Nº 2553 - Outubro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Nigéria no Shatterbelt da África Subsariana: uma análise geopolítica e geoestratégica
Mestre
Samuel de Paiva Pires

Introdução

Localizada na África Ocidental, possuindo vastos recursos naturais e uma população de cerca de 170 milhões de pessoas, a Nigéria é uma das economias que mais tem crescido nos últimos anos, tendo-se tornado um país atractivo, tanto para o sector privado como para as grandes potências mundiais que procuram obter um aliado estratégico na região. O dinamismo que tem caracterizado o desenvolvimento do país, desde 1999, quando se deu a transição democrática do regime militar para a actual Quarta República, tem contribuído para que a Nigéria possa cada vez mais assumir-se como a principal potência da África Ocidental. Ademais, a par da África do Sul, a Nigéria é um dos países que pode vir a tornar-se uma efectiva potência regional na África Subsariana e a sua projecção de poder tem-se feito notar, quer pela sua elevada contribuição em termos de soldados para a Organização das Nações Unidas quer pelas intervenções militares em conflitos em países vizinhos, nomeadamente, na Libéria e na Serra Leoa.

Este quadro suscita o interesse de analisar a situação geopolítica da Nigéria, tendo em especial consideração a sua inserção regional na África Subsariana e a importância desta para as grandes potências mundiais, e examinando as características, potencialidades, problemas e desafios que caracterizam a Nigéria enquanto Estado nacional. Somos, nesta análise, efectivamente tributários de Saul Bernard Cohen e da sua visão do mundo dividido em domínios geoestratégicos – o nível macro –, regiões geopolíticas – o nível meso – e Estados nacionais e unidades subnacionais – o nível micro1.

Cumpre-nos, todavia e antes de mais, por uma questão ética, informar que o nosso propósito de analisar geopoliticamente a Nigéria não é meramente casual ou desinteressado, tendo surgido, em larga medida, em virtude da nossa actividade profissional desenvolvida no âmbito da Associação de Amizade e Negócios Nigéria Portugal2. A criação desta, aliás, atesta o interesse que a Nigéria tem para Portugal e os esforços que estão a ser desenvolvidos para aprofundar as relações entre os dois países. A este respeito, cumpre-nos também agradecer à Associação, em particular na pessoa do Presidente da Direcção, Dr. Pedro Hipólito, por nos ter providenciado bibliografia essencial para a realização desta análise.

Esta situação não obsta, contudo, a uma análise científica do nosso objecto de estudo, na medida em que reconhecemos e assumimos desde logo, em linha com Adriano Moreira, que subjaz às ciências sociais o eterno dilema entre subjectivismo e objectivismo, cujo verdadeiro problema “diz respeito ao observador que não pode ele próprio alhear-se de uma certa concepção do mundo e da vida que faz parte da sua circunstância pessoal e que condiciona necessariamente a sua relação com os factos a observar e avaliar”3.

Procuraremos, por isso, a devida distância em relação ao objecto de estudo a observar, desde logo evitando cair em qualquer um dos dois principais pontos de vista sobre África que o Nobel da Literatura nigeriano Wole Soyinka caracteriza, nomeadamente, o dos que encaram África como um desejo, principalmente pelos seus recursos naturais, e o daqueles para quem África é um pesadelo4. Efectivamente, o continente africano parece estar condenado a oscilar entre a esperança e o desespero5. Procuraremos também esta distância estando cientes de que, segundo José Adelino Maltez, para alcançar o carácter científico torna-se necessária uma “intenção de rigor e de objectividade que implica um esforço racional para substituir a opinião (doxa) pelo conhecimento (episteme) (…) procurando o verdadeiro, através da elaboração de um relato (logos) que, neste sentido, contrasta com o mítico (mythos)”6.

Naturalmente, o objecto de estudo decorre da formulação de uma pergunta de partida à qual pretendemos dar resposta, pelo que iremos inquirir sobre como se caracteriza a situação geopolítica da Nigéria?

Considerando que este projecto requer uma metodologia de cariz qualitativo, o desenho de pesquisa não será estruturado em torno de hipóteses, mas através da formulação da questão acima que guia a investigação e através da qual o objecto de estudo é circunscrito e interpretado dentro das áreas científicas das Relações Internacionais e da Ciência Política, e, mais concretamente, no âmbito dos ramos da Geopolítica e da Geoestratégia.

