gráfico. Os modernos sistemas de políticas públicas têm a tendência para perderem a sua consistência interna e assim prejudicam a função de regulação interna automática, na medida em que cada política pública tende a ficar mais ligada aos seus beneficiários directos do que às outras políticas públicas que deveria complementar. A maior importância atribuída à satisfação dos utentes de cada política pública tem como efeito indesejado perder-se a percepção dos desequilíbrios em cada política pública e, portanto, não são activados os dispositivos de correcção que uma gestão integrada de políticas públicas não deixaria de utilizar. Onde os interruptores impedirem a circulação da informação e das complementaridades entre as diversas políticas públicas é mais provável que ocorram dinâmicas de desequilíbrio cujos efeitos vão sendo acumulados de modo independente, até se configurar uma crise de grande intensidade por convergência de impossibilidades.
 
Estas características do campo de possibilidades em que se opera no presente não são específicas de Portugal, mas o caso português apresenta especiais vulnerabilidades em resultado da sua posição periférica, da sua reduzida dimensão e da acumulação de equívocos estratégicos que escolheram trajectórias que não estiveram em sintonia com a evolução das condições de modernização. A forma sintética da singularidade portuguesa é apresentada na figura seguinte.
 
 
A pequena dimensão do mercado nacional, a fragilidade das plataformas empresariais e a sua dependência do endividamento não favorecem a confronto competitivo com unidades empresariais mais eficientes e que operam em mercados mais evoluídos e mais consistentes nas suas integrações de políticas públicas. É natural, nestas circunstâncias, a tentativa de recurso a actividades de bens não transaccionáveis desenvolvidas nesse pequeno mercado interno, uma escolha que se torna inevitável quando os custos unitários do trabalho são demasiado elevados para o valor de mercado dos seus produtos. Esta escolha, no entanto, tem uma consequência negativa: não se estrutura uma base de modernização económica, antes se fica preso a um círculo vicioso interno, onde valores salariais excessivos geram uma dinâmica de empobrecimento em lugar de promoverem o progresso dos níveis de rendimentos.
 
As políticas sociais, centradas na mutualização social dos riscos e nos dispositivos de transferências entre escalões de rendimentos e entre gerações, são prejudicadas pela evolução da demografia (que distorce as relações tradicionais entre gerações) e pelas reduzidas taxas de crescimento anuais (que limitam o volume das transferências). Este padrão de relações entre os riscos sociais e o financiamento da sua cobertura é muito diferente daquele que existia no período em que estes dispositivos de políticas sociais foram concebidos e instalados, o que torna necessária a sua adaptação ao novo padrão relevante, tanto em termos demográficos, como em termos das taxas de crescimento económico esperadas. Porém, essa adaptação é dificultada pela resistência dos grupos sociais e dos eleitores, a que corresponde o silêncio cúmplice dos responsáveis políticos que preferem manter uma ilusão do que clarificar o que é possível sustentar nas condições existentes do presente. A consequência última é o aumento do endividamento - o que só pode tornar ainda mais difícil a resposta a esta questão no futuro.
 
A resistência à mudança tem uma maior importância no caso português do que noutras sociedades europeias, até mesmo do que em Espanha, o que é explicável pela percepção da ameaça que a sociedade portuguesa forma em relação à continuidade dos seus estilos de vida e das suas expectativas porque tem consciência de que não venceu o desafio da modernização. No entanto, esta resistência à mudança não se fundamenta na defesa de um modelo próprio de organização da sociedade. É uma resistência que se baseia na avaliação de que não se consegue ganhar no confronto competitivo - e, numa escolha paradoxal, opta-se pela proposta de políticas proteccionistas e de políticas de intervencionismo do Estado que, a serem adoptadas, não seriam financiáveis e implicariam o abandono de qualquer possibilidade de modernização.
 
Nestas três articulações de políticas públicas - a que liga a política à economia, a que liga a economia à sociedade e a que liga a sociedade à sua segurança - os conectores interrompem a fluidez da comunicação da informação e da interpretação da evolução dos indicadores. É essa interrupção dos sinais críticos (que aparecem na execução de cada política pública e que sinalizam para as outras políticas públicas o que deve ser feito para controlar os desvios ao programado ou desejado) que impede a funcionamento normal dos dispositivos de regulação. Sem a articulação das políticas e sem regulação, o sistema de políticas públicas torna se instável e sem condições internas de controlo.
 
