Nº 2491/2192 - Agosto/Setembro de 2009
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Reformulação do Conceito Estratégico da NATO: A Experiência e a Mudança. Reordenar a Segurança do Ocidente
General
José Alberto Loureiro dos Santos
1. A NATO, a maior aliança político-militar da História, garantiu a segurança do espaço geográfico da região do Atlântico Norte durante quarenta anos. Unia estados democráticos que se sentiam ameaçados pelo poder militar da União Soviética e satélites, organizados no Pacto de Varsóvia, cujo modelo político e económico de natureza messiânica rejeitavam. O Ocidente geográfico que então contava organizou-se para fazer face a um Leste ameaçador.
 
Tratava-se de uma organização eminentemente defensiva, que integrava uma região geopolítica marítima a que a bacia Norte do oceano Atlântico dava coesão estratégica. O cimento da atitude e da acção conjunta, que envolvia a ajuda mútua em caso de ataque, baseava-se no facto de serem comuns a todos os países membros da organização os interesses vitais relativos à segurança. Os europeus defendiam-se de ser submetidos a uma ocupação que não desejavam; os americanos não queriam ver a Ilha Mundial controlada política e estrategicamente por uma única potência, pois essa situação corresponderia a ficarem em risco perante um potencial de combate que poderia vir a ser superior ao que eles detinham, portanto em condições de os vencer.
 
O que estava em jogo era bem claro - os participantes da NATO sabiam que, estando um deles em perigo, estariam todos. Mas a resposta automática em conjunto, quando um deles fosse atingido, aplicava-se apenas ao que acontecesse na área dos seus territórios, uma vez que esta era a área de interesse primário, portanto aquela cuja segurança interessava preservar.
 
No entanto, como a ameaça feria interesses vitais dos aliados, a comunhão de percepções e de atitudes a que estavam obrigados pelo tratado fundador para a defesa da área NATO tendia a alargar-se face a acontecimentos fora dessa área que pusessem em causa a segurança de cada um, embora os apoios não tivessem a mesma configuração daqueles que o tratado de Washington determinava. Nem sempre se limitavam a aspectos directamente ligados ao emprego de forças militares: poderiam ser da área logística como da operacional, ser concedidos por um ou alguns dos aliados e não pela aliança como um todo, mas o apoio ou concordância política raramente faltavam.
 
O Sul do Atlântico e as respectivas margens não contavam - eram consideradas meras zonas de exploração das potências do Norte, onde obtinham matérias-primas (para fazer a guerra se fosse caso disso), e mercados para os produtos acabados produzidos no Norte. Isto, apesar da constituição da NATO ter lugar no período em que se iniciaram as lutas pela independência, que terminavam normalmente pela retoma dos laços do Sul com o Norte desenvolvido, agora numa relação de dependência neocolonialista que pouco alterava os respectivos pesos estratégicos.
 
2. O braço de ferro conhecido por dissuasão pelo terror terminaria em 1989, o que se deveu principalmente à acção de pressão da Aliança, obrigando o bloco soviético a investir na defesa para garantir a paridade estratégica num nível tão elevado, que a sua economia não conseguiu resistir e esboroou-se. A NATO tinha logrado vencer sem ter tido necessidade de combater, o que, para Sun Tzu, é a suprema arte da estratégia.
 
Sem inimigo, o Ocidente desarmou, particularmente a sua componente europeia. Os países europeus reforçaram os investimentos em áreas não militares e melhoraram o seu modelo social - o famoso modelo social europeu. A reunificação da Alemanha, cuja divisão imposta pelos vencedores da segunda guerra mundial tinha congelado como pólo de poder europeu capaz de disputar a hegemonia na Europa com a Rússia e as potências ocidentais (Reino Unido/França mais EUA), esta reunificação fez ressurgir o espaço geopolítico anterior àquela guerra, que vigorava no continente desde que Bismark a havia unificado, a partir da União económica dos principados alemães conhecida por Zolverein. Como capital de uma Alemanha unida, Berlim considera-se de regresso à sua posição de liderança europeia tradicional e com capacidade de ter uma voz importante a nível global.
 
A NATO avançou para Leste, na exploração do sucesso que tinha alcançado, com a finalidade de encostar a sua área até às fronteiras russas, através da integração dos países do antigo bloco soviético e mesmo de algumas das suas antigas repúblicas. Esta ampliação, que ameaçava fazer desaparecer o espaço tampão entre a Rússia e o ocidente europeu, subordinou-se essencialmente a critérios de natureza política. Não cuidou daquilo que constitui o elemento central caracterizador de uma aliança político-militar - a sua solidez militar.
 