O nosso objectivo geral será o de entender e caracterizar a Nigéria do ponto de vista da Geopolítica e da Geoestratégia, tendo em particular consideração o corpo teórico e conceptual de Cohen. Isto implica, naturalmente, que nos debrucemos resumida e sistematizadamente sobre este autor, pelo que a primeira secção deste ensaio será dedicada, precisamente, ao enquadramento teórico.

Por seu lado, os objectivos específicos, que se reflectem na restante estrutura que preside a este ensaio, serão, em primeiro lugar, analisar a região na qual a Nigéria está inserida, ou seja, como veremos, o Shatterbelt da África Subsariana, e a importância que esta tem para as grandes potências mundiais, e, em segundo lugar, considerar as características da Nigéria enquanto Estado nacional, evidenciando as suas potencialidades, desafios e problemas.

No que à metodologia diz respeito, optaremos por recorrer a uma metodologia de índole interpretativa, “baseada num método qualitativo intensivo (…) assente em técnicas de interpretação documental e na intuição e julgamento do investigador”7, que terá na pesquisa bibliográfica a sua principal fonte de dados e na esquematização e sistematização teórica o seu instrumento primordial para responder à pergunta de partida.

 

Enquadramento teórico

Conforme referimos, a análise a que nos propomos é tributária dos ensinamentos de Cohen, pelo que importa salientar o corpo teórico e conceptual deste autor. Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que o mundo está organizado em estruturas geopolíticas formadas através da interacção entre forças geográficas e políticas e dos processos que subjazem às mudanças que ocorrem nestas estruturas, que são compostas por padrões e características geopolíticas8.

Em termos espaciais, estas estruturas estão organizadas em três níveis, conforme mencionámos na introdução. O primeiro nível, o nível macro, é o do domínio geoestratégico; o segundo, o nível meso, é o da região geopolítica, que é uma subdivisão do domínio geoestratégico; por último, o nível micro é o dos Estados nacionais, regiões autónomas, quási-estados e subdivisões territoriais dentro dos Estados ou através destes. Fora destas estruturas, existem regiões ou grupos de Estados que não estão no âmbito de um domínio ou de uma região, como é o caso dos Shatterbelts, Zonas de Compressão e Gateways. Existem ainda Zonas de Convergência entre domínios geoestratégicos, cujo estatuto, para Cohen, não está ainda definido. Cada uma destas estruturas pode ser avaliada em termos de maturidade geopolítica, ou seja, o grau de coesão política que os seus padrões e características lhe conferem9. Nesta secção, iremos ver em detalhe como são conceptualizadas e definidas estas estruturas geopolíticas e como se afere o seu grau de maturidade geopolítica.

Naturalmente, qualquer observação do mapa-mundo conclui pela clássica divisão entre terra e mar, ou seja, continentalidade e maritimidade. Estas duas grandes categorias influenciam de forma determinante o desenvolvimento das estruturas geopolíticas, sendo possível constatar diferenças civilizacionais, culturais, económicas, sociais e políticas entre as potências situadas em territórios caracterizados pela proximidade do mar e as potências cuja vocação para o exercício do poder é de matriz essencialmente continental. Conforme salienta Philippe Moreau Defarges, o conhecimento do espaço é “indissociável das evoluções económicas, culturais e políticas”10.

Vale a pena sublinhar, na senda de Políbio Valente de Almeida, que é comummente aceite que a geografia gera poder, quer pelos recursos que um Estado detém, quer pela sua localização, que se constituem, naturalmente, como componentes estruturais do poder de um Estado11. Não surpreende, por isso, que a geografia tenha “sido sempre considerada como a geratriz básica do poder”12, estando no centro das preocupações de vários autores desde Sun Tzu. Entre os pensadores modernos, e conforme também salienta Políbio Valente de Almeida13, Montesquieu terá sido dos primeiros a notar a influência do relevo e do clima sobre os povos e o poder político:

Plutarco diz-nos que, «quando a sedição ciloniana em Atenas foi aquietada, a cidade recaiu nas suas antigas dissensões, e se dividiu em tantos partidos quantos tipos de território havia na região da Ática. As pessoas da montanha queriam à viva força o governo popular; as da planície exigiam o governo dos homens principais; os que viviam perto do mar eram por um governo que misturasse os dois».

