Nº 2435 - Dezembro de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Discurso do Presidente da Academia Portuguesa da História, na Sessão Solene da Academia das Ciências
Prof. Doutor
Joaquim Veríssimo Serrão
1.  Desejou a Academia das Ciências de Lisboa não deixar sem a devida celebração o 1º centenário do nascimento do General Luís Maria da Câmara Pina, que no ano de 1979 exerceu, com assinalado brilho e distinção, o cargo de Presidente da Academia, por todos chamada, do duque de Lafões.
 
Numa expressão de gentileza que me penhora em extremo, deliberou o actual Presidente, Senhor Professor Doutor José Vitorino de Pina Martins, associar a Academia Portuguesa da História ao espírito votivo da presente cerimónia. Invocou o ilustre historiador da Cultura Portuguesa, como justificação para o amável convite, a circunstância de o saudoso General haver também feito parte da instituição a que tenho a honra de presidir.
 
Da mesma trago para a Academia das Ciências de Lisboa, na pessoa do seu ilustre Presidente, o agradecimento de que lhe somos devedores por tão cativante atenção. Através da minha presença, estreitam-se os laços da solidariedade académica no idêntico propósito da maior valorização da cultura portuguesa e dos seus mais representativos nomes. Tal é a finalidade das Academias que se prezam de, em todas as circunstâncias, enobrecerem o passado português. É de um construtivo diálogo entre os homens de pensamento que o nosso País se mostra carecido, sobretudo possuía nas horas em que fraqueja o sentimento nacional, como o que estamos a atravessar.
 
Cumpre-me lembrar que General Câmara Pina, uma extensa cultura científica, a par da elegância de quem de há muito aprendera a conviver com as humanidades. Escolheu na vida a carreira militar, mas bem assente no rigor das ideias que bebeu na lição dos autores clássicos. Nunca me esquecerei do magistral elogio que traçou do Prof Doutor Mosés Amzalak, no dia 20 de Abril de 1979. Fora o extinto seu antecessor na cadeira nº 2 dos Académicos Efectivos, pelo que cumpria ao General Câmara Pina esboçar o retrato do historiador a quem sucedia. E, acerca do Prof Doutor Mosés Amzalak, terminou com as seguintes palavras a sua oração:
 
“O Prof Mosés Amzalak, durante toda a sua existência prezou a qualidade de vida e manifestou a sua fidelidade aos puros ideais.
Ainda na última Guerra Mundial dirigiu uma organização para o acolhimento de fugitivos israelitas, provenientes sobretudo da Europa Central e graças à sua influência, à sua dedicação, ao seu exaustivo esforço, milhares de pessoas puderam esperançadamente recomeçar a vida, muitos talvez, não a perdem.
Acreditou profundamente no primado do espiritual - e tenho a certeza de que para ele, economista, menos tudo o que se conta era o que contava.
Sentiu bem, aproveitando-me de uma feliz expressão indiana, que Deus é uma luz e que as diferentes religiões são prismas através das quais Deus brilha para nós.
Nunca tergiversou, nunca se ocultou, nunca deixou de proclamar a verdade ao seu sentimento. Os seus olhos fitaram sempre o Alto. Esta foi uma das grandes lições que nos legou.”
 
Falando da prestigiosa figura do General Luís Maria da Câmara Pina, sinto um justificado orgulho em recordar uma figura nacional em tudo merecedora da nossa admiração. Não me debruçarei sobre a personalidade do Oficial-General, porque desse aspecto vai-se ocupar o Senhor General Gabriel Augusto do Espírito Santo, antigo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, e actual director da “Revista Militar”. Sendo ainda um jovem oficial, integrou o gabinete do General Câmara Pina, ao tempo chefe de Estado-Maior do Exército. O orador irá, sem dúvida, dissertar sobre aspectos da vida castrense de grande interesse para a história nacional. Ocorre também a circunstância de o Senhor General Augusto Gabriel Augusto do Espírito Santo ter sido ontem eleito Académico Honorário da Academia Portuguesa da História. Desta forma me congratulo que a palavra seja também concedida a quem continua a ser um fervente admirador das qualidades de quem foi um dos seus ilustres antecessores à frente da “Revista Militar”.
 
 
2.  Guardo a lembrança do Senhor General Câmara Pina entre as mais belas recordações da minha vida. Apenas o conheci em pessoa no ano de 1974, no ambiente de profunda alteração política que ao tempo afectou a vida nacional. Embora não me fosse estranha a sua personalidade, senti um grande fascínio no diálogo que me foi dado encetar nesta Academia das Ciências de Lisboa de que éramos Sócios Efectivos, respectivamente nas Classes de Ciências e de Letras. Mas, o encantador convívio facultado pelo ilustre General aproximou-nos, ao mesmo tempo que me apercebia da vastidão da sua cultura histórica.
 