Proclamado o fim da História, com a vitória do Ocidente sobre o Leste, da economia de mercado sobre a economia de direcção central, da democracia sobre a autocracia, tratar-se-ia agora de estender ao planeta o modo de viver caldeado nas heranças culturais gregas, romanas e judaico-cristãs, pelo iluminismo e pela revolução industrial continuada num exponencial desenvolvimento científico-tecnológico que conduziria à globalização.
 
Para ampliar o estilo ocidental a todo o mundo seria indispensável acompanhá-lo das correspondentes forças militares de estabilização. Nestas condições, e para conseguir caminhar com êxito em direcção ao objectivo que os arautos do fim da História preconizavam, foi alterado o conceito estratégico da NATO, passando a Aliança a ter a possibilidade de actuar fora da área a que o Tratado de Washington a vinculara. Transformada numa espécie de “polícia” do mundo, já poderia intervir e projectar forças para qualquer parte onde estivesse em causa a concretização dos seus objectivos, agora milenaristas.
 
3. Mas o fim da guerra-fria, a revolução tecnológica e a globalização também alteraram a situação no que respeitava aos diversos actores que se perfilavam na cena internacional: uns reemergiam dos seus passados recentes de fraqueza estratégica, como a China e a Índia, ou afirmavam-se como potências de expressão global, como o Brasil; outros, como a Venezuela, a Nigéria, a República da África do Sul, a Turquia, o Irão, a Indonésia, etc., afirmavam-se como poderes regionais crescentes; sugiram outros poderosos actores, estatais e não estatais, que se serviam da religião como motivação das suas pulsões agressivas e alimento mobilizador de combatentes e de apoiantes; outros, mergulhados na instabilidade e na insegurança, transformaram-se ou estão em vias de se transformar em estados falhados, que constituem focos geradores e exportadores de ameaças.
 
Por outro lado, apareceram novas potências nucleares, surgiu a ameaça de proliferação de engenhos e/ou tecnologias de destruição massiva; agravou-se a escassez de produtos estratégicos, como os alimentares e energéticos; o planeta viu-se ameaçado pelos efeitos potencialmente catastróficos das alterações climáticas; o ambiente operacional modificou-se, com novos espaços operacionais utilizados como áreas de confronto pelos diversos poderes, na defesa dos respectivos interesses, como o espaço exterior, o ciberespaço e o espaço mediático.
 
É este contexto de grande complexidade que caracteriza o caminho de uma ordem pós-unipolar em direcção a uma ordem internacional multipolar com o poder desequilibrado para a Ásia Pacífico, e a crise financeira e económica a acelerar o processo de transformação da relação mundial de forças, em que nos encontramos. Nesta situação, até os EUA, a maior potência mundial, embora mantendo voz privilegiada na agenda internacional, precisa da colaboração de muitas outras potências para resolver os problemas que os afligem. As interdependências são crescentes e obrigam os actores a entender-se nas questões de natureza global - crises económicas e financeiras, alterações climáticas, proliferação de tecnologias e armas de destruição massiva, ameaças transnacionais como o terrorismo e a criminalidade organizada. O Conselho de Segurança, por si só, já não resolve os problemas. É o tempo dos Gs - G2, G8, G20.
 
Neste novo quadro, a Rússia herdeira da União Soviética, de que tinha sido núcleo gerador e massa crítica, recuperou. Fez parar o alargamento da NATO e criou condições para lhe disputar zonas de influência. Procura recuperar todo ou parte do espaço tampão perdido na sequência da derrota sofrida na guerra-fria. Tira vantagem da dependência que dela têm os países europeus da NATO situados no centro e a Leste da Europa e da existência de populações russófonas em alguns destes estados, muitos com numerosas minorias russas.
 
4. Na actual situação, os membros da NATO, particularmente os seus cidadãos, não têm uma percepção clara de serem objecto de ameaças comuns aos seus interesses vitais que exijam resposta conjunta.
 
Ao contrário da perigosa ameaça do Pacto de Varsóvia durante a guerra-fria que solidificava a Aliança Atlântica, as ameaças que se percepcionam presentemente são indefinidas, relacionadas com acções a partir de actores não estatais (terrorismo e criminalidade organizada) e relacionadas com a escassez de recursos estratégicos, o que afecta desigualmente os diversos países - bens alimentares, minérios estratégicos, combustíveis fósseis.
 
