Nº 2424 - Janeiro de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Entrada de Portugal na Grande Guerra
Capitão
Pedro Luís Raposo Ferreira da Silva
Monumentos como os que projectamos, fazem-se com três coisas: Pedra - Bronze - Sangue!
O Sangue já lá está.
Correu à farta em terras de África, em Moçambique e em Angola [...]
Em França, também brotou às golfadas do peito de seis mil portugueses que por lá ficaram. E na Flandres como em África, ele amassará as terras que hão de servir de alicerce à pedra portuguesa, extraída das entranhas do país e ao bronze dos nossos velhos canhões [...]”
PADRÕES DA GRANDE GUERRA
Discurso proferido pelo Coronel Sá Cardoso,
na sessão solene comemorativa do “9 de Abril” em 1919
 
1.  Introdução
 
A “Grande Guerra” teve na história contemporânea portuguesa um significado da maior importância. Guerra total, como chamaria Clausewitz. A primeira guerra tem sobre Portugal reflexos que excedem largamente o campo militar e se inscrevem sobre a própria sociedade global: da evolução económica aos movimentos sociais, da recomposição das ideologias ao próprio destino político do regime democrático1.
 
Consequentemente, e como não podia deixar de ser, a “Grande Guerra” ocupa na memória nacional um lugar de relevo. Memória, que lhe desenhou uma imagem e lhe constituiu uma interpretação. Esta memória foi perpetuada até aos dias de hoje através do discurso oficial. Esse discurso relembra Naulila e La Lys, perpetuando e reactualizando a genealogia heróica portuguesa.
 

Imagens da I Guerra Mundial, Alf. Equiparado Garcez

 
 
É aqui que nasce uma interpretação patriótica conjugada com uma imagem heróica da partici­pação portuguesa na “Grande Guerra”. De facto, esta entra para a já grande galeria dos mi­tos na­cionais, o que veio a influenciar a visão actual que detemos sobre este fenómeno.
 
Quase um século depois, cabe-nos equacionar, hoje, as razões da entrada de Portugal na “Grande Guerra”. Este é o trabalho que nos propomos a aflo­rar.
 
 
2.  A Análise dos Documentos
 
Até à declaração de Guerra, podemos encontrar na correspondência oficial seis grandes temas que, em seu tempo, preocuparam a diplomacia portuguesa e das demais potências.
 
2.1 A Declaração Parlamentar
 
O conflito de 1914-1918 veio por à prova a aliança inglesa. Poder-se-ia duvidar desta devido às negociações secretas que a jovem Republica encetava com a Alemanha. O estado das relações luso-britânicas não se encontrava também no seu melhor devido, entre outras à questão da mão-de-obra indígena em África.
 
Contudo, ao aproximar-se a ruptura entre a Alemanha e a França, Portugal perguntou em Londres a 1 de Agosto de 19142 qual seria a atitude da Inglaterra perante Lisboa no caso de Guerra.
 
O Governo inglês respondeu que desejava que Portugal adiasse a declaração de neutralidade e agradeceu a afirmação que se encontrava firmemente ao lado de Sua Majestade3.
 
Perante o Parlamento, o governo da jovem República declarou ter “feito incessantemente tudo para corresponder [...] aos deveres da Aliança que livremente contraímos e a que em circunstância alguma faltaríamos” 4.
 
Esta declaração trouxe a Lisboa perguntas dos países beligerantes, que pretendiam esclarecer a situação. Vários artigos foram escritos em várias capitais europeias louvando o Governo português. João Chagas, o representante de Portugal em Paris, mostrava-se extremamente solícito em enviar tudo o que poderia incitar Lisboa a entrar na Grande Guerra.
 
Surgem, entretanto, complicações em África. Os alemães invadem Angola, onde causam prejuízos. O governo de Angola prende alemães de quem desconfiava. Na África Oriental foi autorizada a passagem de tropas inglesas através da Beira para a Niassalândia. Isto só por si traduziu-se numa violação da neutralidade, conforme vem estipulada no Art.º II da Convenção Relativa aos Direitos e Deveres das Potências Neutrais no caso de Guerra Terrestre, assinada em Haia a 18 de Outubro de 1907, onde Portugal depositou o instrumento de ratificação em 13 de Abril de 19115.
 