E é daí que decorre o paradoxo extremo que se encontra no caso português: os seus défices de modernização e de crescimento aumentam a sua vulnerabilidade ao domínio espanhol, o centro de poder com intencionalidade estratégica que está mais próximo no espaço e que é o único que pode revelar interesse num território periférico e pouco atractivo - exactamente o que a política de defesa nacional deve ter por objectivo evitar. Este paradoxo extremo, o resultado último da descoordenação (por deficiências de articu­lação) e da desregulação (por resistência dos grupos sociais à mudança) do sistema de políticas públicas em Portugal, na época de passagem do Estados nacional para o Estado pós-nacional, tem como consequência inevitável o aumento da vulnerabilidade ao domínio externo - mas por efeito das decisões internas e não por qualquer iniciativa de ameaça externa.
 
4. A formação do poder nacional efectivo: a produção de capacidades
 
O poder nacional não é uma afirmação de vontade, é uma produção continuada de capacidades. A afirmação de vontade, necessária para que possa haver a disputa estratégica que resolve um confronto de vontades, tem como condição de existência a produção de capacidades que ofereça o sistema de instrumentos com os quais essa vontade se afirme. Sem a produção de capacidades, a afirmação de vontade é apenas retórica, não lhe corresponde uma realidade efectiva que os outros reconheçam - e acaba por ter o efeito perverso de, por se situar manifestamente no campo da retórica, fora do campo de possibilidades, estimular a ameaça por parte dos que fazem uma avaliação rigorosa das capacidades existentes e detectam a oportunidade para imporem os seus interesses sem terem de recear retaliação.
 
Neste sentido, o poder nacional efectivo é o resultado da articulação das diversas políticas públicas, na medida em que são estas que produzem as capacidades ou que fundamentam as orientações estratégicas que conduzem as adaptações às mudanças nas condições competitivas, nos processos tecnológicos e nos padrões de modernização. Estas relações podem ser descritas a partir do gráfico seguinte.
 
 
O factor principal na constituição das capacidades que tornam o poder nacional efectivo é a adaptação ao futuro. Dominar os ciclos de inovação é a condição para não ficar em inferioridade na comparação competitiva com outras potências, e isso só será concretizado desde que se conquistem as posições de controlo nos sectores que conduzem a modernização - é pela supremacia nos sectores de inovação que se assegura a melhor capacidade de adaptação ao futuro. É este factor principal que permite atingir o objectivo principal que está associado à formação do poder nacional: criar potencial hegemónico e construir as capacidades militares efectivas que sustentem e defendam esse potencial hegemónico.
 
Nas actuais condições de modernização, a formação do poder nacional está mais dependente dos contributos da economia, da tecnologia e da investigação científica do que da força militar, mas esta continua a ser o elemento necessário para que o potencial hegemónico se traduza em dominação hegemónica efectiva e não seja desafiado por outros candidatos a essa posição de centralidade e de domínio. Na hierarquia das potências, só uma pode aspirar ao estatuto de centro de hegemonia, mas as condições de formação do poder nacional não são diferentes para as outras potências de menor dimensão - ressalvadas as diferenças de escala e de ambição. Em todos os casos, o poder nacional não é o resultado de um único vector, é um composto multivectorial coordenado pelo critério estratégico central da defesa nacional como formação das capacidades para responder a ameaças externas.
 
As condições de formação do poder nacional evidenciam a importância decisiva da qualidade da articulação das políticas públicas e a sua subordi­nação a esse critério estratégico central do reforço da defesa nacional. É um critério que cada uma das políticas públicas deverá considerar, porque cada um contribui para o composto multivectorial que é a defesa nacional, como resultante última das capacidades geradas na economia e na sociedade. Mas essas mesmas condições também evidenciam o custo a pagar quando o sistema de políticas públicas não é devidamente coordenado, com diferentes políticas públicas a serem distorcidas para satisfazerem interesses clientelares específicos. É um custo que tende a amplificar-se, pois quando se perde a referenciação ao critério estratégico central da defesa nacional já não é possível restabelecer um outro eixo de coordenação das políticas públicas.
 
É um custo gerado pela distorção da função de regulação - e quando um sistema de políticas públicas é atingido nos seus dispositivos de regulação a sua evolução mais provável é uma trajectória em direcção a um ponto de crise, sem possibilidade de regeneração. É o que se pode analisar a partir das duas figuras seguintes.
 
 
A regulação normal articula as condições económicas, sociais e políticas de modo convergente, associando a viabilidade competitiva de empresas e sectores aos valores e comportamentos sociais de modernização, criando as bases com as quais a política conduz a estratégia de modernização, sujeitando os resultados obtidos à avaliação comparada com o exterior para que sejam adoptadas as normas mais eficientes. É uma articulação virtuosa, mas que também sinaliza qualquer desvio à trajectória adequada de modo a poder introduzir, em tempo útil, medidas de correcção.
 