Os países férteis são planícies onde não se pode disputar nada ao mais forte: portanto, submete-se a ele; e, quando e lhe está sujeito, o espírito da liberdade não pode regressar; os bens do campo são uma garantia da fidelidade. Mas, nos países montanhosos, pode conservar-se o que se tem, e há pouco a conservar. A liberdade, isto é, o governo de que se usufrui, é o único bem que merece defesa. A liberdade reina, pois, mais nos países montanhosos e difíceis do que naqueles que aparentemente a natureza mais favoreceu14.

Também Defarges efectua uma distinção entre o homem de terra e o marinheiro, que não encaram o espaço da mesma forma. Enquanto o primeiro obedece a uma lógica de apropriação, o segundo sabe que o mar escapa a esta lógica, perspectivando-o como um espaço de liberdade, de livre circulação15.

Para Cohen, os territórios caracterizados pela maritimidade encontram-se expostos ao mar e acedem-lhe facilmente através da costa ou de vias de acesso a partir do interior. Usufruindo de um clima com temperaturas e precipitação moderadas, as populações destes espaços contactam facilmente com outras partes do mundo, pelo que não surpreende o florescimento do comércio marítimo e a imigração nestes territórios, o que não só contribui para a sua diversidade étnica, cultural e linguística como também permite acelerar o processo de especialização económica16. Segundo Karl Popper, o desenvolvimento do comércio marítimo está intrinsecamente relacionado com a democracia17:

Não tenho qualquer interesse pessoal em assuntos comerciais, ou em pessoas com uma mentalidade de comerciante. Mas a influência da iniciativa comercial parece-me muito importante. Dificilmente será um acidente que a mais antiga civilização conhecida, a da Suméria, fosse, tanto quanto sabemos, uma civilização comercial com fortes características democráticas; e que as artes da escrita e da aritmética, e os princípios da ciência, estejam intimamente relacionados com a sua vida comercial.18

Já os territórios com uma vocação de poder continental, caracterizados por condições climáticas extremas e grandes distâncias em relação ao mar, segundo Cohen, tendem a desenvolver-se de forma fechada e autocrática – embora as suas economias sejam normalmente mais auto-suficientes do que as marítimas –, visto que pouco se relacionam com outras partes do mundo, quer devido a barreiras naturais quer simplesmente em virtude das grandes distâncias19.

Qualquer estrutura geopolítica está sujeita a forças centrífugas e centrípetas. As primeiras promovem a separação política, ao passo que as segundas fomentam a unidade. As duas estão interligadas, podendo prevalecer uma delas num dos níveis, e outra a outro nível. Por exemplo, forças centrífugas podem prevalecer a nível nacional, levando um povo a separar-se de outro Estado para proteger a sua identidade, e forças centrípetas podem dominar a nível regional, animando um movimento no sentido da unidade de acção regional em áreas como o comércio, defesa ou até a integração política com outro(s) Estado(s)20.

A comunicação e a circulação de pessoas, bens, capital e armas têm lugar nos diferentes níveis, podendo os Estados mover-se entre estes, reflectindo os desenvolvimentos e, de acordo com Cohen, a “interligação entre o poder político e forças ideológicas, económicas, culturais, raciais, religiosas e nacionais, bem como as preocupações quanto à segurança nacional e as ambições territoriais”. Estas dinâmicas estão patentes em qualquer reestruturação geopolítica. Para este autor, e a título de exemplo destas dinâmicas, o colapso da República Democrática do Congo abriu espaço para a Nigéria expandir o seu poder a nível regional21.

Independentemente das dimensões, todas as estruturas têm determinadas características geopolíticas, nomeadamente: centros históricos ou nucleares, i.e., a área na qual um Estado é originado e a partir da qual a ideia do Estado se desenvolveu; capitais ou centros políticos, que desempenham o papel de centro simbólico e político das actividades governamentais; ecumenes, que são as áreas de maior densidade populacional e actividade económica; território nacional efectivo e território regional efectivo, áreas com uma densidade populacional moderada, com recursos que lhes conferem um alto potencial de desenvolvimento, sendo a sua extensão um indicador do poder que o Estado pode vir a ter no futuro; áreas vazias, que não têm população e nem se perspectiva que possam vir a ter, podendo, no entanto, servir propósitos defensivos e/ou ser uma fonte de recursos minerais; fronteiras, que demarcam áreas políticas e podem ser uma fonte de conflito; e, por último, sectores não conformes, que podem ser áreas separatistas num Estado ou rogue states numa região e que, normalmente, são zonas minoritárias na periferia de um país, distantes das vantagens económicas providenciadas pela ecumene ou partes do território nacional efectivo, não sendo também despiciendo salientar que, mesmo nos casos em que estes sectores não conformes possuem recursos naturais, os resultados da sua exploração tendem a deslocar-se para o centro do Estado22.

