Nº 2536 - Maio de 2013
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Mulheres militares. Um caso de sucesso?
Coronel
Nuno António Bravo Mira Vaz

Até às últimas décadas do século XX não se punha em dúvida que a missão das Forças Armadas era a defesa militar das unidades políticas, e de que esse mister estava reservado aos cidadãos masculinos. Nem os meios académicos, mais propensos do que qualquer outro a desencadear especulações e debates, se atreviam a questionar esse entendimento.

Embora a presença de mulheres nos campos de batalha estivesse referenciada desde tempos imemoriais, a verdade é que elas não passavam, de início, de lavadeiras, prostitutas ou vivandeiras, que seguiam na esteira dos exércitos e que se especializaram em saquear os despojos da violência cometida pelos homens. Facto curioso, que muito cedo se tornou evidente: os homens sempre procuraram excluir da actividade bélica as suas mulheres, enquanto, pelo contrário, se regozijavam com a presença das mulheres dos outros, visto que os vencedores podiam fazer delas escravas ou trocá-las por dinheiro.

Há cem anos, estrearam-se como enfermeiras. Na II Guerra Mundial já foram muitos milhares de secretárias, condutores-auto, cozinheiras, funcionárias administrativas e analistas de sistemas. Muitas serviram em Corpos Auxiliares, como o WAAF (Women´s Auxiliary Air Force) criado na Inglaterra, em 1939, ou o WAC (Women´s Army Corps), criado nos EUA, em 1943. Na União Soviética foram formados batalhões femininos, que saltaram em pára-quedas e lutaram com bravura; mais de 800 000 mulheres serviram no Exército e, destas, cerca de 120 000 integradas em unidades de combate. Ainda assim, uma gota de água no imenso oceano de militares masculinos, dir-se-á.

Há quem aponte os muitos milhares de mulheres que arriscaram a vida participando activamente em movimentos de resistência um pouco por todo o mundo, e cujo heroísmo foi celebrado por uma vasta literatura memorialista. Mas eram civis que tinham feito uma opção de vida, que operavam isoladamente ou em células minúsculas, que nada tinham de comum com a disciplina espartana das unidades de combate.

Alguns anos depois da II Guerra Mundial, os israelitas formaram unidades de combate femininas e mandaram-nas para o campo de batalha. Um desses pelotões foi quase dizimado e as sobreviventes capturadas pelos árabes. O tratamento a que estes as sujeitaram foi de tal modo traumático que a experiência terminou ali mesmo.

Foi preciso esperar pelos anos setenta do século XX para que tudo começasse, realmente, a mudar. Vários fenómenos, sucessivamente ou em concomitância, contribuíram para uma profunda reformulação das mentalidades. Um deles foi a rápida proliferação dos regimes democráticos no espaço euroatlântico. Em democracia, os direitos e os deveres das mulheres são os mesmos dos homens – e essa equiparação tornou inevitável o ingresso de cidadãos femininos nas Forças Armadas. Em pouco tempo, impulsionado pelo fascínio inspirador do liberalismo, o conceito «mulher-soldado» alastrou para outras regiões do mundo. Em segundo lugar, a aceleração do desenvolvimento tecnológico permitiu construir armamentos de tamanha letalidade que os perigos de um conflito armado deixaram de estar circunscritos ao campo de batalha, criando-se uma «socialização do perigo» que abarca toda a gente – velhos, crianças, homens, mulheres, civis e militares – e que impôs às Forças Armadas uma nova missão, já não centrada na vitória militar, mas no objectivo de dificultar a eclosão da guerra. Quando, perto do final do século XX, o «inimigo capaz de desencadear o holocausto nuclear» saiu de cena, instalou-se no mundo euroatlântico a convicção de que a guerra era cada vez menos provável e, portanto, não havia justificação para manter o serviço militar obrigatório; em poucos anos, porém, constatou-se que os voluntários do sexo masculino não chegavam para cobrir as vagas abertas nas Forças Armadas, e a abertura ao recrutamento feminino tornou-se inevitável.

Actualmente, existem militares femininos em praticamente todos os países desenvolvidos, e em percentagens significativas. Nos EUA, por exemplo, são cerca de 15% do total, mas chegam aos 25% em certas incorporações. Além disso, ganharam progressivamente acesso a todo o tipo de especialidades e hoje desempenham muitas funções de elevada responsabilidade. Nas guerras do Golfo, do Afeganistão e do Iraque, foram à linha de fogo e vieram de lá condecoradas por bravura[1]. A integração das mulheres é um caso inquestionável de sucesso? Há quem diga que sim, há quem recomende prudência na avaliação.

Os primeiros, convictos de que a actual dinâmica de igualização entre homens e mulheres vai acabar em breve com a repartição, por sexos, das funções sociais – militares incluídas –, vão buscar argumentos a um número considerável de estudos feitos «em ambiente operacional», onde o impacte da presença de pessoal feminino na eficiência e na prontidão das unidades militares é avaliado de forma positiva. Uma imensa maioria dos chefes militares envolvidos afirmou que os desempenhos das suas unidades, após a integração das mulheres, se tinham mantido nos padrões habituais. Há mesmo – e esse é um facto novo com um significado excepcional – um número crescente de avaliações positivas acerca do desempenho de mulheres integradas em subunidades de combate.

Os cépticos, por seu turno, recomendam cautela na apreciação das conclusões destes estudos. Em primeiro lugar, porque as tendências reveladas em determinada altura só podem considerar-se consistentes passado algum tempo; em segundo lugar, porque uma avaliação feita em «ambiente operacional» não é a mesma coisa que uma avaliação feita no teatro de operações: em combate, o bom desempenho das unidades militares depende em muito maior grau dos impulsos sócio-psicológicos entre os indivíduos que integram os pequenos núcleos de combatentes do que da qualidade e extensão dos conhecimentos técnicos. Por fim, relativamente ao desempenho de mulheres envolvidas em situações de combate, os cépticos recordam que a esmagadora maioria delas esteve ali, sim, mas contam-se pelos dedos as que estiveram efectivamente debaixo de fogo nas primeiras linhas. Ou eram pilotos de aeronaves, ou faziam parte de guarnições de artilharia, ou exerciam funções administrativas, de secretaria ou de apoio nos sectores logísticos ou da saúde.

A existência de uma escala de requisitos físicos para homens, e outra, menos exigente, para mulheres, não tem ajudado a esclarecer a controvérsia, continuando a ser, pelo contrário, a questão que mais marcadamente a polariza. Os «optimistas» argumentam que é exactamente por existirem entre homens e mulheres diferenças de capacidade física e de habilidade para executar certas acções, que a diferenciação na exigência física proporciona uma autêntica igualdade de oportunidades a ambos os géneros. Os «cépticos», por seu turno, entendem que esta duplicidade representa uma desvalorização leviana das exigências de natureza operacional, que ignora as consequências danosas que daí podem resultar para a prontidão e operacionalidade das unidades de combate. Sempre que um soldado tenha de pedir a um camarada que lhe transporte a arma ou o equipamento, sempre que um soldado, por exaustão, atrase a marcha da sua unidade, sempre que um soldado tenha de pedir ajuda para transpor um muro ou escalar uma vedação, está a prejudicar a operacionalidade e a aumentar os riscos do conjunto. Se em vez de um soldado for um comandante de pelotão ou um comandante de companhia, a situação piora dramaticamente, porque ao reforço do risco físico para os elementos da unidade, acresce a perda, irreparável, do prestígio da cadeia de comando; muito pior do que não ter mulheres em funções de comando operacional, é ter nessas funções mulheres que foram dispensadas de alcançar mínimos de aptidão física essenciais ao exercício do comando. Do ponto de vista dos «cépticos», é a própria democracia que não tolera a existência de regras diferenciadas de admissão ou de avaliação para homens e para mulheres, seja qual for o sector de actividade. Por que razão hão-de existir na Instituição Militar? As vagas abertas nas Forças Armadas têm especificações de ingresso e nada impede que elas sejam preenchidas por homens ou por mulheres, desde que cumpram os requisitos de admissão. É certo que, nos países onde vigora o serviço militar voluntário, é frequente ficarem por preencher algumas das vagas abertas. Mas a admissão administrativa de mulheres, através do abaixamento dos critérios de admissão, não é uma forma adequada de resolver o problema. Os cidadãos dos dois sexos têm de ser incentivados a prestar serviço militar através de formas que não desvirtuem a equidade das provas de admissão e dos critérios de avaliação, e que não ponham em risco a operacionalidade das forças.

A controvérsia sobre a diferenciação tem sido alimentada também pela convicção – generalizada, mas deficientemente fundamentada – de que os conflitos actuais, caracterizados por uma acentuada incorporação de tecnologias, se tornaram muito menos exigentes, do ponto de vista físico, do que os anteriores. Por esse motivo, acreditam os «optimistas», as mulheres estão aí tão à-vontade como os homens. Os «cépticos», embora concordem que isso possa acontecer, inclusivé para um número, por enquanto indeterminado, de especialidades de combate, mantêm algumas reservas quando se trate de soldados que, por terem de enfrentar bombistas-suicidas ou uma diversidade de novos e mortíferos armamentos e técnicas de luta, são obrigados a usar um pesadíssimo equipamento de protecção pessoal. A movimentação nestes campos de batalha exige do combatente – seja homem ou mulher! –, carregado com todo esse equipamento, capacidades físicas e psicológicas acima dos padrões tradicionais, de todo incompatíveis com qualquer tipo de facilitismo. Em combate, o facilitismo paga-se com a vida.

Por isso, homens e mulheres devem submeter-se a um único critério de acesso às Forças Armadas. Um critério rigoroso, que ignore o género de cada candidato e se preocupe apenas com a verificação de que os requisitos psico-físicos estabelecidos são cumpridos. Se mulheres e homens competem para preencher um determinado número de vagas nas Forças Armadas, só devem ser admitidos aqueles que, independentemente do género, preencham a totalidade dos requisitos. E destes, aqueles que, sendo já militares, mais tarde concorram à admissão em armas e especialidades onde o grau de exigência física seja superior, devem continuar a ser submetidos a critérios de idêntico rigor. É isso que acontece já nalguns exércitos europeus: quem quiser pertencer às mais prestigiadas unidades de combate tem de percorrer distâncias variáveis (entre 50 e 80 quilómetros) transportando uma carga de vinte a trinta quilos. Se for capaz, seja homem ou mulher, é admitido. Quem não for, fica de fora.

A crua realidade é que, em certas especialidades, não pode haver dois tipos de combatente. Um reservado aos homens, que têm de cumprir requisitos de admissão considerados imprescindíveis; outro reservado às mulheres, que estão dispensadas de os cumprir na totalidade. A quem serve, e ao que serve, esta diferenciação? Não serve às mulheres; cada vez que uma delas se revelar fisicamente incapaz de acompanhar os restantes elementos da unidade, é toda a comunidade feminina que se desprestigia aos olhos dos camaradas. Não serve às unidades de combate, que perdem objectivamente capacidades e competências, enquanto os riscos operacionais aumentam. Não serve às Forças Armadas, que se arriscam a perder eficiência no cumprimento das missões. Não serve ao país, que investiu na formação e treino de especialistas cujo desempenho operacional fica aquém do desejado.

A recente decisão do Secretário da Defesa dos EUA, Leon Panetta, expressa num memorando aos Chefes dos Ramos, ao abrir às mulheres a integração em especialidades de combate que até aqui lhes estavam vedadas[2], parece apontar um caminho novo, no qual os obstáculos administrativos à igualdade entre géneros ficariam definitivamente arredados[3]. Na realidade, não é bem assim. Vejamos com atenção:

Em primeiro lugar, os Ramos têm de definir, até 15 de Maio de 2013, as especialidades que vão ser disponibilizadas às mulheres, podendo fundadamente presumir-se que não serão todas. É o que pode deduzir-se da declaração conjunta do Secretário do Exército, John M. McHugh, e do CEME, General Raymond T. Odierno, na qual, depois de se congratularem com a eliminação da Direct Ground Combat Definition and Assignment Rule de 1994, informam que “(...) Nos próximos meses continuaremos a analisar os padrões ocupacionais independentemente do género, bem como a abertura de ocupações adicionais para as mulheres militares, numa perspectiva que garanta a preservação da prontidão, da coesão e do moral (...).” Nos Marines, a percepção é semelhante. O Comandante do Corpo, o General James F. Amos, disse numa entrevista que, nos próximos meses, tem a intenção de colocar “(...) cerca de 40 mulheres em dezanove batalhões de seis diferentes tipos: artilharia, blindados, assalto anfíbio, engenharia de combate, assalto de combate e defesa aérea a baixa altitude. Os batalhões de Infantaria, no entanto, continuarão interditos às mulheres (...).

As mulheres servirão em especialidades para as quais foram treinadas – administração, logística, comunicações, apoio e transportes auto, mas não em informações – e serão colocadas em órgãos de comando e estado-maior dos batalhões. Trata-se, portanto, dum passo no sentido da linha da frente, que anteriormente lhes estava vedada, mas ainda longe da ponta da lança (...)”[4].

Em segundo lugar, a alteração tem de ser aprovada no Congresso, o que não é certo. O congressista republicano Duncan Hunter, um veterano do Iraque, já considerou que “(...) a única questão que deve colocar-se numa altura de mudança como esta é: ‘será que a mudança aumenta a eficácia das Forças Armadas?’ Eu penso que a resposta é negativa”.

Terceiro, é entendimento generalizado que o acesso a certas especialidades (Operações Especiais, Navy Seals e Delta Force, entre outras, só estarão disponíveis – se vierem a estar! – mais tarde).

Last but not least, as mulheres mostram uma apetência moderada pelos postos de combate. Enquanto a especialista Brittany McGee, que serviu numa subunidade de artilharia da 25.ª Divisão de Infantaria no Afeganistão, declara que “não me importaria de, no futuro, servir numa função de combate”, a sargento Shawnee L. Rollins, que serviu na mesma unidade, é de opinião que apenas metade das mulheres estaria interessada em mudar para funções de combate. E acrescenta: “Um bom número de funções de combate tem grandes exigências físicas, fora do alcance das mulheres normais. Em meu entender, o que é importante é certificarmo-nos de que quem for incumbido dessas funções, independentemente do género, seja o mais apto a cumprir a missão e a regressar vivo.”

É muito provável que os passos agora anunciados para as Forças Armadas dos EUA sejam, em futuro mais ou menos breve, adoptados pelas Forças Armadas dos países euroatlânticos. Se essas alterações se concretizarem em Portugal e forem acompanhadas da mesma dose de prudência que se detecta nos chefes militares e civis americanos, isto é, se o bom senso estiver presente, se se perceber que ainda não chegou a hora da abertura incondicional – e em condições desiguais! – das subunidades de combate às mulheres militares, só haverá motivos para nos regozijarmos.

É possível que a evolução dos armamentos, das tácticas, dos equipamentos e das missões, transformem progressivamente os campos de batalha em cenários inteiramente apropriados para a actuação das mulheres. É possível também que o treino físico, a evolução biológica e a vontade das mulheres as levem a padrões de aptidão física cada vez mais parecidos com os dos seus camaradas masculinos. Nessa altura, está chegada a hora de encontrar uma resposta clara para as derradeiras questões:


As cumplicidades de toda a ordem que se estabelecem entre os elementos masculinos das unidades de combate, as quais são, como bem se sabe, um factor essencial no moral colectivo, no ardor em combate e no espírito de missão, são extensíveis, nos mesmos níveis, aos elementos femininos?


Os sentimentos novos que a presença das mulheres pode desencadear, afectam ou não o rendimento operacional e o espírito de corpo das subunidades?


Finalmente, podem as mulheres integrar-se, sem quebra do rendimento colectivo, em subunidades sujeitas durante meses consecutivos a contactos de fogo com o inimigo, em ambiente de grande exigência psico-física?

 


[1] De acordo com o Pentágono, 292 000 mulheres, num total de 2 500 000 militares americanos, serviu em zonas de combate nas guerras do Afeganistão e do Iraque. Daquelas, 152 morreram e 958 foram feridas em combate.

[2] O Secretário da Defesa Les Aspin, num memorando (1994 Direct Ground Combat Definition and Assignment Rule) aos Chefes militares, em Janeiro de 1994, determina que, tendo em consideração as recomendações do Comité das Forças Armadas, a partir de 1 de Outubro desse ano:

A.
“Regra. Os militares podem assumir todas as funções para as quais possuem as devidas qualificações, com excepção das mulheres, que devem ser excluídas das unidades de combate abaixo do nível de brigada que tenham como missão primária o empenhamento em combate directo terrestre, tal com definido abaixo.

B.
Definição. Combate directo terrestre consiste em entrar em contacto com o inimigo no terreno, utilizando armamento individual ou colectivo, em condições de exposição a fogo hostil e havendo alta probabilidade de contacto físico directo com as forças inimigas (...)”.

Com base nesta determinação, cabe aos Ramos das Forças Armadas fixar as políticas apropriadas, bem como especificar as restrições que continuam em vigor, designadamente:

“–  as relacionadas com os custos de áreas adequadas para o descanso e a privacidade das mulheres;

 –   as relacionadas com missões de reconhecimento de longo raio de acção e com missões das Forças Especiais;

 –   as relacionadas com funções muito exigentes do ponto de vista físico, as quais excluem, naturalmente, a vasta maioria das mulheres ao serviço (...)”.

[3] Em 29 de Janeiro de 2013, o Secretário da Defesa dos EUA, Leon E. Panetta, com o acordo dos Chefes dos Ramos, rescindiu a Direct Ground Combat Definition and Assignment Rule de 1994, oferecendo às mulheres novas e maiores oportunidades de carreira. Ao abrigo da nova legislação, a implementar até janeiro de 2016, estima-se que as mulheres passem a ter acesso a 237 000 funções que anteriormente lhes estavam interditas.

[4] In http://www.nytimes.com/2012/04/25/us/marines-moving-women-toward-the-frontlines.html?_r=0

 

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2013-10-30
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by COM Armando Dias Correia