Querendo dar um novo incremento à história militar portuguesa, tive a honra de propor o seu nome para Académico Correspondente. A eleição ocorreu na Assembleia de 12 de Dezembro de 1975 e revestiu a forma de um justo chamamento. Como militar-humanista, o General Câmara Pina trazia consigo um nome prestigioso, pela obra que levara a efeito no Instituto de Altos Estudos Militares. Era, desde 1969, director da centenária Revista Militar, a cuja manutenção dedicou o mais desvelado carinho. Mas, ao penetrar no Palácio da Rosa, trazia igualmente uma obra inovadora quanto à táctica e à estratégia militares, ambas encaradas na sua vertente histórica e nas implicações científicas e tecnológicas do seu conteúdo.
 
Ao longo de três anos e meio de filiação académica, o General Luís Maria da Câmara Pina confirmou a feliz escolha do seu nome: na assídua presença às sessões de trabalho, nas primorosas falas que estabelecia ao seu redor e na excelente colaboração que ofereceu à vida cultural da Academia. Quatro estudos ficaram como proveitoso testemunho do seu labor, na instituição que em boa hora o chamara.
 
O primeiro, Alguns Aspectos militares de Lamego (1976) em que mostrou a importância da região beiroa-duriense na Reconquista cristã e na formação territorial do País. O segundo, Da personalidade militar de D. Afonso Henriques (1977), onde examinou a estratégia do monarca que conduziu, no ano de 1147, à tomada de Santarém. O terceiro, Considerações em torno da Batalha de São Mamede (1978), na sessão comemorativa do 8º centenário do reencontro que entregou a D. Afonso Henriques o governo do Condado Portucalense. Enfim, a 30 de Novembro de 1979, o novo Académico de Número apresentou um trabalho sobre Camões Soldado, em que elevou o sentimento nacional dos portugueses de Quinhentos. Pretendia o General simbolizar no Poeta que tivera “numa mão a espada e na outra a pena”, todos os portugueses que haviam lutado e sofrido com os olhos postos na grandeza da Pátria.
 
Muitas considerações se poderiam estabelecer sobre a valia desses estudos, em que demonstrou a importância do “terreno” como palco dos aconteci­mentos. Para o General Luís Maria da Câmara Pina, não bastava conhecer as fontes documentais que dão notícia do passado, pois a História encarada numa visão global também se entrelaça com a Geografia, no estudo da “paisagem” e dos “caminhos” que explicam a actuação dos homens no tempo. O engenheiro de formação militar foi assim conduzido para os planos da geo-história, procurando conhecer o sítio dos castelos, os meios de defesa, as redes de comunicação e as técnicas de combate, para trazer ao de cima o quadro militar da nossa história medieval. Vejam-se as suas inovadoras teses sobre o ataque do primeiro Afonso ao roqueiro castelo de Santarém e sobre o relevo da zona de São Mamede, nos arredores de Guimarães. Quem teve o privilégio de o ouvir dissertar nos terrenos de São Jorge, acerca das concepções estratégicas que explicam o milagre de Aljubarrota, jamais poderá esquecer a lição de história viva que então recebeu do General Luís Maria da Câmara Pina, no quadro real, porque geográfico, em que o histórico feito ocorreu.
 
Na sua valiosa biografia de Marechal Carmona (1971), a que deu o subtítulo de Nobre Figura de Militar, o novo académico buscou compreender o mistério da história como narração que ao presente incumbe traçar. E, a propósito do primeiro Chefe de Estado da IIª República, soube reconstituir o itinerário de uma vida consagrada ao serviço da Nação portuguesa, escrevendo:
 
“Quem faz um apontamento de história, obedece quase sempre à tendência inconsciente de dar um encadeamento lógico aos factos e muitas vezes não tem na devida conta as incertezas, as determinantes de acção, os actos inexplicáveis, sem motivação facial, dos personagens em jogo. É sempre muito difícil recrear um ambiente e ver o que nele se move na sua luz verdadeira. Mas no caso do Marechal Carmona qualquer reconstituição beneficia de uma claridade excepcional: a história é límpida”.
 