O grau de desenvolvimento destas características e os padrões resultantes das suas interconexões são as bases para determinar em que fase de maturidade geopolítica se encontra uma estrutura23. Partindo de uma abordagem desenvolvimental inspirada no evolucionismo e organicismo de Herbert Spencer combinado com os ensinamentos do psicólogo Heinz Werner e do psicobiólogo Ludwig von Bertalanffy, Cohen afirma que as estruturas geopolíticas se desenvolvem ao longo de quatro fases: indiferenciação ou atomização, em que as partes do território não estão interligadas e as suas funções são idênticas, como foi característico do período feudal; diferenciação, em que as partes já possuem características que as distinguem mas permanecem isoladas, como no caso dos Estados europeus pós-Vestefália ou dos Estados pós-coloniais, entre 1950 e 1970; e especialização, como no caso actual da América do Norte, a que se segue a especialização integrada, como acontece com a Europa marítima, em que as diferentes produções complementares das diversas partes territoriais levam a uma integração do sistema24.

Conforme já assinalámos, as estruturas geopolíticas encontram-se distribuídas por três níveis. O primeiro é o domínio geoestratégico, que se constitui como o nível macro, o mais elevado na hierarquia espacial global. Os domínios geoestratégicos constituem-se como “partes do mundo suficientemente grandes para possuir características e funções globalmente influentes e que servem as necessidades estratégicas das principais potências, Estados e regiões que as compõem”. O principal factor na definição de um domínio é o grau de influência das condições de maritimidade e continentalidade, podendo observar-se, actualmente, a existências de três domínios geoestratégicos: o domínio dependente do comércio marítimo que se estende pelo Atlântico e o Pacífico; o domínio continental Euroasiático ancorado no heartland russo; e o domínio misto, continental e marítimo, da Ásia Oriental25.

O segundo nível é o da região geopolítica. Na sua maioria, as regiões são subdivisões dos domínios, embora algumas estejam entre domínios ou sejam independentes de qualquer domínio. Políbio Valente de Almeida assinala que as regiões geopolíticas “expressam uma certa unidade de características geográficas que lhes dão unidade e exploram a sua capacidade para certos tipos de acção política ou económica tendo por base a sua contiguidade e complementaridade de recursos”26.

O domínio marítimo é composto pelas regiões da América do Norte, do Centro e do Sul, da Europa marítima, do Magreb e do rim da Ásia-Pacífico. O domínio euroasiático, por seu lado, consiste apenas no heartland russo, que se estende até à Bielorrússia e à província moldava da Transnístria. Por último, o domínio da Ásia Oriental é integrado pela China continental e a Indochina (composta pelo Vietname, Camboja e Laos). O Sul da Ásia permanece uma região independente destes domínios, ao passo que o Médio Oriente e a África Subsariana são, segundo Cohen, Shatterbelts27.

Estas regiões variam em termos de maturidade geopolítica, existindo algumas altamente coesas e integradas e outras atomizadas. Enquanto a Europa marítima é uma região integrada, já a África Subsariana não tem coesão geopolítica, permanecendo atomizada desde o fim do colonialismo e da Guerra Fria28.