Tecnicamente, a não declaração de Portugal da sua situação, equivalia à neutralidade, isto é, a neutralidade não necessita da declaração. Só a beligerância assim o obriga6.
 
A neutralidade “condicional” era uma atitude tomada de acordo com a Inglaterra, a qual dava origem a equívocos, principalmente em França.
 
A Inglaterra respondia à oferta de colaboração militar em África, dizendo que quando necessitasse de auxílio assumiria então a responsabilidade pelas consequências que adviessem a Portugal7.
 
2.2 Os Pedidos de França
 
Numa guerra de trincheiras, a Artilharia faz quase toda a diferença. A frança, pediu peças de Artilharia a Portugal. A Inglaterra, por seu lado, apoiou o pedido francês. A satisfação deste pedido causou grandes dissabores no seio da jovem, e ainda mal articulada e implementada Republica. Houve um desentendimento entre o Ministério da Guerra e o Ministério do Negócios Estrangeiros. Um queria que com as peças fossem as respectivas guarnições, ao passo que outro foi omisso nessa condição quando anunciou à Inglaterra a entrega das peças. Este é um exemplo marcante do estado como se encontrava a República.
 


 

Teixeira Gomes, em 03 de Outubro de 1914, recomen­dava de Londres que não se prestasse auxílio sem que a Inglaterra invocasse a Ali­an­ça. Ele encontrava um Foreign Office hesitante. “Sendo a Aliança somente defensiva, havia vantagem em torná-la também ofensiva” 8.
Em 10 de Outubro foi entregue em Lisboa um memorando inglês convidando Portugal a entrar na Guerra. O Governo britânico tinha assegurado desde o começo da Guerra, que defenderia as Colónias se fossem atacadas. Se Portugal saísse da neutralidade condicional em que se encontrava, e se colocasse ao lado dos aliados, poderia reforçar os exércitos da frente ocidental europeia. Começaria assim por enviar forças de Artilharia, ao que se seguiriam outras de outras Armas e Serviços. Contudo recomendava que se não cometesse qualquer acto de hostilidade9.
 
2.3 A Convenção Militar
 
Portugal assinou uma Convenção Militar, a qual foi seguida de uma declaração em que “Portugal auxiliaria a Inglaterra com a maior boa von­tade...” 10.
 
O governo britânico respondeu recomendando a Portugal que não declarasse a Guerra nem provocasse a Alemanha até que este se encontrasse preparado militarmente. Teixeira Gomes, em Londres ponderava quão imprudente seria se nos envolvêssemos numa guerra sem a preparação militar necessária, e fazia ver ao Foreign Officea responsabilidade tremenda em que a Inglaterra incorreria envolvendo-nos na guerra...” 11 só porque a França o pedia12.
 
Quanto à assistência financeira, a resposta de Sir Grey não era necessa­riamente clara, razão pela qual o Ministro dos Negócios Estrangeiros português escreveu ao seu homólogo em Londres dizendo desconhecer o estado da missão militar portuguesa desde que esta chegou a Londres.
 
Em Portugal discutia-se a ida ou não de munições de Artilharia pedidas pela França, ao que o Ministro inglês se dizia “desgostoso”, tendo Teixeira Gomes classificado como “lamentável” o incidente.
 
Era notório a preferência do Governo inglês que fosse a Alemanha a declarar a Guerra a Portugal. Assim, evitaria recorrer à Aliança, como justificativo da entrada de Portugal na Guerra.
 
2.4 A Cooperação Militar
 
A 23 de Novembro de 1914 o Governo português foi autorizado pelo Congresso a intervir militarmente no conflito Internacional quando o julgasse necessário13. Este, deu imediatamente início à mobilização de uma Divisão, que viria a ser instruída oportunamente em França.
 