Ameaças que podem exigir respostas militares, mas precisam principalmente de respostas de natureza ideológica, política, económica, social, assim como da actuação dos serviços de informações e das forças policiais. Em vez de combates de elevada/média intensidade no teatro de operações europeu, lutando pelo respectivo território e expulsando o inimigo para fora das suas fronteiras, a Aliança precisará prioritariamente de levar a efeito acções de pacificação das regiões onde os seus membros tenham interesses comuns a defender, o que pode ocorrer em qualquer parte do planeta, mas com perigo acrescido se tiverem lugar na região geopolítica em que os seus estados-membros se situam. Através de operações de todo o espectro de intensidade, com predominância na faixa da baixa/média intensidade, em operações humanitárias e de paz (manutenção e/ou imposição), de contra-insurreição, de recuperação e estabilização de estados falhados, de apoio à governabilidade e ao exercício de controlo do território; eventualmente, conflitos armados de média/elevada intensidade, limitados no tempo e na área geográfica.
 
Operações em que as manobras político-psicológica e económico-social serão prioritárias e terão de ser levadas a efeito com persistência, para o que são necessárias operações militares com a finalidade de permitir a sua execução em segurança, única forma de terem êxito.
 
Na situação presente, sobressaem quatro factores de potencial divisão que podem paralisar ou mesmo desagregar a NATO: 1) São diferentes, por vezes opostas, as percepções dos diversos membros face à necessidade de intervir fora de área, como aconteceu com o Iraque e está a suceder no Afeganistão. 2) Os estados-membros da área Centro/Leste, incluindo a Alemanha, interrogam-se quanto ao seu futuro, como resultado da recuperação do poder russo e do antimíssil dos EUA, e têm perspectivas diferentes entre si e com países membros a Ocidente, sobre como esta questão deverá ser enfrentada. 3) Os efeitos da crise financeira e económica fizeram reviver sentimentos de dúvida dos países de Leste em relação à Alemanha. 4) A dependência energética em relação à Rússia gera posições diferenciadas entre os países europeus: uns tendem a ser insensíveis (os países mais ocidentais); outros reagem com dureza (alguns dos seus vizinhos); e outros estreitam relações (Alemanha e Itália).
 
5. Diversamente do que se verificava no período fundacional da NATO e durante a guerra-fria, o Sul Atlântico, que entretanto se desenvolveu ou fragilizou e assumiu a sua verdadeira independência, passando a contar em termos económicos e políticos, e emergiu como entidade com grande peso estratégico. Mas ainda não atingiu o nível correspondente em termos de segurança, pois tem convivido com situações de instabilidade e estados falhados, que agem como base de actuação de ameaças transnacionais não estatais. Isto pode prejudicar fortemente o progresso conjugado do Norte e do Sul, agora constituindo partes equivalentes da grande região geopolítica do Atlântico: dois continentes no sentido dos meridianos, estendidos de Norte a Sul (americano e euro-africano) separados pelo mesmo “rio”, o Atlântico.
 
Actualmente, o Ocidente que conta já se não limita ao que se encontra localizado geograficamente no hemisfério Norte, nas margens da bacia do Atlântico. Ele alargou-se a Sul, embora se mantenham manchas de subdesenvolvimento e instabilidade, que é necessário fazer prosperar e estabilizar.
 
As bacias atlânticas Média e Sul banham países emergentes cada vez mais desenvolvidos e poderosos, com vastos recursos e constituindo apetecíveis mercados, que são capazes de ombrear com os seus vizinhos do Norte na segurança e defesa de toda a região atlântica, de Norte a Sul. Como: o Brasil, já potência de expressão global, a chamada quinta do mundo pela sua produção agrícola, com indústrias competitivas - a única grande potência, além da Rússia, que é auto-suficiente em combustíveis; Angola, já potência regional, a República da África do Sul, também potência em ascensão, a Nigéria, que dispõe de vastos recursos energéticos, etc.
Aliás, o Norte atlântico, muito dependente em combustíveis fósseis da Rússia e do Médio Oriente, encontra-se em processo de transferência de fontes do seu abastecimento para os grandes produtores do Sul, entre os quais, os países do Magrebe, Nigéria, Venezuela, Angola, etc.
 
Parece poder afirmar-se que, actualmente, o Ocidente geográfico que conta abrange toda a região geopolítica do Atlântico e não apenas a sua sub-região Norte. O que levanta a questão da criação de um sistema de segurança do Atlântico Sul e da sua articulação com a NATO actual.
 
Torna-se urgente criar um sistema de segurança da sub-região do Atlântico do Médio/Sul, para a sua segurança e a segurança do Atlântico Norte. Os países lusófonos podem desempenhar um papel de primeiro plano nesta questão - de dinamizador e de suporte. De facto, os espaços geográficos dos vários membros atlânticos da CPLP são de crucial importância estratégica.
 
O triângulo Lisboa, Brasília, Luanda, tem condições para constituir o quadro em que assente esse sistema de segurança, ancorado ainda nas posições estratégicas relevantes dos restantes países lusófonos atlânticos - Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe.
 