 
3.  O General Luís Maria da Câmara Pina foi senhor de uma personalidade rica em vários aspectos e que se impõe considerar no seu conjunto. Nele se entrelaçaram o militar de pura estirpe, o cidadão prestimoso, o académico devotado e o amigo exemplar. Do seu convívio dimanava a força mental que os franceses muito justamente apelidam de “racée”, por designar o perfeito equilíbrio da inteligência, da vontade e do afecto. Quero eu afirmar, a justa medida na apreciação das coisas, a tolerância nas relações pessoais, enfim, a expressão do humanismo na mais bela acepção que esta palavra pode conter. Pensando, escrevendo ou falando, quer na largueza das ideias como na elegância do trato, era sempre a marca de um espírito superior que irradiava do General Luís Maria da Câmara Pina.
 
A sua pessoa representou, no campo intelectual, o exemplo concreto de que à carreira das armas não era alheio o culto das humanidades. Formou-se na boa escola da cultura integral, quando o ensino do latim, da matemática e da filosofia constituíam um todo homogéneo na preparação dos alunos. Quando não era desdouro para um cientista embeber-se nos modelos literários e respirar as lições da História. Para captar essa múltipla dimensão, percorreu bibliotecas, visitou museus e participou em congressos, num frutuoso intercâmbio de ideias com muitas figuras de renome internacional. Em longas viagens procurou satisfazer a sua ânsia de conhecimentos e enriquecer o seu espírito. Era, no fundo, um português superior, pelo talento e educação, que em qualquer parte do estrangeiro enobrecia a Nação de que era filho.
 
Graças ao domínio apurado dos principais idiomas, o General Câmara Pina conseguiu ser inglês em Londres, francês em Paris, espanhol em Madrid, mas sem nunca deixar de ser português pela inteligência, e pelo coração. Nos meios políticos, militares e culturais do estrangeiro, pôde ser, em muitas circunstâncias, um grande e digno representante do nosso País. Por isso, com um homem da sua envergadura - patriota e distinto, clarividente e sociável - a imagem externa tinha de ser, realmente, de prestígio e de grandeza. Como foi o período histórico que então foi dado viver a Portugal, quando éramos uma nação pequena em território, mas amada e respeitada no mundo.
 
 
4.  Porque tive o privilégio de merecer a generosa amizade do General Luís Maria da Câmara Pina, podem V. Exas., Senhor Presidente e Senhores Académicos, avaliar o peso da saudade com que o evoco nesta cerimónia votiva. Tratou-se de um convívio nas Academias das Ciências e da História que me encheu por completo o espírito. Quando se escrever a história desta nobre instituição nos últimos trinta anos, será possível confirmar-se que em Dezembro de 1978 lancei a candidatura do ilustre General para a presidência da casa do Duque de Lafões. Além de Académico Efectivo da classe de Ciências, exercia também o cargo de Tesoureiro, onde deu marcadas provas da sua competência e honorabilidade Excluindo a posição de meia dúzia de Senhores Académicos que temiam a escolha de um oficial-militar e, para mais, ilustre Chefe do Estado-Maior do Exército no regime deposto pelo 25 de Abril, a maioria dos eleitores em número de 28, votou no General Câmara Pina, enquanto o Prof Doutor Barahona Fernandes apenas recolheu 8 votos.
 
Ao longo do ano de 1979, a sua presidência, que coincidiu com o II centenário da fundação desta Academia, traduziu-se num ano de excepcional brilhantismo para a Academia das Ciências de Lisboa. Em Novembro de 1979 efectuou-se aqui um Colóquio Internacional, sobre a epistemologia da Ciência, com a participação dos presidentes das Academias da Inglaterra, França, Itália, Espanha e Brasil. Sem esquecer que, no ano de 1978, o General Luís Maria da Câmara Pina ajudou o saudoso Engenheiro Duarte do Amaral a organizar o Congresso dos 750 anos da Batalha de São Mamede. Digamos por fim que a sua morte, ocorrida em 20 de Março de 1980, mergulhou os membros das duas instituições — as Academias das Ciências e Portuguesa da História — numa imensa tristeza que, passados vinte e quatro anos, se transformou numa profunda saudade.
 
Saudade do Português ilustre, do Confrade prestimoso e do Amigo exemplar, no preito de reverência que aqui viemos consagrar à memória do General Luís Maria da Câmara Pina. Numa expressão plena de significado, digamos que a nossa presença se traduz, para com o extinto, no preito de uma sincera e profunda gratidão. Numa época em que quase não contam os serviços prestados a Portugal, que ao menos as Academias das Ciências de Lisboa e a Portuguesa da História, possam mostrar que não esquecem o prestigioso militar, o sólido historiador e o patriota exemplar que foi o General Luís Maria da Câmara Pina.
 
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*      Excertos do discurso proferido pelo Autor na cerimónia.
 
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2009-06-29
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by CMG Armando Dias Correia