Teixeira gomes frisa a possível autonomia entre a impressão de colaboração voluntária do Exército Português e os Sentimentos reais da Nação14. Ao mesmo tempo, os ataques ale­mães acentuaram-se em África, principalmente em Angola e Moçambi­que, era o casus belli. No entanto convinha a Portugal a entrada na guerra pela mão da aliança britânica, e não por iniciativa própria15.
 
 
Imagens da I Guerra Mundial
 
 
É desta visão que se explica a forma pouco enérgica pela qual se representou em Berlim o descontentamento português perante os “distúrbios” alemães nas colónias. Por seu lado, Berlim protestava veementemen­te contra as violações da neutralidade, e exigia explicações. Lisboa respondia com um silêncio igual à resposta de Berlim às missivas portuguesas16.
 
O Foreign Office não queria dar a impressão que a entrada de Portugal na Guerra derivasse da Aliança. Na altura, Teixeira Gomes afirmava que o Foreign Office pretendia “diminuir a sua responsabilidade por nos ter envolvido na Guerra...” ao que este respondia que tinham sido “as nossa boas e voluntárias disposições de participar activamente na guerra que induziram o Governo inglês a trazer-nos para ela” 17.
 
Em Fevereiro de 1915 o Governo Inglês pediu que se desse passagem às tropas na Rodésia pela Beira, isto sem invocar compromissos anteriores, nem tampouco o precedente de 190018. Portugal satisfez esse pedido. Os protestos alemães não se fizeram demorar, primeiro sobre o atravessamento das tropas, seguindo por um protesto ainda mais veemente sobre a instalação de uma base naval inglesa na Madeira19.
 
2.5 Os Preliminares da Entrada na Guerra - A Apreensão dos Vapores Alemães
 
Como já referimos, o Governo inglês não queria dar a impressão de que a entrada de Portugal na Grande Guerra se devia à Aliança luso-britânica. No entanto este, através de um memorando de 6 de Agosto de 191520, afirma que só poderia dar a ajuda financeira contra a apreensão dos vapores alemães que se encontravam em portos portugueses.
 
A este memorando respondeu o Ministro dos Negócios Estrangeiros português com uma narrativa minuciosa dos acontecimentos, ao que o Governo de Sua Majestade respondeu com um agradecimento pelos valiosos serviços prestados por Portugal à coroa. No entanto, acrescentou que se Portugal declarasse guerra à Alemanha seria sob sua própria responsabilidade e não em virtude de uma obrigação imposta pela aliança.
 
Em 02 de Fevereiro de 1916 o Governo inglês insinuou novamente, agora em Lisboa, que a melhor forma de ajudar a Inglaterra seria utilizar os navios alemães surtos em águas portuguesas.
 
O Governo Português ponderou que as consequências internas e externas deste acto de “dedicação à Aliança” eram tais que era indispensável que o Governo britânico clarificasse que nos propunha esse procedimento.
 
A 17 de Fevereiro o Ministro Inglês em Lisboa pede com instância ao Governo da República, em nome da aliança, para requisitar os navios alemães estacionados em portos portugueses21. Esta foi confirmada de imediato pelo Decreto n.º 2.229 de 24 de Fevereiro de 191622.
 
Tão rápidos foram os agradecimentos ingleses como os protestos alemães. Portugal em 3 de Março responde ao Ministro alemão em Lisboa alegando que os navios se encontravam imobilizados em portos portugueses à dezoito meses, tendo assim Portugal direito de os usar como qualquer outra propriedade particular, uma vez que o comércio marítimo se encontrava paralisado devido à falta de transportes e que os proprietários alemães receberiam indemni­zações pelas suas perdas. O Governo português argumentava ainda que perante a neutralidade portuguesa o acto era justificável.
 
2.6 A Declaração de Guerra
 
A 9 de Março de 1916 a Alemanha declara Guerra a Portugal. Na sua Declaração, este país alega varias justificações tais como, a passagem de tropas inglesas através de Moçambique, a proibição de fornecer carvão aos vapores alemães, as quebras de neutralidade em águas territoriais, a base naval inglesa na Madeira, o fornecimento de material de guerra aos aliados, a violação dos arquivos do Consulado Alemão em Moçambes, expedições militares em África contra a Alemanha, a prisão de oficiais e funcionários alemães, ofensas e injúrias à Alemanha no Parlamento e na imprensa e o confisco dos navios alemães.
 
