Nº 2544 - Janeiro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas: Guerra Aérea Remota - A revolução do poder aéreo e as oportunidades para Portugal

Guerra Aérea Remota

A revolução do poder aéreo e as oportunidades para Portugal

 

Esta obra é o resultado da investigação conduzida pelo Tenente-coronel João Vicente, ao longo dos últimos quatro anos, no âmbito do doutoramento em Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Reflexão sobre o poder aéreo e sobre a Estratégia, o autor não se satisfaz em explicar os meandros da guerra aérea remota conduzida pelas grandes potências, em particular pelos Estados Unidos da América, mas evidencia qual será o modelo a ser seguido, no futuro próximo, por todos os Estados, incluindo Portugal.

O nosso país tem já em curso um programa de investigação, o PITVANT (Projeto de Investigação e Tecnologia em Veículos Aéreos não Tripulados), com o objetivo de dotar Portugal com os Sistemas Aéreos Não-Tripulados ou UAS (Unmanned Aircraft Sistems).

Convém distinguir os conceitos de UAV (Unmanned Aerial Vehicle) e de UAS. Neste último sobressai o termo “sistema”, que pressupõe a existência de uma panóplia de componentes, entre os quais a plataforma aérea que é o UAV, ou seja, uma aeronave que opera sem tripulação a bordo, operada de forma remota e reutilizável.

A plataforma pode ser dotada com diferentes tipos de sensores eletro-óticos, de movimento, de luz ou de radiações e alberga ainda o relé de comunicações e o armamento constituído por mísseis ou bombas guiadas por GPS ou laser, tudo isto conforme o tipo de missão.

O elemento humano é composto pelo piloto (operador), pelo operador de sensores (analista de informações), pelo comandante de missão e pelo pessoal de manutenção. O sistema é completado pela estação de controlo terrestre, pelos sistemas de comunicações e pelo apoio logístico para transportar, manter, lançar e recuperar o UAV.

Os UAS surgem como a quarta grande modalidade da guerra aérea.

A primeira evolução teve lugar com a introdução do bombardeamento estratégico, como alternativa à guerra das trincheiras da I Grande Guerra. A segunda, ocorreu com o advento do bombardeamento nuclear. A terceira, com o surgimento do armamento de precisão e com o incremento do apoio aéreo às forças terrestres. Os UAS surgem como uma evolução natural para um novo paradigma de guerra aérea, feita a distâncias cada vez maiores, com risco irrelevante para os operadores e com danos colaterais reduzidos.

Esta obra é, portanto, um registo notável sobre a emergência da guerra conduzida à distância e de forma unilateral, discreta, sem risco, assética, letal para o inimigo e com respeito acrescido pelo princípio da distinção.

Com o gradual afastamento humano do espaço de batalha, a guerra aérea remota passou a ser conduzida de um “bunker” com ar condicionado, a milhares de quilómetros de distância do impacto dos projéteis. Assiste-se, assim, à degradação do monopólio humano na condução guerra, com a alteração qualitativa do desempenho dos militares que passam de combatentes no terreno a distantes executantes, a supervisores e, eventualmente, no futuro, a simples observadores.

Os UAS introduziram a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo, ou sobre uma determinada área, durante mais de vinte e quatro horas, executando tarefas de ISR (Intelligence, Surveillance and Reconnaissance) e transportando armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de oportunidade, sem qualquer risco para o piloto e outros operadores, que a grande distância visionam o espaço de batalha num monitor de computador e em imagens de alta definição.

Numa perspetiva meramente economicista, o uso de UAS traduz-se na redução de custos significativos em relação aos efeitos desejados, designadamente em vidas humanas e equipamentos e também no decréscimo dos custos de formação e treino dos pilotos tradicionais.

Circunstâncias também sedutoras, tanto do ponto de vista político como militar, porque transmitem uma falsa impressão de que o fenómeno guerra deixou de ter custos expressivos.

Passou a ser possível travar uma guerra sem ter que lidar com alguns dos tradicionais e severos constrangimentos, tais como enviar soldados, equipamentos e logística para o terreno. E isto porque um dos fatores mais dissuasores para se fazer a guerra tem sido o elevado custo para a sociedade, traduzido em “sangue e tesouro”. Ao reduzir-se o derramamento de sangue e ao limitar-se a quantidade de perdas materiais, ao combater-se de forma encoberta, longe da vista da sociedade e dos “media”, torna-se a guerra menos dura, menos exigente e socialmente mais aceitável.