Todavia, esta regulação normal pode ser distorcida, com o resultado de substituir a coordenação virtuosa por uma racionalização perversa. Em lugar da introdução de medidas correctivas para compensar os desvios, estes são aceites como sendo os novos objectivos (por adaptação ao erro que produziu o desvio) e a regulação passa a produzir desvios crescentes - mas que são aceites porque passaram a ser as novas condições de subsistência económica e as novas condições de satisfação das expectativas sociais. Nestas circunstâncias, a condução política fica subordinada aos interesses económicos estabelecidos e aos movimentos sociais que desistiram dos objectivos de modernização.
 
Nesta segunda modalidade da regulação, as actividades económicas refugiam-se nos sectores de bens não transaccionáveis (que estão protegidos da concorrência internacional), os comportamentos sociais mostram a sua preferência pelas rendas distributivas obtidas pela via da protecção política (ainda que financiadas por endividamento) e a condução política fica presa nos compromissos proteccionistas que a própria decisão política estabeleceu. Num campo de possibilidades deste tipo, não há atractividade e, pelo contrário, há um isolamento crescente que impossibilita qualquer regeneração e recuperação de condições de modernização.
 
 
A comparação entre estas duas modalidades da função de regulação, uma normal e outra distorcida, é instrumental para se analisar a sucessão de perdas de oportunidades de modernização que caracteriza a trajectória da sociedade portuguesa nas últimas quatro décadas. O que poderia ser interpretado como uma sucessão de acidentes aparece, pelo contrário, como o efeito necessário quando existem estas duas modalidades da função de regulação, também existem duas narrativas, uma oficial (com o discurso da modernização e da ambição) e outra implícita (com as práticas da protecção e da apropriação de privilégios em redes de influência). As escolhas efectivamente feitas são as que se integram na narrativa implícita, que nunca é formulada mas que é a concretizada - e, neste quadro, a perda de oportunidades não é realmente um acidente ou um fracasso, é uma escolha deliberada. No entanto, mesmo em relação à narrativa oficial não se justifica querer interpretar a perda de oportunidades como uma série de acidentes, pois a inadequada coordenação no sistema de políticas públicas, só por si, explica que essas oportunidades não chegaram a ter possibilidade de aproveitamento.
 
A observação das oportunidades perdidas, que se sintetizam no gráfico seguinte, confirma que houve continuidade na diminuição do poder nacional e que a tendência acumulada não permite esperar que haja uma recuperação regeneradora porque não existem as plataformas organizativas e os recursos necessários para conduzir uma nova estratégia de modernização.
 
A crise do modelo de desenvolvimento nacional-colonial ocorreu antes de terem sido exploradas e consolidadas as oportunidades que continha, uma vulnerabilidade que se acentuou com a política das nacionalizações, que desagregou plataformas empresariais ainda em processo de construção. Esta insuficiência instrumental teve um papel de primeira importância no modo como foi explorada a oportunidade da integração europeia, na medida em que não existiram os protagonistas estratégicos que pudessem aproveitar o alargamento dos mercados e o acesso a fundos comunitários para propor e concretizar projectos empresariais modernizadores. Pelas mesmas razões de insuficiência instrumental, a política de privatizações não correspondeu a uma correcção dos efeitos das nacionalizações, na medida em que as novas empresas privadas estavam limitadas nas suas possibilidades de inovação e de expansão pelo peso dos encargos com a dívida contraída para a aquisição dessas empresas públicas. Finalmente, a oportunidade oferecida pela integração no sistema da moeda única foi traduzida num efeito de ilusão monetária com a descida da taxa de juro, que promoveu a propensão ao endividamento em lugar de ter sido aplicada no lançamento de projectos de modernização.
 
 
 
Cada um destes pontos críticos de perda de oportunidades não é independente dos anteriores, mas nenhum deles corrige os efeitos negativos dos exemplos anteriores de perda de oportunidades. É por isso que se pode considerar que não se trata de acidentes ou de um efeito do destino: cada um destes casos é a consequência de um exercício distorcido da função de regulação, que amplifica os desvios em lugar de os corrigir.
 
Como seria de esperar, desta evolução em prazo longo, de acumulação de desvios e de ausência ou ineficácia nas correcções, decorre um complexo vectorial de défices que não se corrigem nem se regeneram, antes se amplificam mesmo quando, pontualmente, se pretende tomar medidas para os corrigir.
 
