Nº 2507 - Dezembro de 2010
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
2009 - As últimas campanhas do Império - Logística
Tenente-general
Adelino Rodrigues Coelho

A Logística Terrestre e a Guerra do Ultramar*

 
“A logística condiciona todas as campanhas e limita muitas”
Eisenhower
 
“A logística nunca ganhou nenhuma guerra mas condicionou muitas”
Adaptado do General Wavell
 
 
I - Generalidades
 
1. A LOGÍSTICA, considerada um “ramo dos conhecimentos militares”, ao nível da táctica e da estratégia, apenas desde os finais da década de cinquenta, teve de ser estudada e regulamentada com mais profundidade, pelo que não admira que quando se iniciaram as guerras do Ultramar o Exército Português não tivesse qualquer regulamento ou directiva que apontasse procedimentos e normas logísticas, de uma forma geral, e muito menos sobre conflitos subversivos.
 
Apesar de tudo, e muito principalmente derivado aos ensinamentos americanos, colhidos durante a II Guerra Mundial, e adoptados por Portugal naquela década, a logística esteve à altura das suas responsabilidades desde o início da guerra e com capacidade para se adaptar às necessidades e características diferenciadas dos três Teatros de Operações (TO). E fê-lo de forma notável, começando por definir “Normas de Execução Permanente (NEP)”, assim se cumprindo a formulação e definição de Logística, que ainda hoje é aceite pelo Exército Português,
“A LOGÍSTICA é o ramo dos conhecimentos militares que tem por finalidade proporcionar às forças combatentes os meios humanos e materiais necessários para satisfazerem em quantidade e qualidade, momento e lugar, as exigências do combate.” (Fig 1)
 
É conveniente esclarecer, e desde já, que só será abordada a LOGÍSTICA OPERACIONAL OU DE COMBATE. No entanto convirá dizer que foi da maior importância a LOGÍSTICA DE BASE, OU DE PRODUÇÃO (aquela que fica na Zona do Interior e que fornece os meios para a Logística Operacional) a qual já existia e estava em condições de operar de forma eficiente e eficaz, tornando-se somente necessário aumentar o seu pessoal ao nível das necessidades para fornecer os recursos de acordo com o crescimento dos efectivos a apoiar. Vale a pena mencionar: OGMA - Oficinas Gerais de Material Aeronáutico; o ARSENAL DO ALFEITE; as OGFE - Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento; a MANUTENÇÃO MILITAR; as OGME - Oficinas Gerais de Material de Engenharia; o INSTITUTO HIDROGRÁFICO; a FMBP - Fábrica Militar de Braço de Prata; a FNMAL - Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras; o LMPQF - Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos; os HM - Hospitais Militares e o SCE - Serviço Cartográfico do Exército. Há que lhes reconhecer a sua enorme importância especialmente para fazer face aos primeiros embates de guerra e o continuado apoio, sempre incrementado, durante todo o tempo que ela durou.
 
É oportuno mencionar que foi mais fácil aumentar o pessoal para responder às necessidades crescentes que reduzi-lo quando terminou a guerra. Ainda hoje os estabelecimentos fabris do exército estão com pessoal em excesso e passado todo este tempo, ainda não foram aplicadas medidas para corrigir a desadequação efectivos versus necessidades.
 
2. O estudo da Doutrina Logística, bem com a sua adaptação à guerra subversiva só foi possível pelo contributo dado pelas Escolas Militares portuguesas, de todos os níveis, porque não era aceitável a adopção da doutrina americana sem ter em conta, as nossas características específicas, essencialmente pelos reduzidos recursos disponíveis e as nossas limitações.
 
E, na generalidade, não há combatentes, nos três TO que não sejam unânimes em reconhecer que o apoio logístico funcionou com flexibilidade e rigor. E em relativamente pouco tempo estava fixada uma doutrina para a guerra subversiva, abrangendo todos os campos, em cinco volumes que viriam a ser adoptados por outros Exércitos, pois foram os primeiros a abordar de forma sistematizada e completa toda a doutrina deste tipo de guerra.
 
 
II - A Organização Logística - Introdução
 
1. Em guerra convencional o Teatro de Operações (TO) está ligado à zona do Interior (ZI), onde funciona o poder político e por uma Zona de Comunicações (ZC), que se deseja a mais curta possível.
 
No nosso caso a ZI era Portugal Continental e a ZC era o espaço que a separava dos Três TO, já que a partir de 1963 nos foi cortada a possibilidade de usar o espaço aéreo de África.
 
2. A ZC terminava em bases logísticas de onde partiam os recursos para o interior do TO. Neste aspecto quem tinha as piores condições era Moçambique pela impossibilidade de criar apenas uma base logística, a que se juntava ainda o facto de ter a maior ZC.
 
3. Nos Três TO, com uma ESTRUTURA incipiente, quase nula DOUTRINA e reduzida padronização de PROCEDIMENTOS regulamentares, a breve prazo se concretizou um importante desenvolvimento, conseguindo-se, nos sistemas implementados, que os RECURSOS ESCASSOS fossem usados com o máximo rendimento e as UNIDADES, de uma maneira geral sentiam confiança no apoio logístico que lhes era prestado.
 
4. Para aquilatar da tarefa basta enumerar as Unidades, Subunidades e Destacamentos que foram enviados para Angola de Abril até ao fim do ano de 1961 (Fig 2):
- 21 Batalhões de Caçadores (Comando, Companhia de Comando e Serviços e 3 Companhias de Caçadores);
- 2 Comandos de Batalhão (Comando e CCS);
- 6 Companhias de Caçadores;
- 1 Grupo de Artilharia;
- 9 Companhias de Artilharia;
- 1 Batalhão de Cavalaria;
- 2 Companhias de Policia Militar;
- 3 Companhias de Sapadores;
- 1 Companhia de Construção;
- 1 Companhia de Automacas;
- 2 Companhias de Transportes;
- 6 Destacamentos de Intendência;
- 13 Destacamentos de Manutenção Militar;
- 3 Destacamentos de Inspecção de Alimentos;
- 7 Depósitos Avançados de Víveres.
 
5. Ao ultimar este capítulo não deixarei de referir mais três pontos:
- Não devemos esquecer o Estado da Índia que começou a ser atacado em 1954 e em 1960 a situação estava estabilizada, de tal forma que a Índia, para conseguir o seu objectivo de a integrar no seu território, teve de montar um grande dispositivo operacional e usar meios próprios de uma guerra convencional;
- Não seria justo deixar de referir os trabalhos levados a cabo pela ZI (a Metrópole), reunindo e enviando os meios necessários para, com oportunidade, apoiar as tropas enviadas para Angola, pois os meios chegaram à frente de combate e as unidades e subunidades foram rendidas ao fim de dois anos que era o tempo da comissão de serviço.
- Repetir, agora e sempre, que o TO de Angola foi o pioneiro na implantação do sistema logístico e os outros TO aproveitaram os ensinamentos para, com a necessária adaptação, os aplicarem.
 
 
III - Os Princípios, a Estrutura e a Doutrina
 
1. Os princípios logísticos que orientaram a acção da Logística consistiram na aplicação dos que eram seguidos e estudados para aplicar na guerra convencional, ainda que devidamente adaptados (certamente que não se falava em Divisões e Corpos de Exército, mas nas PU, desde o Batalhão ao Destacamento). Por isso eles aqui se enunciam:
Princípios (Fig 3)
- Subordinação à Manobra Operacional;
- Unidade de comando;
- Simplicidade;
- Precisão;
- Economia;
- Flexibilidade.
 
2. No começo da segunda metade do século passado foi introduzida, na doutrina logística portuguesa, o conceito de “FUNÇÃO LOGÍSTICA” que substituía a de “Serviços”, mas seria esta que viria a ser aplicada, permanecendo ao longo de toda a guerra. Refira-se, contudo, que algumas funções coincidiam com os Serviços (p.e. “função” transporte e “Serviço de Transportes”).
As Funções Logísticas tinham a seguinte designação:
- função ABASTECIMENTO;
- função EVACUAÇÃO/HOSPITALIZAÇÃO;
- função TRANSPORTE;
- função SERVIÇO TÉCNICO;
- função DIRECÇÃO LOGÍSTICA.
 
3. A actuação dos Serviços resultava de um planeamento centralizado e de execução descentralizada e orientava-se por (Fig 4):
- fazer coincidir, na medida do possível, os limites logísticos com os limites tácticos;
- estreitar a ligação entre os comandantes tácticos e os comandantes logísticos, de forma a obter uma manobra táctica e logística, perfeitamente integrada;
- distribuir os abastecimentos directamente às unidades;
- dotar as unidades do máximo de autonomia logística para fazer face às possíveis interrupções da cadeia de reabastecimento, ou seja uma razoável constituição de reservas.
 
 
IV - Caracterização Logística dos Três TO
 
1. Podem, sintetizar-se da seguinte forma, os três TO, no que respeita ao apoio logístico às forças terrestres, em resultado das respectivas características:
 
2. O TO da Guiné tinha a sua base Logística em BISSAU e os abastecimentos eram levados à frente principalmente por meios marítimos e por avião militar os mais perecíveis e urgentes e como, por exemplo, a evacuação e o correio (Fig 5).
As características principais do dispositivo Logístico eram:
- centralização de todo o apoio em Bissau, em consequência da pequena extensão da Província e ausência quase completa de recursos no interior;
- apoio de área, pelo que toda a Guiné é transformada numa só área de apoio, com a sua base em Bissau, que é a porta de entrada de todos os abastecimentos destinados ao TO;
- dependência total da Zona do Interior, a 3.200Km da Zona de Operações;
- planeamento, cuidado e rigoroso tendo em atenção, além das necessidades de apoio logístico das tropas, as possíveis intermitências nos meios de transporte marítimo no sentido Metrópole-Guiné e a insuficiência dos transportes disponíveis em Bissau para apoio às unidades, tudo agravado pela acção do inimigo sobre as vias de comunicação terrestres e fluviais;
- estabelecimento de níveis elevados quer na Base, quer nas unidades, o que é uma consequência natural do que antes se disse;
- rede de frio extensa e o mais eficiente possível para fazer face às condições climatéricas e à inexistência de frescos por exploração de recursos locais;
- apoio ao desenvolvimento sócio-económico das populações e ao seu reordenamento, que muitas vezes constituiu tarefa de primeira prioridade para o transporte de materiais e reabastecimentos em prejuízo das necessidades operacionais e logísticas das tropas;
- importância das vias fluviais no transporte logístico, através das quais se processavam cerca de 70% dos transportes realizados no TO.
 
3. A organização do apoio Logístico do TO de Angola é, no inicio, fortemente influenciada pelo desconhecido o que conduziu a que os meios de apoio avançassem de qualquer maneira, passando para segundo plano a organização e o controlo desses meios. Mas, apesar disso, essa organização, estrutura e funcionamento rapidamente foram implementados, apoiados numa doutrina que houve que estabelecer.
 
Os factores que influenciaram a organização do apoio logístico na Região Militar de Angola foram:
- necessidade de descentralização a apoio por áreas;
- dispersão dos órgãos logísticos, e a sua consequente vulnerabilidade;
- importância da exploração dos recursos locais;
- utilização da via aérea para a evacuação de indisponíveis;
- órgãos de manutenção do material o mais à frente possível;
- necessidade de um planeamento atempado, dada a distância enorme das fontes de abastecimento ao TO e a escassez de recursos locais e, consequentemente, a manutenção de níveis elevados nos órgãos de apoio logístico (Fig 6).
 
4. O TO de Moçambique era o mais excêntrico em relação à Zona do Interior e tinha uma configuração geográfica e insuficiência de estruturas económicas que maiores dificuldades ofereciam ao apoio logístico.
 
5. Os principais factores inerentes aos meios geográficos e económicos eram;
- configuração geográfica com grande desenvolvimento em latitude;
- grandes distâncias a percorrer e escassez de vias de comunicação terrestres, tudo agravado pela difícil transitabilidade do terreno em extensas áreas, mormente durante a época das chuvas;
- as poucas vias de comunicação terrestre com interesse logístico eram penetrantes; os rios constituíam sérios obstáculos aos movimentos na direcção norte-sul, acrescendo ainda o facto de serem quase inexistentes as obras de arte sobre esses rios;
- grande dependência da actividade das vias marítimas e aéreas;
- fracos recursos económicos;
- as fontes de apoio logístico, situadas em posição exterior ao TO ou, quando no seu interior, com duas áreas restritas, muito afastadas das zonas de combate: Beira e Lourenço Marques; esta ultima cidade e porto de mar, a mais importante, situa-se em posição de máxima excentricidade em relação à área de combate (1.800 Km ao Rio Rovuma);
- carência de infraestruturas civis, sanitárias, comerciais, industriais e de transportes, em quantidade e qualidade suficientes, que permitissem apoio eficaz à acção militar; de um modo geral, essa falta era quase total nas áreas de maior actividade militar, no extremo norte do TO.
 
6. Condicionamentos estruturais
A excentricidade da capital do território (Lourenço Marques) conjugada com as enormes dificuldades para o transporte terrestre (agravadas no tempo das chuvas) e ainda o facto de a guerra ter começado no extremo oposto da capital foram determinantes no sistema de apoio logístico até porque a ZI (Metrópole) só “conhecia” uma base logística que era Lourenço Marques para onde encaminhava a totalidade dos abastecimentos. E como faze-los chegar às tropas em operações? E foi com alguma dificuldade que se conseguiu que fossem reconhecidas outras “entradas” no TO (Beira, Nacala, Porto Amélia).
 
Aqui, também exercia influência negativa a localização do QG, que só com alguma persistência e determinação, se foi deslocando para Nampula (a distância desta a Lourenço Marques é idêntica à de Lisboa a Nice!) (Fig7).
 
7. Resta, por último, acrescentar que para todos os TO, foi decretado que os abastecimentos teriam de ser todos adquiridos localmente ou na Metrópole. Tal trazia graves consequências para Lourenço Marques, que podia obter muitos abastecimentos na vizinha África do Sul.
 
 
V - As Fases do Apoio Logístico a Moçambique
 
1. O apoio logístico em Moçambique evoluiu de maneira a poderem identificar­-se três fases distintas (Fig 8):
- uma primeira fase, que se estende até meados de 1964, que cobre o tempo de paz e a pré-insurreição, caracteriza-se por uma base logística em LMARQUES e incipiente organização logística;
- a segunda fase vai desde o início das operações militares activas até finais dos anos sessenta, com uma base logística que, progressivamente, se desloca de LMARQUES para NAMPULA e organização logística bastante mais desenvolvida no terreno, especialmente no Norte do território;
- a terceira fase começa a concretizar-se em 1970, consolidando-se nos anos subsequentes, quando NAMPULA se assume, por completo, na conduta de todas as operações logísticas e o território é coberto por um dispositivo logístico coerente e perfeitamente ajustado às realidades operacionais.
 
2. De seguida se aprofundarão as características dominantes de cada uma das fases, relacionando-as com o que antes se referiu quanto à caracterização na óptica dos interesses da logística.
 
1ª Fase - O Apoio Logístico até meados de 1964
A Direcção logística (4ª Repartição e alguns Comandos e Chefias) situava-se somente em LMarques, onde também se encontravam os principais órgãos de execução.
 
Destes, os que existiam nos três Comandos Territoriais (Norte, Centro e Sul, com sede, respectivamente, em Nampula, Beira e LMarques) eram em reduzido número e poucos os órgãos que ficavam fora das respectivas sedes.
 
Os efectivos totais no território, naquela data, pouco ultrapassavam os 14.000 homens, um terço dos quais pertencente à guarnição normal.
 
Neste período não havia acções militares pelo que se poderia ter implementado um dispositivo logístico. Mas é evidente que existindo outros dois TO onde havia operações militares activas eles teriam, naturalmente, toda a prioridade. De tal modo assim era que um ano depois (em Maio de 1964) o dispositivo logístico permanecia sensivelmente o mesmo, tendo somente sido organizado o Agrupamento do Serviço de Material, com o seu Comando, a Companhia de Comando e Serviços e a Companhia de Recuperação em LMarques e uma Companhia de Apoio Directo na Beira e outra em Nampula (Fig 9).
 
2ª Fase - O Apoio Logístico de 1964 a finais dos Anos Sessenta
A partir de finais de 1964 e no decurso do ano seguinte instalou-se em Moçambique um dispositivo logístico ainda pouco expressivo, mas já com algum desenvolvimento quando comparado com o que antes existia. Como é natural o maior incremento verificou-se na região de Cabo Delgado e em Nampula. Porém, a direcção logística mantêm-se em LMarques, onde são criados os Comandos das Armas e as Chefias dos Serviços.
 
O estudo da evolução do dispositivo logístico revela que a instalação de novos órgãos logísticos se faz a grande ritmo no Norte do território, na Beira mas muito pouco em Tete. Em Junho de 1967 a direcção logística inicia o seu deslocamento para o Norte, instalando Chefias Avançadas dos Serviços em Nampula. Era a materialização do reconhecimento da necessidade de estar mais perto das tropas em operações para melhor as poder apoiar. Porém, estas Chefias tinham reduzida autoridade, porquanto agiam sob direcção completa dos escalões recuados e principais, que se mantinham em LMarques. Só em 1969 o escalão principal das Chefias (Fig 10) se instala em Nampula, invertendo-se a situação, porque em LMarques ficaram os escalões recuados. A 4ª Repartição do QG, em termos de localização, teve uma evolução semelhante à das Chefias.
 
Os transportes, cuja execução era controlada pela 4ª Rep/QG, continuaram a ser accionados em LMarques até porque era onde havia ligação rádio a Lisboa, o que não acontecia em Nampula.
 
Os materiais e os equipamentos continuavam a ser encaminhados para LMarques, quando o destino da maior parte deles era o Norte. Com este procedimento criavam-se gravíssimos problemas, porque o seu posterior encaminhamento para o Norte era muito difícil e, na época das chuvas, quase impraticável por via terrestre ao que acresce que as embarcações de cabotagem eram poucas e incapazes de transportar alguns tipos de viaturas, por exemplo.
 
Ocorria então a situação inaceitável de existirem viaturas em LMarques e não se poderem transportar para o Norte, onde a carência era extrema. Para ultrapassar as dificuldades foram levadas a cabo duas tentativas na época das chuvas de 1969, uma que resultou num desastre de terríveis consequências e outra que se concluiu com sucesso, mas ao fim de uma marcha de quase um mês.
 
Para a primeira operação foi planeada e organizada uma coluna, no mês de Junho, com viaturas do tipo "Unimog" que tentou a travessia do Zambeze na zona de Mopeia.
 
A zona de travessia era a normal e o modo habitual consistia na utilização de duas jangadas muito precárias.
 
Na circunstância, a jangada de maior capacidade estava imobilizada aguardando reparação do motor com conclusão prevista para o dia seguinte ao da chegada da coluna. Em consequência, o comandante da coluna decidiu a instalação nas margens do rio, a aguardar. No dia seguinte fez-se o carregamento das viaturas e do pessoal que nelas foi instalado, por carência de espaço. Quando a travessia ia sensivelmente a meio a água começou a entrar nos botes que suportavam a jangada que, em menos de um minuto, se afundou numa zona de cerca de dez metros de profundidade. Perderam-se as viaturas e 96 dos cerca de cento e trinta homens transportados.
 
Aproximadamente três meses após o desastre é preparada a segunda operação, uma coluna "especial" integrando somente viaturas.
 
A “especialidade” resultava do percurso que iria percorrer: saindo de LMarques incluía a entrada na República da África do Sul, pela Vila Ressano Garcia, atravessar em direcção à Rodésia e, depois de ultrapassar Tete, seguiu pelo Malawi, entrando novamente em Moçambique, pela região de Nova Freixo rumo a Nampula.
 
A "operação" foi um sucesso, mas exigindo cuidados muito especiais como seja contactos com as autoridades dos países' atravessados, alteração das matrículas das viaturas, condutores trajando civilmente, ausência de rastos, etc.
 
Tudo o que precede demonstra, com suficiente evidência, que a logística da RMM nos finais dos anos sessenta e, em consequência, toda a actividade operacional, estava grandemente dependente do sistema de transportes. A deficiência de que enfermava determinava que:
- o pessoal e o material não chegavam em tempo oportuno ao seu destino;
- o pessoal aguardava, por largos períodos, possibilidade de transporte e, em certos casos, ainda corria graves riscos, decorrentes do mesmo transporte;
- deteriorava-se, perdia-se ou desaparecia muito material.
 
 
3ª Fase - O Apoio Logístico a partir de 1970
A chegada de um novo Comandante Militar a Moçambique em meados do ano de 1969 deu origem à revisão do estudo da situação logística e busca de soluções para os problemas existentes. A identificação dos problemas era relativamente fácil - o primeiro dos quais eram os transportes obviamente - mas a concretização das alterações era bem mais difícil, pelos custos financeiros e pelo tempo necessário.
 
A ponderação dos condicionamentos já antes identificados determinaram que a estrutura logística da RMM fosse reorganizada tendo em atenção três vectores fundamentais (Fig. 12):
- Estabelecer, face às determinantes geográficas e socio-económicas, áreas logísticas bem definidas, com vista à obtenção, nestas, de um certo grau de automatismo e independência na recepção dos recursos, quer locais quer recebidos do exterior;
- Deslocar para Norte todos os órgãos de direcção logística e, progressivamente e com a necessária segurança, as infra-estruturas militares de apoio de base, isto para aproximar os meios em relação às tropas e para estimular e desenvolver as estruturas civis nas áreas de maior interesse militar;
- Melhorar a eficiência dos sistemas de transportes, individualizando este Serviço e dando-lhe condições para um maior recurso aos meios civis, em ordem a libertar os meios militares para as actividades mais directamente relacionadas com as acções de combate.
 
 
VI - Áreas Logísticas. Complexos logísticos
 
1. "ÁREA LOGÍSTICA" - A porção de território, conjunto de unidades e órgãos que, para efeitos de "vida logística", nomeadamente quanto à recepção e evacuação de pessoal e de abastecimentos, capacidade de armazenagem e possibilidade de obtenção de recursos locais dependem da mesma origem geográfica (Fig. 13)
 
2. O conceito, embora subordinado ao dispositivo operacional, era mais directamente relacionado com as origens geográficas dos abastecimentos e com as possibilidades de irradiação dos sistemas de transporte do que com o volume dos efectivos apoiados. A definição teve em particular atenção:
- Possibilidade de receberem directamente do território ou da zona do interior os abastecimentos e de os encaminharem rapidamente, bem como ao pessoal, para as áreas de destino final;
- Possibilidade de obtenção ou de fomento dos recursos locais;
- Capacidade de armazenagem, na origem e nos pontos de destino intermédio, ou fácil desenvolvimento destas capacidades;
- Importância das operações militares em certas áreas de esforço.
 
3. Em consequência, foram definidas quatro Áreas Logísticas, a saber (Fig. 14):
- a PRIMEIRA, com sede em LMarques e abrangendo os distritos de LMarques, Gaza e Inhambane, caracterizava-se pela possibilidade de obtenção de recursos locais diversificados e pela existência de depósitos de base e de equipamento sanitário, oficinal e de transportes com certo desenvolvimento.
Do ponto de vista operacional coincidia com o Comando Territorial do Sul.
- a SEGUNDA, com origem na Beira e compreendendo o próprio distrito da Beira e os de Vila Pery e Tete, caracterizada pela possibilidade de dispor de recursos locais de certo interesse, pela existência de algum apoio oficinal e sanitário e, essencialmente, pelas boas ligações ferroviárias com Tete.
Coincidente com o Comando Territorial do Centro e o Sector Operacional F.
- a TERCEIRA tinha a sua origem no conjunto NAMPULA-NACALA e abrangia os distritos de Moçambique, da Zambézia e do Niassa. Próxima dos órgãos de decisão, o seu desenvolvimento local tinha algum potencial, com relações de proximidade das zonas de esforço militar, dispondo ainda de uma importante transversal ferroviária, entre Nacala e Vila Cabral.
Coincidia, do ponto de vista operacional, com o Sector B.
- a QUARTA, abrangia o distrito de Cabo Delgado e tinha a sua origem em Porto Amélia. A caracterização era essencialmente militar, e daí que fosse basicamente receptora de recursos: grande volume de efectivos e importância das operações militares ali em curso.
 
Em cada uma daquelas áreas existiam órgãos de apoio de todos os Serviços, o que lhes conferia efectivamente maior capacidade de reacção (recebendo directamente e não através de LMarques os meios vindos do exterior) e tornava possível a transferência dos abastecimentos e do pessoal dentro do TO.
 
4. Para atender às necessidades de armazenagem, na base de economia de instalações e de pessoal, definiram-se áreas para o desenvolvimento de verdadeiros COMPLEXOS LOGÍSTICOS, não somente nas origens como nalguns pontos de destino intermédio. Aí se criaram áreas cobertas em função dos abastecimentos a reter ou a movimentar e edifícios comuns para as actividades que o permitiam, nomeadamente as instalações para o pessoal e, dum modo geral, para a vida administrativa e a segurança do complexo.
 
5. Nas áreas logísticas existiam:
Pontos de primeiro destino, que eram as origens das áreas logísticas;
Pontos de destino final (ou de emprego, consumo e utilização). Eram as localidades onde se situavam as sedes das unidades (para a grande maioria do pessoal e do material) e as das subunidades para determinado pessoal, material crítico frágil, frescos e correio.
Pontos de destino intermédio, entre os pontos de primeiro destino e os de destino final, por onde o pessoal e o material terá de circular, especialmente quando as áreas de emprego, consumo e utilização se encontram afastadas dos primeiros.
 
6. Do estabelecimento das áreas logísticas resultou a definição do tipo de "apoio de área", que se caracterizava por:
- todos os órgãos logísticos pertencerem à RM e não às unidades em cuja área estivessem fisicamente implantados;
- a missão desses órgãos logísticos era sempre de apoio e não de reforço, sendo o apoio prestado a todas as unidades e subunidades que, permanente ou temporariamente, estivessem instaladas na área.
 
 
VII - Outros elementos doutrinários
 
1. A execução logística era descentralizada, mas a recolha de dados e o planeamento eram centralizados. Os princípios logísticos definidos incluíam ainda as seguintes preocupações:
- fazer coincidir, na medida do possível, os limites logísticos com os limites tácticos;
- estreitar a ligação entre os comandantes tácticos e os comandantes logísticos, de forma a obter uma perfeita integração da manobra, táctica e logística;
- distribuir os abastecimentos directamente às unidades;
- dotar as unidades do máximo de autonomia logística para fazer face às possíveis interrupções da cadeia de reabastecimento, ou seja, a constituição de adequadas reservas.
 
2. O relacionamento entre os comandantes logísticos e tácticos, em cada nível, obedecia às seguintes regras (Fig. 15):
- todos os comandantes de unidades e formações dos Serviços estavam subordinados, operacional e logísticamente, qualquer que fosse a dependência e localização, ao Comando da Região Militar, através do respectivo Comandante da Arma (Engenharia e Transmissões) ou Chefe do Serviço;
- os Comandantes Operacionais não podiam, salvo em situações de emergência, dispor do pessoal ou do material dos órgãos dos serviços, sem prévia autorização do Comando da Região Militar;
- a responsabilidade pela defesa imediata era dos próprios órgãos e a próxima cabia às unidades operacionais mais próximas;
- obrigatoriedade de ligação mútua entre os comandantes tácticos e logísticos, dentro da mesma área de actuação;
- existência de dois canais de comando de responsabilidades diferenciadas: o canal de comando que se estendia do Comando da RM (QG/4ª Rep), pelo comando de sector ou territorial, comandos de batalhão e de companhia; o canal técnico era próprio do Serviço e estendia-se do respectivo Comando/Chefia até aos elementos de cada um deles que organicamente eram da própria unidade ou subunidade.
 
Deslocamento para Norte de direcção logística, dos órgãos de apoio de base e cooperação civil.
 
3. Apenas no princípio de 1970 os órgãos de direcção logística - Repartição do QG, Comandos e Chefias - ficaram completamente instalados em Nampula e sem escalão recuado. As eventuais funções deste passaram para o Comando Territorial do Sul. Com raras excepções - p.e. a Manutenção Militar - o mesmo sucedeu com os órgãos logísticos de base.
 
4. Um aspecto muito saliente da reorganização foi o grande desenvolvimento das relações civis militares, particularmente nas áreas: do apoio sanitário, do apoio de manutenção e de transportes. Quanto ao apoio sanitário foram celebrados acordos de colaboração mútua com os hospitais civis; idêntico procedimento com empresas civis para o apoio de manutenção sobretudo auto. Quanto à colaboração no âmbito dos transportes ela será evidente quando, de seguida tratarmos a solução dos transportes militares.
 
 
VIII - Sistema de Transportes (Fig. 16)
 
1. Um dos objectivos que foi alcançado consistiu em que o pessoal e o material enviados da ZI não ficassem somente em LMarques, mas que fosse desembarcado e descarregado o mais próximo possível das áreas de destino ou de emprego, ou seja na Beira, Nacala/Nampula, Porto Amélia e Mocímboa da Praia.
 
2. Decorrente da imperiosa necessidade de instalar o Serviço de Transportes, retirando à 4ª Rep o planeamento e o controlo da sua execução, o Comando da RM decidiu atribuir a missão a um dos Batalhões de reforço, que foi desmembrado para guarnecer os órgãos do Serviço criados.
 
3. A estrutura dos meios de transporte disponíveis, militares e civis passíveis de utilização mediante contrato, articulava-se em três sistemas:
- Sistema Primário, ligando as origens das áreas logísticas, dotado de meios de transporte pesados: um navio do Comando naval, navios fretados para o transporte de tropas, aviões civis fretados e, acidentalmente, navios comerciais de longo curso em trânsito e meios de cabotagem.
- Sistema Secundário, partindo das origens das áreas logísticas até aos pontos de destino intermédio (regra geral os Comandos de Sector), onde existiam os complexos logísticos secundários, explorando os seguintes meios: rede ferroviária, aviões civis fretados mais ligeiros que os anteriores, aviões de transporte médio da Força Aérea, em pequena escala, meios rodoviários de grande capacidade de transporte, militares e civis fretados, em alguns percursos.
- Sistema Terciário, ligando os pontos de destino intermédio com os locais de utilização final, dotado de meios mais ligeiros: lanchas de desembarque do Comando Naval, meios de transporte das Secções de Transporte Auto, entretanto constituídas, e aviões ligeiros, civis fretados ou da Força Aérea, mas estes em muito pequena escala pelo seu envolvimento operacional prioritário.
 
4. O sistema de transportes assim constituído permitia:
- que o pessoal e o material chegassem em tempo oportuno aos seus destinos;
- fosse eliminado o considerável período de espera de embarque e de carga;
- aumentasse a segurança, eliminando riscos;
- diminuísse significativamente a deterioração do material, eliminando a sua perda ou desaparecimento;
- se verificasse mais rápido aproveitamento dos meios e se evitasse a sua dissipação, conduzindo a encargos financeiros directos da mesma ordem de grandeza, ou seja, permitisse economia de meios com idêntica eficiência de resultados;
- se libertassem os meios aéreos militares que bem necessários eram para fins operacionais
 
O novo dispositivo logístico estava totalmente implantado em Agosto de 1970.
 
 
IX - Conclusões
 
a. No início do conflito não existia DOUTRINA sobre ORGANIZAÇÃO e ESTRUTURA do SISTEMA LOGÍSTICO na contra-subversão. Porém, tinha-se entretanto firmado uma doutrina logística para guerra convencional, que seguia de perto a doutrina americana, alicerçada na experiência da II Guerra Mundial.
 
b. Em qualquer dos TO a estrutura logística territorial existente, à data do início das operações, era muito reduzida. No entanto foi-se expandindo, para responder às necessidades crescentes, de forma equilibrada, oportuna e com eficácia, para que as unidades operacionais confiassem no apoio logístico que lhes era prestado.
 
c. O Estado-Maior, geral e técnico, do primeiro TO a ser activado - a RMA - foi pioneiro no estabelecimento da doutrina, organização e estrutura do Sistema Logístico na contra-subversão.
 
d. Nos sistemas logísticos implantados nos três TO a DOUTRINA, a ESTRUTURA e os procedimentos implementados fizeram com que, com LIMITADOS RECURSOS obtivessem o máximo rendimento e as UNIDADES sentissem confiança no apoio logístico que lhes era proporcionado.
 
e. O desenvolvimento do apoio logístico em Moçambique, nas décadas de 60 e 70, constitui um exemplo claro e expressivo da evolução da organização e da doutrina logística de apoio às operações militares em guerra subversiva, porque partindo de uma situação de apoio muito incipiente evoluiu para uma solução final em que tudo foi concebido e apoiado num adequado sistema de transportes.
 
f. A organização logística na década de sessenta era totalmente condicionada pela ausência de um sistema de transportes minimamente fiável.
Também a influenciavam negativamente o facto de a direcção logística se situar excêntrica em relação à área das operações e existir grande resistência à sua transferência de LMarques para Nampula.
 
g. O sistema de transportes implantado no decorrer de 1970 foi decidido tomando por base os novos conceitos de "áreas logísticas" e apoiado na existência de três componentes principais: os transportes primários, os secundários e os terciários.
 
h. A direcção e a execução logística respeitavam os princípios próprios da logística, com especial relevo para o da subordinação à manobra operacional, a flexibilidade e a simplicidade.
 
i. Não obstante as grandes dificuldades e as carências de toda a ordem, as manobras operacionais foram sempre apoiadas do ponto de vista da logística. As tropas tinham confiança e acreditavam no apoio logístico, sinal claro de que este cumpria a sua missão.
 
j. Finalmente, importa referir que os elementos doutrinários logísticos sobre o apoio aos teatros de operações nunca, até hoje, foram compendiados, mantendo-se dispersos nas excelentes "NORMAS DE EXECUÇÃO PERMANENTE", produzidas pelas Quartas Repartições e pelos Serviços Logísticos e nunca exploradas com essa finalidade.
 
 
ANEXOS
 
 
Figura 1 - Definição de Logística
 
Figura 2 - Batalhões e Subunidades até finais de 1961
 
Figura 3 - Princípios Logísticos
 
Figura 4 - Actuação dos Serviços
 
Figura 5 - Mapa da Guiné
 
Figura 6 - Mapa da Angola
 
Figura 7 - Distâncias em círculo de Moçambique
 
Figura 8 - Fases do Apoio Logístico
 
Figura 9 - Dispositivo Logístico em 01Jul65
 
Figura 10 - Dispositivo Logístico em 22Jun67
 
Figura 11 - Dispositivo Logístico em 02Mar70
 
Figura 12 - Vectores fundamentais da reorganização
 
Figura 13 - Definição de Área Logística
 
Figura 14 - As quatro áreas Logísticas
 
Figura 15 - Comandantes Logísticos vs Comandantes Tácticos
 
Figura 16 - Sistema de Transportes
 
____________
 
* Contém alguns extractos de trabalhos realizados pelo autor, sobre o assunto. Como elemento de apoio, de referir também os “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”.
**     Vogal da Direcção da Revista Militar.

 

 

 

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by CMG Armando Dias Correia