Circunstâncias bem recebidas nas sociedades avançadas pós-industriais em que as famílias são pequenas, em que o recrutamento militar obrigatório foi eliminado, onde já não há declarações de guerra, em que os orçamentos de defesa já não são uma prioridade, que demonstram uma tolerância reduzida para a existência de baixas em combate e em que a remoção dos combatentes humanos do “espaço de batalha” se afigura como a eliminação dos derradeiros custos políticos e sociais para se iniciar um conflito.

Da multiplicidade de missões que têm sido atribuídas aos UAS, ressaltam as chamadas “execuções seletivas” ou morte intencional de indivíduos que dificilmente possam ser capturados, ou que se encontram fora das zonas oficiais de combate e que tomam parte nas hostilidades. Geralmente, são operacionais inimigos, especialistas em explosivos, servindo em campos de treino ou em posições de liderança, com capacidades para planear e concretizar ações terroristas.

Enquanto as Forças Armadas, em tempo de guerra, têm legitimidade para desenvolver este tipo de operações, desde que respeitem os princípios da distinção e da proporcionalidade, nomeadamente, quando exista consentimento e colaboração dos Estados onde são consumados os ataques, já o emprego de UAS por outras agências governamentais, tem levantado sérias dúvidas e grande polémica.

O autor, no caso da CIA americana, refere que a doutrina tem encontrado um amplo consenso, tratando os seus agentes como combatentes ilegítimos, porque não portadores de uniforme ou insígnias militares, mas participando nas hostilidades ativas e empregando força letal de forma encoberta. Como tal, não enquadrados nos normativos das Convenções internacionais, nem nos Costumes da guerra.

O uso desta modalidade de emprego da força tem sido justificado como resposta legítima às ameaças terroristas e aos desafios da “Guerra Irregular”, mas ameaça subverter o enquadramento legal aplicável aos conflitos armados, convertendo-se em formas de execução extrajudicial, sem a existência de qualquer processo prévio de âmbito forense.

Desengane-se quem pensar que esta obra se esgota em considerações de natureza técnica, operacional, estratégica e doutrinária mais próximas dos meios académicos das escolas militares. Porque a sua grande e última contribuição reside na análise detalhada das consequências da guerra aérea remota na desumanização dos conflitos, nas relações internacionais, na política, no direito internacional, na moral e na ética e na dimensão social e cultural.

Envolvendo diretamente os políticos, militares e cientistas, o fenómeno da guerra fica por vezes afastado das preocupações primeiras do mundo académico e das Ciências Sociais. Por isso, a importância da abordagem multidisciplinar, desenvolvida pelo autor.

“Ir para a guerra” foi sempre um processo devidamente ritualizado, em que se pressupunha a assunção do risco da própria vida e que implicava a separação dos entes queridos e dos espaços paroquiais em que se vivia, que se trocavam pela exposição aos horrores do combate e pela dialética do “matar ou ser morto”. A operação remota dos UAS tornou mais difícil distinguir entre “ir para a guerra” e “ir para o trabalho”. Os operadores de UAS, findo o seu turno de oito horas, podem deslocar-se à escola para recolher os filhos, passar pelo supermercado e jantar tranquilamente em família.

Esta nova geração de “guerreiros de consola” transformou a conflitualidade numa modalidade de “guerra sem virtudes” isenta de coragem e heroísmo, poupada às condições austeras do combate e privados do sentimento de camaradagem e de pertença, característicos das unidades militares que são submetidas aos riscos do combate. Sem virtudes, ainda, porque impossibilitando a assunção do estatuto heroico, que se reflete na atribuição de condecorações por feitos em campanha, reduzindo o heroísmo e o valor em combate a simples “metáforas virtuais”.

Estes operadores de sistemas possibilitam ainda enormes poupanças, decorrentes de um menor custo da sua formação e treino, se comparados com a dos pilotos de aeronaves tripuladas sujeitos a uma seleção e a um rigoroso, demorado e dispendioso processo de aprendizagem das técnicas de combate.