A Alemanha assim, considera que “este procedimento do Governo Portu­guês revela que este se considera vassalo da Inglaterra e que subordina todas as suas considerações aos interesses e desejos da Inglaterra” razão pela qual a Alemanha “se considera em Guerra com Portugal” 23.
 
 
3.  As Teorias
 
Desde o imediato pós-guerra que o discurso historiográfico, ainda herdeiro do mito patriótico e animado pelas teorias do interesse nacional do primado absoluto da política externa sobre a interna, se procurou responder à questão da nobre entrada de Portugal na Grande Guerra.
 
A teoria tradicional, cuja genealogia remonta à primeira linha do discurso legitimador da versão oficial da época é unanime: Portugal entrou na guerra para salvar as colónias24.
 
Não temos qualquer dúvida que as colónias portuguesas se encontravam ameaçadas, sendo estas objecto de interesse económico e estratégico por parte da França, da Inglaterra e da Alemanha. Por duas vezes antes da guerra, em 1898 e em 1912-13 a Inglaterra e a Alemanha negociaram secretamente entre si a partilha das colónias portuguesas25.
 
Durante a guerra, varias potências se interessaram sobre o destino das colónias portuguesas, entre elas a França, a Itália e a Bélgica. Naturalmente que, de todas as potências, a Alemanha e a Inglaterra eram as mais interessadas. A primeira porque atacou directamente as colónias portuguesas e sublevou as populações indígenas contra a soberania portuguesa26, a segunda utilizando estrategicamente os portos e território como apoio logístico.
 
Temos também a resistência inglesa à entrada de Portugal na Guerra, a qual não foi alheia a vontade política do gabinete britânico de evitar pretensões portuguesas no quadro colonial do pós-guerra, mas também para guardar essas mesmas colónias para jogar na mesa das negociações, caso o desfecho do conflito a isso obrigasse27.
 
Concluímos então que a ameaça às colónias portuguesas era real. A questão colonial foi para Portugal uma condicionante de peso e um factor de mobilização importante. Entrar em guerra ao lado dos aliados, e pela mão da Grã-Bretanha era uma dupla garantia28. Garantia contra as pretensões territoriais da Alemanha e contra as tentações britânicas de jogar com as colónias portuguesas.
 
Verificamos que a tese colonial era, portanto, uma tese verdadeira. Verdadeira mas incompleta. Incompleta porque a questão só por si não explica a entrada na guerra e, sobretudo, não explica a escolha do tipo de intervenção militar, a hierarquização e a escolha dos Teatros de Operações. Isto é, a defesa das colónias não justifica per si a intervenção no Teatro Europeu, como não impunha sequer uma beligerância activa29.
 
A segunda teoria explicativa baseia-se na tese europeia-peninsular, que se desenvolve sobretudo a partir das décadas de 70 e 80 em Portugal. Esta recupera uma linha menos enfatizada do discurso legitimador da versão oficial da época: o prestígio internacional do país e a conquista de um lugar no concerto das nações, acrescentando-lhe o elemento novo do ancestral perigo espanhol. Ou seja, Portugal entra na guerra para sebastianicamente reconquistar o lugar perdido no concerto das nações ao nível europeu e de imediato afastar o perigo espanhol no quadro peninsular.
 
Não existem também sobre este ponto quaisquer dúvidas. A situação internacional de Portugal antes da guerra era difícil e não se modificou durante a guerra. Entre a pressão continental da nossa vizinha Espanha e a componente marítima da nossa Aliança Inglesa, o equilíbrio foi sempre difícil. Este equilíbrio foi agravado por uma aproximação da Inglaterra à Espanha que se verifica no início do Séc. XX. Esta aproximação enfraquecia a aliança e reduzia perigosamente as garantias de segurança da integridade e quiçá, da soberania portuguesa30.
 