Os Shatterbelts são regiões muito fragmentadas, assoladas por conflitos internos e cuja fragmentação aumenta em virtude da intervenção de potências externas que pretendem aumentar o seu grau de influência nestas regiões29. Este conceito foi desenvolvido desde o início do século XX, sendo denominado por James Fairgrieve como Crush Zone e por Richard Hartshorne como Shatter Zone. A definição operacional de Cohen é a de “regiões estrategicamente orientadas que são em simultâneo profundamente divididas a nível interno e alvo da competição entre grandes potências dos domínios geoestratégicos”30. Políbio Valente de Almeida enuncia de forma exaustiva, a partir de Cohen, as características dos Shatterbelts:

1 – Comandam pequenas áreas marítimas estratégicas;

2 – Distinguem-se pelas suas riquezas agrícolas e minerais;

3 – São, por isso, de vital importância para o «Trade Dependent Maritime World»;

4 – Dada a sua situação são também importantes para o «Eurasian Continental World»;

5 – São áreas politicamente fragmentadas;

6 – São áreas economicamente fragmentadas;

7 –      Pelas suas diferenças internas – físicas, ambientais, históricas, culturais e políticas – parecem incapazes de conseguir uma unidade efectiva, tanto no plano político como económico;

8 –      O alinhamento dos «shatterbelts» é errático: pode, uma parte, procurar a rentabilidade e outra o compromisso, tudo dependendo dos interesses nacionais e das pressões económicas e militares dos centros de poder estranhos à área;

9 –      Pela sua situação e características, é impossível o seu completo controlo por qualquer dos grandes poderes;

10 –     Servem de apoio às grandes potências em épocas de conflito;

11 –     São áreas tampões, i.e., impedem o afrontamento directo entre as grandes potências;

12 –     Oferecem opções para as várias formas de contenção31.

A uma escala geográfica menor encontramos as Zonas de Compressão, pequenas áreas atomizadas e ainda mais divididas que se encontram no seio ou entre regiões geopolíticas e são palco de guerras civis e de acções intervencionistas de países vizinhos32. Um exemplo de uma Zona de Compressão é a que se estende da África Ocidental ao Corno de África, passando pela África Central e Oriental33, encontrando-se, portanto, no Shatterbelt da África Subsariana.

Existem também as chamadas Zonas de Convergência, situadas entre domínios estratégicos e cujo estatuto, conforme já referimos, para Cohen, ainda não está definido34. É o caso da Zona de Convergência Euroasiática, composta pela Ásia Central e Mongólia35.

Finalmente, temos o terceiro nível de estruturas geopolíticas, o nível micro, no qual se encontram os Estados nacionais. Se alguns autores preconizam a emergência de um sistema mundial de governação em resultado da globalização, onde os Estados nacionais deixam de ser determinantes, a verdade é que os Estados nacionais permanecem os principais actores das Relações Internacionais. A globalização influencia as políticas dos Estados, mas não os mina e só ao nível regional é que os Estados têm concordado em limitar a sua independência de acção, conforme Cohen assinala. De acordo com este, “repudiar o poder do Estado nacional é ignorar o peso político e económico, bem como as capacidades de tomada de decisão, dos maiores Estados e corpos regionais nas arenas económica, política, militar e cultural”. Subscrevemos a visão deste autor de “um mundo organizado em áreas nucleares hierarquicamente dispostas no espaço e cujas funções variam consoante o poder e alcance do núcleo”36, tendente, por isso, em linha com Adriano Moreira, para a formação de grandes espaços, dominados, naturalmente, por Estados. Aliás, “em última análise, o Estado nacional permanece a cola do sistema internacional, o principal mecanismo que permite a um povo alcançar uma auto-realização inextricavelmente ligada ao seu sentido de territorialidade”37.

Na realidade, conforme José Adelino Maltez faz notar, “o Estado soberano pode ver-se ameaçado pela globalização mas é através dele que esta se tem fomentado”38, embora importe realçar que, se no plano abstracto os Estados soberanos são todos iguais, na realidade, segundo o mesmo autor, “o uso e o abuso dessa categoria abstracta acaba por desfocar uma realidade na qual, apesar de sermos todos iguais, há sempre alguns que são mais iguais que outros”39. Não será surpreendente, portanto, que as desigualdades substanciais em termos de geratrizes básicas do poder se reflictam na hierarquia que preside ao sistema internacional, na qual os Estados podem ser classificados, de acordo com Cohen, em cinco ordens de poder. A primeira consiste nas grandes potências, nomeadamente, os EUA, a União Europeia, o Japão, a Rússia e a Índia. A segunda ordem é composta por potências regionais cujo poder se projecta muito para além das suas regiões geopolíticas. As restantes ordens são integradas por Estados cuja projecção se limita a partes das regiões onde se encontram. É de sublinhar que, entre os países que estão no topo da segunda ordem, encontramos a Nigéria40.