Em termos estritamente políticos, os UAS oferecem mais alternativas aos estadistas, ao diminuírem as necessidades de grandes contingentes expedicionários e ao reduzir a indispensabilidade de negociar com terceiros a cedência de bases de trânsito ou avançadas, limitando o valor estratégico de certas parcerias regionais. Ao mesmo tempo provocam uma maior intromissão política na condução da guerra, desde o nível estratégico até ao operacional e tático.

Alguns autores defendem que o afastamento dos operadores do campo de batalha contribui para a desumanização do conflito e para a indiferença em relação à sorte das pessoas enquadradas no alvo a atacar.

Contrastando com aqueles, outros defendem que o facto dos operadores de UAS não estarem expostos ao risco e ao “stress” do combate, leva-os a tomar decisões eticamente mais corretas do que aquelas tomadas pelos soldados no terreno. Para além disso, os operadores estão sujeitos a uma maior supervisão, porque desempenham as suas funções integrados num ambiente em rede, que abrange toda a hierarquia, sendo ainda que todos os passos da tomada de decisão ficam gravados e portanto passíveis de escrutínio.

No que respeita à estrutura do exercício do poder, no interior das forças Aéreas, a introdução dos UAS vem seguramente provocar alterações ao nível da cultura organizacional, até agora centrada no estatuto dominante dos pilotos. Expostos ao risco e aos rigores do treino e do combate aéreo, habituados desde cedo a ter que liderar, os pilotos sempre foram encarados como os líderes naturais da aviação militar.

E, também, porque o avião foi o instrumento que justificou a existência destas instituições, de tal modo que a obsessão pelas máquinas voadoras levou mesmo a distinções e a diferentes categorias de relevância, dentro do próprio agregado dos pilotos, variando consoante o tipo, a missão e a sofisticação da aeronave voada.

Com a proliferação dos UAS, a imagem do combatente da guerra aérea, a figura heroica do “Top Gun”, exposta aos rigores do combate e figura central das produções de “Hollywood”, com uma posição dominante dentro das Forças Aéreas, ressurge com um estatuto esbatido nas suas novas funções de operador de sistemas.

Instalado no confortável, seguro e partilhado ambiente do seu local de trabalho, situado a milhares de quilómetros da zona de operações, sem sofrer o risco de perda da vida e a degradação fisiológica associada à aviação tripulada, a guerra aérea remota vai provocar um novo paradigma funcional e organizacional das Forças Aéreas.

No caso de Portugal, defende o autor, a edificação de uma capacidade UAS nacional, deverá partir do projeto PITVANT, que funcionaria como polo aglutinador de sinergias, uma vez que congrega uma rede de entidades participantes. Gerido de forma centralizada, ao nível do Ministério da Defesa, a Força Aérea deverá ser o agente executivo da capacidade UAS, satisfazendo os requisitos das Forças Armadas e de outros beneficiários.

No momento atual, caberá ao decisor político definir uma estratégia para os UAS, a nível do CEDN, que estabeleça a visão, o roteiro e a articulação de competências.

Apesar de tudo, conclui o autor, os avanços da tecnologia nunca poderão substituir o homem na condução dos assuntos letais da guerra. Eles apenas providenciarão um acréscimo de capacidades. A Guerra Aérea Remota configura, contudo, uma mudança transformacional que extravasa o mero plano operacional, consubstanciando-se como princípio de uma autêntica RAM que pode levar ao fim das plataformas tripuladas e do aviador tradicional. Quando isso acontecer estaremos perante uma mudança de proporções épicas.

Criteriosamente apresentada, num volume de trezentas e cinquenta e três páginas, com excelente aspeto gráfico, inúmeras notas de rodapé, centenas de obras mencionadas na Bibliografia, um cuidado Glossário e de agradável leitura, fica esta obra à disposição dos leitores interessados, constituindo um valioso contributo para todos aqueles que se interessam pelos estudos da paz e da guerra.

A Revista Militar agradece a oferta do livro “GUERRA AÉREA REMOTA, A revolução do poder aéreo e as oportunidades para Portugal” e felicita o Doutor e Tenente-coronel PILAV João Vicente, sócio e membro da Direção da Revista Militar, pelo trabalho de excelência que realizou.

 

Major-general Manuel de Campos Almeida

Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar

Major-general
Manuel António Lourenço de Campos Almeida
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