Deste sistema de cinco défices críticos, o mais relevante é o último, na medida em que ele sinaliza a perda do critério estratégico central que deve coordenar o sistema de políticas públicas. Quando há um défice de estratégia de defesa, com crise da formação de capacidades (insuficientes) e com crise de vulnerabilidades (crescentes), está-se perante um campo de possibilidades onde já não existem as condições internas de produção de uma estratégia de regeneração.
 
 
5. Defesa, segurança e emprego da força
 
O campo de possibilidades que caracteriza a situação actual de Portugal tem a sua genética própria, com os seus modelos interpretativos e os seus protagonistas característicos. A sua comparação com outros campos de possibilidade, com outras circunstâncias, com outros sistemas de vulnerabilidades e com outras personalidades, deve ser feita com precauções - porque se poderá estar a comparar o que não é efectivamente comparável, e as soluções que as crises do passado encontraram (sem o que não existiria o actual presente) não são garantia de que também a crise actual encontre solução equivalente. Apesar disso, duas comparações - uma com 1580 e outra com 1893 - parecem interessantes na perspectiva do presente.
 
A primeira referência é de Alexandre Herculano e analisa o período de consolidação do poder de Filipe II de Espanha sobre Portugal, evidenciando o papel do factor patrimonial na formação das vulnerabilidades da defesa nacional.
 
Não é difícil fazer a transposição para o presente: uma sociedade sem vitalidade económica e sem autonomia para produzir uma estratégia de modernização estará predisposta a negociar os seus activos com quem oferecer a remuneração atraente - para só depois descobrir que, transferidos os recursos e as oportunidades, também transferiu a sua soberania e a sua identidade.
 
 
 
A segunda referência é mais próxima, da última década do século XIX, escrita por um ministro das Finanças confrontado com a impossibilidade da sua missão. Uma vez mais, é a componente patrimonial que aparece no primeiro plano, mas agora os activos em venda são os próprios cidadãos, como se já não houvesse mais nada para comercializar.
 
 
Estas duas notas sobre o passado revelam que o abandono do critério da defesa nacional como coordenador do sistema de políticas públicas não é novo na história portuguesa, do mesmo modo que indicam que as crises políticas têm processos genéticos idênticos, mesmo quando as circunstâncias e as personalidades são muito diferentes. Esta verificação em nada altera a avaliação do contexto do presente, mas também revela que mesmo nas situações mais complexas continuam a existir condições de recuperação - desde que se respeite a exigência da coordenação das políticas públicas em torno do eixo estruturante que é constituído pelo critério da defesa nacional.
 
É esse padrão de recuperação de condições de condução política e de produção de estratégias que se sintetiza na figura seguinte.
 
 
Na articulação entre a política e a economia, quando o intervencionismo do Estado está limitado e já não há eficiência nas funções do Estado como produtor, como prestador de serviços ou como promotor da inovação, o objectivo necessário é a reconstituição de plataformas empresariais com bases financeiras estáveis - e que foi o que o intervencionismo do Estado na economia desagregou ou prejudicou, sem ter conseguido criar centros de acumulação de capitais que preenchessem o vazio criado por decisão política. Mas esta reconstituição de centros empresariais já não pode ser feita na perspectiva da economia completa, com representação de todos os sectores numa economia nacional delimitada por barreiras proteccionista. Numa perspectiva realista e orientada para as condições do futuro (que, de facto, já são as do presente), será necessário fazer escolhas estratégicas, seleccionando aquelas especializações na escala do mercado europeu onde as actividades económicas realizadas em território nacional tenham viabilidade.
 
Na articulação entre a economia e a sociedade, entre o que é necessário fazer para que as actividades económicas sejam viáveis e o que é necessário propor para que a sociedade seja mobilizada para os objectivos do futuro (que, de facto, já são os do presente), será necessário reformular as políticas sociais de modo a torná las sustentáveis - isto é, de modo a organizar os dispositivos das políticas sociais em função da possibilidade e já não em função do desejável (que não tem limites e que, por isso mesmo, também não tem futuro). Mas para que este processo de ajustamento ao real possa ser realizado num prazo curto, será necessário reduzir a conflitualidade social, mobilizando-a para objectivos de recuperação e de modernização (como acontece nos períodos que se sucedem a grandes catástrofes).
 
Na articulação entre as condições de motivação e as condições de segurança, a promoção da cultura da viabilidade e da competitividade é o antídoto necessário para corrigir os erros e desvios gerados pelo distributivismo - onde uma parte da sociedade espera beneficiar com a distribuição da riqueza que a outra parte da sociedade deverá fazer crescer, uma relação que habitual­mente termina no prejuízo das duas partes, porque o peso da primeira inviabiliza os projectos de crescimento da segunda, evoluindo-se para uma relação de antagonismo de acusações recíprocas. Para escapar a esta relação perversa de dualismo antagónico dentro da sociedade deverá difundir-se o critério da defesa e segurança como estruturante dos comportamentos adequados - no sentido de que é na relação competitiva com o exterior que se sustenta efectivamente o crescimento e a modernização.
 