Antes da guerra, com conhecimento e assentimento da monarquia espanhola, marcharam de Espanha sobre Portugal incursões restauracionistas monárquicas em 1911 e 191231. Durante a guerra, a vontade de anexação foi, em Espanha, generalizada e o “lobby” anexionista poderoso. O perigo espanhol existia e o medo era tanto mais justificado quando a Inglaterra avisou Portugal, por mais de uma vez, da sua interpretação restritiva das obrigações da Aliança: garantiria as costas e as colónias portuguesas, mas nunca a fronteira terrestre32.
 
Face à neutralidade espanhola, entrar na guerra ao lado dos aliados e pela mão da Inglaterra era uma dupla garantia33. Esta garantia funcionava de duas formas. Entrar na guerra pela mão da Inglaterra enquanto que a Espanha permanecia neutra era uma forma de enfraquecer a aproximação hispano-britânica e, simultaneamente, reforçar a Aliança luso-britânica. Ao mesmo tempo, diversificava estrategicamente o território português, afirmando a sua preponderância na Península Ibérica. Por último, garantia o lugar de interlocutor privilegiado e a primazia no quadro peninsular. Em suma, era o afastamento do perigo espanhol.
 
Em segundo lugar, no quadro europeu, a entrada de Portugal na Grande Guerra ao lado dos aliados dava à jovem República o reconhecimento internacional que detinha de jure, mas que lhe faltava de facto.
 
Tal como a tese colonial, a tese peninsular é também ela uma tese verdadeira, só que muito mais elaborada. É contudo uma tese incompleta.
 
 
 
Imagens da I Guerra Mundial
 
 
Se por um lado explica a beligerância, não explica cabalmente a escolha do Teatro de Operações. Não temos dúvidas que o afastamento do perigo espanhol passava por uma preponderância no quadro peninsular, e que para essa conquista, a diferenciação do esta­tuto internacional era fundamental: face a uma Espanha neutra era necessário um Portugal beligerante. O que permanece inexplicado é a escolha do Teatro de Operações. Clarificado o estatuto internacional, Portugal poderia ter optado simplesmente pela colaboração militar em teatros periféricos bem como a prestação aos aliados dos serviços que Portugal sempre prestara, agora com as vantagens do estatuto diplomático34. A intervenção militar no teatro europeu não acrescentou nada ao objectivo nacional já alcançado35. No entanto, meses depois Portugal mar­chava para a Flan­dres. É isso que con­tinua por explicar. E porquê? Porque o intervencionismo português não se es­gota no plano de or­dem externa, e é por isso que ambas as teses se revelam in­completas. Perante a questão “Porque foi Portugal para a guerra?” as duas teses são necessárias, mas não suficientes.
 
A explicação exige o abandono do mito patriótico e a formulação de uma terceira tese.
 
Desde a implantação da República que esta se debatia com um problema estrutural por resolver: a consolidação e a legitimação nacional do regime. Falhada a integração de todos os portugueses no regime, a República vê-se privada de legitimidade, como também se vê constantemente ameaçada. Ao mesmo tempo, ela debate-se com o problema da divisão interna e da governabilidade.
 
Isto acentuava as clivagens que atravessavam a sociedade portuguesa. Fora do regime tínhamos os monárquicos que se dividiam em anglófilos e germanófilos; no movimento sindical tínhamos socialistas e anarquistas a dividirem-se entre pacifistas e patriotas. No interior do regime os republicanos dividiam-se em radicais e moderados, francófilos e anglófilos, intervencionistas e não-interven­cionistas36.
 
Não temos a menor dúvida que a estratégia intervencionista assumia a defesa de interesses nacionais e objectivos de ordem externa. No entanto também não nos podemos esquecer que a estratégia intervencionista perseguia objectivos de ordem interna. Mais, aproveitou a conjuntura internacional para os conquistar. Perante as clivagens dentro e fora do regime, só uma ameaça externa e uma intervenção militar na guerra em larga escala poderia justificar o sacrifício de todas as falanges da sociedade portuguesa em torno da unidade nacional.
 
Ora, com um governo nacional que conseguisse a unidade dos republi­canos e a união dos portugueses, os democráticos conseguiriam de um só golpe neutralizar as oposições extra-parlamentares e comprometer os moderados no seu projecto político. Assim, conseguiriam a estabilidade governativa que a República tanto carecia.
 