O eixo Lisboa - Brasília poderá funcionar para o Atlântico Médio/Sul como contraponto do eixo Lisboa - Washington para o Atlântico Norte. No século XXI, Portugal deve posicionar-se face ao Brasil potência global, como o Reino Unido se posicionou face aos EUA durante o século XX.
 
É claro que, além dos países lusófonos, o sistema de segurança a criar no Atlântico Sul terá de abranger outros importantes estados que o marginam.
 
6. Portanto, parece evidente a necessidade da Aliança regressar à região geográfica do Atlântico, pondo fim à NATO polícia do mundo. Articulando-a com os sistemas de segurança que urge formar no Atlântico Sul (América do Sul e África), que, juntamente com a América do Norte e a Europa, constituem a região geopolítica cuja estabilidade e desenvolvimento mais nos interessa assegurar. Já que a complementaridade entre as várias sub-regiões atlânticas existe do ponto de vista estratégico tanto como do ângulo económico e político.
 
Neste contexto, a NATO ou OTAN deverá constituir uma aliança de geometria variável com três posicionamentos diferenciados que se complementem:
 
1) região actual da OTAN (NATO), porventura ajustada à comunhão dos interesses vitais de segurança dos respectivos países, no sentido de definir os que poderão ser contemplados pela cláusula de colaboração obrigatória na defesa de um membro atacado, qualquer que seja a natureza da ameaça, incluindo ataques militares de elevada intensidade, o que implica a viabilidade prática de o fazer;
2) grande região geopolítica do Atlântico (articulação dos sistemas de segurança OTAN mais OTAS - Organização do Tratado do Atlântico Sul), cuja estabilidade e desenvolvimento haverá que preservar em prioridade, englobando a área da OTAN e a do sistema de segurança do Atlântico Médio/Sul, através do apoio mútuo entre ambos os sistemas para fazer face a todo o tipo de ameaças;
3) Região fora da área abrangida pela NATO mais SATO, onde qualquer dos sistemas de segurança (do Norte e do Sul) ou dos seus estados membros actuaria, em função dos interesses respectivos, por intermédio de coligações de vontade que poderiam (com a concordância dos aliados) servir-se dos apoios dos próprios sistemas de segurança.
 
Como medida complementar de grande importância e urgência, as relações da NATO com a Rússia deverão ser enquadradas pelo reforço da parceria NATO/Rússia e pela discussão e possível entendimento sobre a proposta de Medvedev para a segurança europeia alargada, da costa Ocidental da América do Norte a Vladivostok, possivelmente no quadro da OSCE.
 
7. Conclusões:
     1) É preciso recentrar a NATO na região geopolítica que lhe interessa - o ocidente geográfico.
     2) Hoje, o Ocidente geográfico que conta deixou de ser apenas a bacia do Atlântico Norte. Alarga-se a toda a bacia atlântica, Norte e Sul.
     3) Portugal, através da sua ligação a Washington e dos laços que o unem aos países do Atlântico Sul, particularmente os da CPLP, com destaque para o Brasil e Angola, tem condições privilegiadas para ser o elo de articulação entre o sistema de segurança do Atlântico Norte e um sistema de segurança do Atlântico Sul cuja implantação tem condições e necessidade de dinamizar.
     4) Os dois sistemas de segurança (NATO e SATO), em articulação, devem fazer face a todo o leque de ameaças que pode perturbar a região geopolítica do Atlântico, o que gerará dinâmicas de actuações conjuntas dos seus membros fora desta região, mas sem que isso seja obrigatório, como se fossem “polícias” do mundo.
 
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* Comunicação à Academia de Ciências de Lisboa, em 25 de Junho de 2009.
**     Sócio Efectivo da Revista Militar.
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General

José Alberto Loureiro dos Santos

Natural de Vilela do Douro, freguesia de Paços, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, assentou praça na Escola do Exército em 1953, e passou à reserva em 1993. Oficial de Artilharia, habilitado com o Curso de Estado-Maior e o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (doutoramento em Ciências Militares).

Cumpriu duas comissões de serviço em África. Como oficial general, desempenhou várias funções, entre as quais, Diretor do IAEM, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Madeira, Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (Tenente-coronel graduado em General de quatro estrelas) e Chefe do Estado-Maior do Exército.

Foi ainda: Encarregado do Governo e Comandante-Chefe de Cabo Verde, Secretário Permanente do Conselho da Revolução, membro do Conselho da Revolução (por inerência, nas funções de Vice-CEMGFA), Ministro da Defesa Nacional (nos IV e V Governos Constituciona

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