Na articulação das condições de segurança com as condições políticas, a reconstituição das capacidades de defesa só será um objectivo atingível depois de reformuladas as articulações anteriores, diminuindo o antagonismo interno e concentrando a atenção nas ameaças externas (sejam elas ameaças de mercado, ameaças militares, ameaças de identidade ou ameaças de soberania). No caso de Portugal, com poucas capacidades que sejam convertíveis em recursos militares, a escala europeia deverá ser o horizonte de referência onde a vontade e os recursos portugueses se poderão integrar. Nesse sentido, a evolução no sentido de um sistema de defesa europeu aparece como um contributo positivo para a configuração, em novos moldes, das políticas de defesa e segurança - também elas viradas para o exterior em lugar de continuarem centradas em lógicas internas (onde as forças militares não têm aplicação e onde as forças de segurança tendem a ser usadas e capturadas para defesa de redes de interesses e de protecções de privilégios).
 
Na apresentação destas articulações e dos seus efeitos na formulação das políticas públicas não há nenhuma selecção de tipo ideológico, nem nenhuma orientação de tipo partidário. Estas articulações e os seus efeitos decorrem da mudança de natureza da forma política (com a passagem do Estado nacional para o Estado pós nacional) e da consequente ou derivada mudança de natureza das políticas públicas.
 
Em geral, estas mudanças implicam que o Estado assuma plenamente aquilo que só está ao seu alcance, porque só o Estado tem os recursos necessários para isso: que seja um Estado estratégico, configurador da sociedade nos seus comportamentos e configurador da economia nos seus sectores. O mais importante recurso de que o Estado dispõe está nas suas próprias funções, muitas das quais têm potência suficiente para estruturarem mercados com oportunidade de crescimento - desde logo no mercado interno, mas com extensão natural para o mercado europeu.
 
Mas a função do Estado estratégico e o seu papel de configurador de mercados de crescimento (ou de mercados de controlo do endividamento) só serão efectivos se tiverem como complemento a cultura da sociedade competitiva, onde o critério do mérito destrua o actual domínio das redes de interesses e protecção, que capturaram posições monopolistas na distribuição de privilégios.
 
A mudança no campo de possibilidades não se consuma sem uma crise de grande intensidade, pela razão óbvia de que não se abandona o que se utilizou no passado sem que se torne evidente na sociedade que se perde mais com a insistência na reprodução do que com a aceitação da incerteza do que é novo. É uma evidência que não é instantânea, não é linear e não tem o seu sucesso garantido. Quanto mais tempo demorar a adaptação, maior será o custo social - mas não se pode acelerar o que tem de obedecer ao ritmo próprio que é determinado pela experiência da sociedade quando confrontada com as consequências dos seus erros.
 
Desta mudança dos campos de possibilidade faz parte a reformulação de noções que antes eram aceites sem ambiguidade, como, por exemplo, o emprego da força. O confronto de vontades que determina a resolução estratégica tinha unidades de análise bem definidas - os Estados nacionais - como tinha capacidades em meios militares e teatros de combate onde o emprego da força obedecia a uma codificação assente numa trajectória histórica longa, mas contínua. Nas circunstâncias actuais, porém, o emprego da força militar obedece a um novo tipo de codificação, com uma gama de possibilidades mais ampla do que era tradicional (desde o nível superior militar até ao nível inferior dos actos terroristas) e com uma integração nas estratégias políticas e económicas muito mais complexa do que acontecia quando os Estados nacionais eram as unidades centrais de decisão e de análise. Neste novo contexto, o emprego da força subordina-se à inteligência da coordenação das políticas públicas, no sentido em que esse é o passo necessário para que a dissuasão seja eficaz, para que as capacidades sejam acumuladas e para que elas sejam convertidas em poder militar flexível, ajustado a diferentes tipos de conflitualidades e de confrontos de vontade.
 
Um campo de possibilidades mais complexo e, em muitos casos, mais ambíguo, exige que os critérios de defesa e de segurança deixem de ser vistos como meros complementos das políticas públicas para, pelo contrário, passarem a ser os critérios estruturantes de todas as políticas públicas. É disso que depende, em última análise, a afirmação da defesa nacional e a promoção da paz evitando se a guerra - o que só se consegue quando se tem a capacidade de vencer a guerra.
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
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2009-01-16
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia