Nº 2433 - Outubro de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
De Novo os Submarinos
Vice-almirante
Alexandre Daniel Cunha Reis Rodrigues
Num artigo publicado no último número da Revista Militar, o General Martins Barrento interroga-se sobre a necessidade de submarinos e, embora nunca chegue a pronunciar-se claramente contra essa aquisição, condiciona-a à “existência de cenários aprovados pelo poder político em que esses meios sejam prioritários em relação a outros igualmente necessários”. Porque o Governo já tomou uma decisão sobre este assunto, assinando um contrato para aquisição de dois submarinos, prolongar o debate apenas me parece ter interesse para dar à opinião pública todas as perspectivas desta questão; é, pelo menos, nessa perspectiva que tomo a iniciativa de comentar algumas das opiniões do General Martins Barrento, portanto, sem qualquer preocupação de estar a explicar mais uma vez o porquê dos submarinos; isso já o fiz, em altura mais oportuna, designadamente, num breve resumo publicado pela revista da Armada, em Junho de 2000.
 
Independentemente de todo o respeito que merece a opinião em questão, como os leitores poderão antecipadamente imaginar, as nossas visões são substancialmente diferentes, o que me parece perfeitamente natural, útil até, e em nenhum caso fazendo parte da “guerrilha” entre os ramos de que o General Barrento se queixa. Aliás, este é um dos meus primeiros pontos de desacordo, por não identificar a existência de propositadas acções de “guerrilha” entre os ramos ou falta de reconhecimento da sua complementaridade e de convergência de esforços. Diferenças de pontos de vista sobre o que devem ser as marinhas ou os exércitos ou sobre que tipo de equipamentos devem ter é o que acontece em todas as forças armadas do mundo, e não é necessariamente guerrilha entre os ramos.
 
A aproximação ao problema recomendada pelo General Martins Barrento é, como se disse acima, através da construção de cenários, o que, à primeira vista, surge realmente como uma ideia interessante. Porém, na minha interpretação, cenários são criações imaginativas de situações futuras a partir da situação presente e a sua aplicação, normalmente, tem lugar principalmente no desenvolvimento de jogos de guerra para o estudo de eventuais crises e não no dos planeamentos de defesa e de forças, que são matérias bem mais abrangentes. Dificilmente o problema se poderá resumir, de uma forma linear, à identificação de uma situação em que determinado tipo de meios seja prioritário sobre todos os outros, quer se trate de submarinos, de helicópteros ou de quaisquer outros tipos de plataformas. A importância de cada tipo de meios não se pode medir apenas em função do seu carácter prioritário no cenário A ou B; caso se queira enveredar pelo caminho dos cenários, haverá sempre que ter também presente a importância que ocupam num alargado leque de possíveis cenários. Em teoria, pode muito bem acontecer até que um determinado meio nunca chegue a ter uma posição de clara prioridade em qualquer cenário mas aparecer em todos numa posição de importância vital, acabando isso por tornar decisiva a sua disponibilidade. Não estou a dizer que esse seja o caso dos submarinos ou de outros meios mas apenas a comentar a metodologia dos cenários para a definição de um sistema de forças. Aliás, no meu entender, a ideia dos cenários parece-me conviver mal com o conceito de que vivemos num momento de “incerteza estratégica em que é difícil avaliar a correcção ou incorrecção das prioridades atribuídas, por muitas vezes, só o tempo permitir julgar do acerto das decisões tomadas”. Devo dizer, porém, que defendo que o sistema de forças seja exclusivamente desenhado em função de actividades operacionais objectivamente definidas, logo liberto de tudo que não contribua para essas finalidades.
 
Outra possível aproximação ao problema é verificar que tipo de utilização tem tido o material presentemente disponível ou, por outras palavras, analisar que tipos de missões têm as forças armadas desempenhado num passado recente, para a partir daí deduzir a importância dos meios existentes e respectivas justificações para serem mantidos ao serviço. É o que também faz o General Barrento ao listar as principais missões em que os três ramos têm estado envolvidos nos últimos 10 a 15 anos. Não seria de esperar, por desnecessário, uma listagem exaustiva se pelo menos as mais importantes lá estivessem. É sob esta perspectiva que me parece incompleto referir que a “Força Aérea tem respondido há longo tempo e continuadamente a uma missão operacional de vigilância no âmbito da NATO e efectuado a patrulha do Adriático quando da intervenção no Kosovo” e depois nada dizer sobre a participação de meios navais, desde 1969 sem qualquer interrupção, na STANAVFORLANT e as oportunidades que Portugal já teve de assegurar o comando dessa força, por duas vezes em períodos de um ano cada, em 1995/1996 e em 2001/2002. A primeira dessas duas oportunidades interessa em especial à discussão deste assunto pois constitui um caso muito típico de imposição de um embargo decretado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em que os submarinos tiveram um papel essencial, como passo a explicar. Na realidade, tratava-se de impor um embargo total à Servia/Montenegro, impedindo, no caso da frente marítima, qualquer movimento de navegação através da linha limite das respectivas águas territoriais. Esta missão exigia uma espécie de cordão de navios à volta das águas territoriais para se oporem a qualquer tentativa de trânsito proibido, mas o elemento essencial do dispositivo era precisamente um submarino a actuar de forma encoberta nas proximidades do principal porto para vigiar movimentos, recolher informações e alertar os navios de superfície sobre quaisquer movimentos suspeitos. Tive oportunidade, enquanto comandante, pelo período de um ano, de uma das forças internacionais que fez esse bloqueio, de passar um dia a bordo de um desses submarinos e ver toda a informação registada, nomeadamente as saídas regulares, para exercícios nas proximidades da costa, das vedetas lança-mísseis e submarinos sérvios o que, de imediato, obrigava os navios de superfície a passarem para o 1º grau de prontidão, em postos de combate. Aliás, não fosse a disponibilidade desse alerta os navios teriam tido que manter permanentemente essa prontidão e não teriam podido ser deixados no regime abaixo, de bordadas, com metade da guarnição em postos e a outra a descansar, por turnos de cerca de seis horas. Recordo que um dos nossos submarinos também participou por dois meses nessa missão. Se, como recomendam alguns especialistas, o critério de avaliação da pertinência em manter ao serviço determinado tipo de meios deve ser feito também em função da utilização que tenham tido num passado recente, então os submarinos portugueses têm pelo seu lado o registo, entre outros, da importante missão no Adriático, quando muitos outros meios do nosso sistema de forças não podem alegar nada parecido e alguns nem sequer qualquer tipo de emprego. Serve este caso para exemplificar que os submarinos não são apenas para “atacar meios navais de potências inimigas que não tenham desenvolvida capacidade de luta anti-submarina, ou para, se houver uma elevada probabilidade de invasão do território nacional, por mar, procurar dissuadir o adversário de tal intento”. Aliás, tanto ou mais importantes que essas situações que o General Barrento refere, são, por exemplo, as missões de controlo de áreas focais de importância estratégica vital para a sobrevivência económica de um país e de recolha encoberta de informações que permitam manter actualizada a caracterização da área de interesse.
 
Não me parece que Portugal possa estar constantemente a clamar que é um país atlântico, virado para o mar e que usufrui de uma situação privilegiada - para fazer valer a sua posição na NATO e na UE - e depois nada fazer para partilhar com os seus aliados os benefícios dessa situação ou, pior ainda, não assumir a sua quota-parte de responsabilidades na protecção dos respectivos interesses. Se, na verdade, estamos a falar de uma área estrategicamente importante - e parece ser consensual que o é - o mínimo a que não nos podemos furtar, para já não falar em garantir o seu controlo, é assegurar o seu conhecimento especializado e ter capacidade de o facultar a aliados e amigos, se requerido. Ora esse objectivo mínimo nunca poderá ser alcançado sem uma componente de sub-superfície que complemente as actividades dos navios de superfície e dos aéreos, através da sua capacidade de recolha de informações de uma forma encoberta. Aliás, se Portugal não tiver esses meios perde por duas vias. Por um lado, pela séria redução na capacidade própria de recolher informações e de manter um panorama actualizado do que se passa na área de interesse estratégico. Por outro lado, por perda de acesso a fontes de informação que nos estão disponíveis apenas pelo facto de exercermos nessa área as funções de autoridade NATO de controlo de submarinos, responsabilidade que seria transferida para outro país vizinho caso não operássemos esses meios. Trata-se de uma importante missão no âmbito da gestão militar do espaço marítimo de sub-superfície de forma a garantir que não há interferências mútuas na operação desses meios nem entre eles e outras actividades submarinas, nomeadamente no campo da investigação científica e prospecção dos mares, quer sejam desenvolvidas a nível nacional quer sob autorização a estrangeiros. Com esta missão sob responsabilidade nacional, através do Comando Naval (Esquadrilha de Submarinos), Portugal é sempre solicitado a aprovar os trânsitos de submarinos e/ou outras actividades na nossa área, recebendo, para tanto, toda a informação de navegação. No respeitante a quaisquer outros trânsitos de submarinos não pertencentes à NATO, Portugal recebe toda a informação disponível na Aliança, para coordenar como necessário as outras actividades.
 
Tem toda a razão o General Barrento quando diz que “Portugal (tal como qualquer outro país, por maior que seja o seu poder) não tem capacidade para, por si só, responder a todas as ameaças e acções que se podem prefigurar”. Também o diz Adriano Moreira quando refere que “Portugal está impossibilitado de garantir isolado a integridade possível dos seus interesses” e António José Telo quando afirma que “os pequenos estados não podem ambicionar hoje ter forças equilibradas e capazes de desenvolver sozinhas todas as funções necessárias à sua defesa e segurança”. Porém, não poder ter um sistema de forças para responder a toda e qualquer eventualidade não deve impedir que se procure que tenha o máximo possível de relevância militar. Trago esta perspectiva à discussão, a propósito da afirmação atribuída a um elevado responsável político, de que os “submarinos são a arma dos pobres”, assunto sobre que gostaria fazer dois breves comentários: em primeiro lugar, para dizer que, contrariamente ao que se possa pensar, não há nada de original nessa afirmação e, em segundo lugar, para esclarecer que normalmente essa afirmação não se relaciona directamente nem com o custo dos meios nem com a sua capacidade de dispensar os outros meios. Tem apenas a ver com o facto de serem o único tipo de meios cujo emprego é possível mesmo não tendo superioridade militar, o que, em princípio, será sempre a situação normal em países de pequena dimensão; é “arma dos pobres” na medida em que representa a única forma precisa de compensar uma pequena dimensão com uma aposta em meios cujo modo de operação seja fundamentalmente de natureza não convencional, isto é, que tenham as suas melhores possibili­dades de sucesso em tácticas que evitem a confrontação directa de forças, situação em que não teríamos vantagem. Aqui entram também as forças de operações especiais, o outro sector em que Portugal, pelas mesmas razões, devia também investir prioritariamente e uma das áreas em que melhor converge a recomendação de “apostar no homem e de procurar obter as tecnologias apropriadas à missão que é preciso cumprir”.
 
Sobre os argumentos para a manutenção de uma capacidade submarina, que o artigo em questão lembra, gostaria de adiantar os breves comentários que passo a expor. O da “escola (saber, experiência acumulados)” só teve validade para lembrar que seria precisa uma decisão oportuna, isto é, que não deveria deixar-se criar um hiato entre o fim dos actuais submarinos e a entrada ao serviço dos próximos, pois isso obrigaria a levantar de novo toda a estrutura de formação de técnicos e operadores, com custos enormes. Contrariamente, ao que se tem tentado fazer passar como argumento pró submarinos, nunca a Marinha disse que eram precisos submarinos para manter a “escola” mas apenas que o calendário da decisão tivesse em conta os custos de possíveis atrasos, o que é bem diferente. Também nunca ninguém argumentou, pelo menos que eu saiba, que os submarinos eram uma boa ideia de obter contrapartidas; como muito bem diz o General Barrento, contrapartidas são uma “forma lógica de tirar algum partido com a aquisição, com vantagem para a indústria nacional”. O que se fez foi apenas dar ênfase à dimensão das contrapartidas exigidas em contrato como forma de amenizar o investimento. Sobre o argumento do submarino “como meio dissuasor de incursões na nossa ZEE (cada vez menos nossa em função do direito comunitário) ”, que, também não é, na minha opinião, um argumento válido; o que tem sido dito - e eu próprio o fiz no artigo da Revista da Armada acima referido - é que perante a crescente sofisticação dos meios que algumas actividades ilícitas passaram a usar, principalmente no âmbito do narcotráfico, os submarinos têm sido um instrumento precioso para colaborar na detecção desse tipo de actividades, hoje com capacidade de não se deixarem apanhar desprevenidas quando apenas vigiadas por processos abertos (navios de superfície e aéreos). Como então também disse na altura, “não será esse tipo de emprego que justificará a manutenção de uma capacidade submarina; é, porém, uma possibilidade de emprego que constitui uma importante mais valia que não deve ser descurada”.
 
Finalmente, o artigo em questão lembra ainda que o prolongamento no tempo de eventuais missões de apoio à paz “obriga à existência de um potencial operacional triplo do desempenhado”. Este assunto tem, no entanto, duas variáveis em jogo: a dimensão e o tempo. Se a dimensão for grande poderá não ser possível garantir um empenhamento de duração longa, exactamente por não ser viável manter em triplicado os efectivos empregues, para rotação entre o local de acção, a situação de reserva e a situação de descanso/aprontamento. Por isso, geralmente, se distingue o tipo de possíveis contributos em função das durações de empenhamento; quanto maiores são estes menor poderá ter que ser a dimensão da força empregue; problema que é comum aos três ramos.
 
Espero que estas considerações me poupem, pelo menos, de eventuais acusações de inércia intelectual.
 
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*      Vice-Almirante na situação de Reserva.
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2009-06-25
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by COM Armando Dias Correia