Em síntese, Portugal cooperou discreta e oficiosamente com a Inglaterra e interviu militarmente no teatro de guerra africano para assegurar a integridade colonial. Cooperou aberta e oficialmente com a Inglaterra e com os aliados e assumiu a beligerância para assegurar um lugar no conserto das nações. Assumiu a beligerância activa e interviu militarmente no Teatro Europeu para assegurar tudo isso e muito mais: consolidar e legitimar a República, ao mesmo tempo que reforçava o partido cuja estratégia levou Portugal a entrar na Grande Guerra37.
 
 
4.  Conclusões
 
Eram quatro e um quarto da madrugada de 9 de Abril de 1918 quando estalou o gigantesco bombardeamento sobre as tropas portuguesas. Tinha começado a batalha de La Lys.
 
O resultado militar é conhecido: a destabilização da frente e o recuo das forças aliadas.
 
No total, e com a reserva que os números nos merecem, temos como estimativa do Corpo Expedicionário Português: 1.341 mortos, 4.626 feridos, 1.932 desaparecidos e 7.740 prisioneiros.
 
Para Portugal foi a grande derrota. Depois da batalha, tudo seria diferente, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista político.
 
No plano militar, com as forças que restavam do CEP destroçado, formaram-se ainda três batalhões de infantaria os quais combateram até à assinatura do Armistício integrados nas forças inglesas.
 
No plano político, porém, as consequências foram pesadas. Na festa da vitória, Portugal desfilou ao lado dos aliados, sob o arco do triunfo, mas na Conferência de Paz, esteve longe de conquistar os seus ob­jectivos de guerra.
 
Invocando os números da Guerra, foi relativamente fácil a Portugal ter algumas vitórias diplomáticas na Conferência de Paz. Nestas, o apoio inglês materializado por Lord Balfour38  foi de estrema importância. A ele houve necessidade de apelar, ao ser conhecida a resolução de dar a Portugal apenas um representante na Conferência, ao passo que ao Brasil eram dados três lugares. Com alguma facilidade obtivemos uma representação na comissão que organizaria a Sociedade das Nações e na Comissão dos Portos e Vias de Comunicação. Mas foi necessário de novo publicitar os números da morte para que Portugal fosse representado na Comissão das Reparações.
 
Foi em obter indemnizações pelos danos sofridos e sobretudo defender de cobiças as nossas colónias que se cifravam as diligências nacionais na Conferência. Mas Portugal não entrou na guerra com expectativa de ganhar o alheio, mas antes para salvaguardar o próprio. E o próprio esteve ameaçado nessa mesma conferência pela mão da Bélgica que, à custa do nosso enclave de Cabinda, desejou alargar a comunicação do Congo com o Atlântico.
 
Irónico é, que enquanto a nossa representação se esforçava por fazer respeitar os nossos sacrifícios, em fazer valer o sangue dos nosso mortos, assassinava-se em Portugal o Presidente Sidónio Pais, rebentava a revolução em Santarém e implantava-se a monarquia no norte.
 
 
 
 
Bibliografia
 
AAVV, Imagens da I Guerra Mundial, Lisboa, Exército Português, Maio de 1998.
AAVV, Nova Colecção de Tratados, Convenções, Contractos e Actos Públicos celebrados entre Portugal e as Mais Potências, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1916.
AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, dois volumes.
ALMADA, José de, A Aliança Inglesa, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1947, três volumes.
FERREIRA, João José Brandão, «O Direito Internacional aplicado aos Descobrimentos: da Conferência de Berlim ao 25 de Abril», Revista Militar, n.º 2386, Novembro 2000, pp. 879-940.
MAGALHÃES; José Calvet de, Diplomacia Pura, Colecção Ensaios e Documentos, 2ª Edição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996.
PERES, Damião, Historia de Portugal - Edição Monumental, 1ª Edição, Porto, Portucalense Editora, 1954, seis volumes e dois suplementos.
PRADA, Valentin Vazquez, II Historia Económica Mundial”, Colecção Habitat, Porto, Livraria Civilização Editora, s.d.
TEIXEIRA, Nuno Severiano, «Portugal na “Grande Guerra” 1914-1918: as razões da entrada e os problemas da conduta», in Nuno Severiano Teixeira, Portugal e a Guerra, Lisboa, Edições Colibri, Novembro de 1998, pp. 55-70.
VINCENT-SMITH, John, As Relações Políticas Luso-Britânicas 1910-1916, Colecção Horizonte, 1ª Edição, Lisboa, Livros Horizonte, Junho de 1975.
 
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*      Capitão de Artilharia. Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade Independente. Pós-graduado em Gestão de Recursos Humanos.
 
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 1 TEIXEIRA, Nuno Severiano, «Portugal na “Grande Guerra” 1914-1918: as razões da entrada e os problemas da conduta», in Nuno Severiano Teixeira, Portugal e a Guerra, Lisboa, Edições Colibri, Novembro de 1998, pp. 55-70.
 2 AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, Tomo I - “As negociações diplomáticas até à Declaração da Guerra”.
 3 Idem.
 4 Idem.
 5 AAVV, Nova Colecção de Tratados, Convenções, Contractos e Actos Públicos celebrados entre Portugal e as Mais Potências, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1916.
 6 ALMADA, José de, A Aliança Inglesa, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1947, três volumes.
 7 O memorando de 27 de Agosto de 1914 é particularmente interessante e demonstrativo da posição britânica: “Se o ultramar português fosse atacado por forças alemãs, as forças inglesas atacariam a esquadra alemã. Mas o Governo britânico não está actualmente apto a assumir
   a defesa terrestre das colónias portuguesas nem das fronteiras de Portugal. Por isso é da opinião que seria preferível que Portugal reservasse o (seu) Exército e Armada para a defesa de metrópole [...].
 8 AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial, Op. Cit.
 9 Idem.
10 Idem.
11 Idem.
12 Recomenda-se a leitura atenta e integral do Documento n.º 140 de AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial, Op. Cit.
13 PERES, Damião, Historia de Portugal - Edição Monumental, 1ª Edição, Porto, Portucalense Editora, 1954, I Suplemento.
14 Doc. 163 in AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial, Op. Cit.
15 PERES, Damião, Op. Cit.
16 AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial, Op. Cit.
17 Idem.
18 Recomenda-se a leitura do sub-capítulo 2.5, nota 5.
19 Idem, documentos 236 e 261.
20 Idem.
21 Idem.
22 Repare-se na proximidade das datas: 2, 17 e 24 de Fevereiro.
23 AAVV, Portugal na Primeira Guerra Mundial, Op. Cit.
24 PERES, Damião, Op. Cit.
25 TEIXEIRA, Nuno Severiano, Op. Cit.
26 PERES, Damião, Op. Cit.
27 TEIXEIRA, Nuno Severiano, Op. Cit.
28 Daqui se compreende a importância dada por Portugal em a Inglaterra invocar a Aliança para a entrada de Portugal na Grande Guerra.
29 Não foi visto nenhuma incompatibilidade entre a passagem de tropas por territórios em África e a neutralidade de Portugal. De lembrar que foi o atravessamento da Bélgica que deu azo à declaração de Guerra da Inglaterra.
30 TEIXEIRA, Nuno Severiano, Op. Cit.
31 PERES, Damião, Op. Cit.
32 VINCENT-SMITH, John, As Relações Políticas Luso-Britânicas 1910-1916, Colecção Horizonte, 1ª Edição, Lisboa, Livros Horizonte, Junho de 1975.
33 Volta-se a explicar o interesse português na invocação da Aliança.
34 Essa foi a intenção do gabinete britânico quando se decidiu a invocar a aliança para a requisição dos navios alemães em território português: a beligerância não obrigava à intervenção militar no teatro europeu.
35 TEIXEIRA, Nuno Severiano.
36 PERES, Damião, Op. Cit.
37 TEIXEIRA, Nuno Severiano, Op. Cit.
38 PERES, Damião, Op. Cit.
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