Para finalizar o enquadramento teórico, cumpre-nos ainda salientar a existência de Estados que se podem caracterizar como sendo Gateways. Estes servem de ponte e facilitam a circulação de pessoas, bens e ideias entre várias partes do mundo. Embora as suas características variem em detalhe, no geral são pequenos em área e população, cultural e politicamente distintos, têm elevados níveis de educação, acesso favorável a áreas externas por terra ou mar e, normalmente, possuem recursos naturais ou humanos especializados sobre os quais se podem construir economias direccionadas para a exportação, embora não tenham auto-suficiência, dependendo do comércio com outros países para obter bens e serviços. Para além dos Estados soberanos, Cohen identifica também quási-estados, com tendências separatistas, que classifica como Gateways. Entre estes encontra-se a região do sudeste da Nigéria, rica em petróleo e gás41, que foi palco da Guerra do Biafra.

 

O Shatterbelt da África Subsariana

Mapa 1 – África42

 

Dividida em cinco sub-regiões – Ocidental, Oriental, Central, Sul e Corno de África –, após o fim do colonialismo europeu, a região da África Subsariana serviu de palco às disputas das duas grandes potências que se opunham na Guerra Fria, os EUA e a União Soviética. Em resultado das acções soviéticas, a região, tradicionalmente ligada ao domínio marítimo, emergiu nesta fase, precisamente, como um Shatterbelt43. Neste contexto, muita energia foi direccionada para a África Subsariana por parte dos domínios marítimo e continental, com o principal objectivo de proteger ou obter fontes de recursos materiais, aceder a mercados e impedir o estabelecimento de bases militares inimigas44.

Com o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética, os EUA e a Europa deixaram de percepcionar a região como uma mais-valia geopolítica, pelo que reduziram a assistência económica e militar que lhe providenciavam, tornando-se esta uma zona de marginalidade geoestratégica45. Todavia, no século XXI, a África Subsariana reemergiu como um Shatterbelt, em virtude da crescente procura mundial pelos recursos naturais que a região encerra. Hoje em dia, porém, a disputa dá-se entre a China e o Ocidente46, ou mais precisamente, entre os EUA e a Europa47, e centra-se nos recursos energéticos, mas também na procura de mercados e oportunidades de investimento, uma vertente que não se verificou noutras eras48.

A crescente influência chinesa na região constitui-se como uma preocupação para os EUA, que inclusivamente decidiram instalar um novo comando, o AFRICOM, algures na zona do Golfo da Guiné, com o principal propósito de assegurar o acesso às reservas de petróleo aí existentes49. Os principais interesses da potência norte-americana prendem-se com o combate a grupos terroristas islâmicos cujos membros se infiltram no Iraque, Afeganistão, Golfo Pérsico e Europa, garantir a segurança das rotas marítimas, expandir o acesso às reservas de petróleo angolanas e proteger as suas importações de petróleo da Nigéria. A China, por seu lado, tem vindo a penetrar o continente africano por via do aumento das trocas comerciais e programas de ajuda ao desenvolvimento sem as condicionantes que a ajuda internacional Ocidental impõe50. Para muitos africanos, esta competição, apesar de estimular o desenvolvimento económico, é reminiscente do período colonial51.

Após o fim do colonialismo europeu, a região permaneceu num estado de subdesenvolvimento económico e atomização geopolítica, sendo atravessada por diversos conflitos entre os seus Estados e também guerras civis. Existe um largo consenso sobre a relação entre estes conflitos e a herança colonial do traçado das fronteiras dos Estados soberanos que não têm em consideração as diferenças étnicas, tribais e religiosas das populações africanas52. Esta herança, resultante da Conferência de Berlim de 1884, é questionada por muitos, que advogam a fragmentação das unidades nacionais existentes, embora exista quem, como Soyinka, sugira a aglutinação de várias unidades em federações53.

Nos países desta região têm prevalecido forças centrífugas, tentativas de secessão que frequentemente resultaram em guerras. É o caso da região do sudeste da Nigéria, que se declarou como o Estado independente do Biafra em 1967, sete anos após a independência da Nigéria, espoletando uma guerra que durou até 1970 e que teve como resultado a derrota do Biafra54. Todavia, também se têm verificado forças centrípetas: em 1959, o Mali e o Senegal formaram uma federação, dissolvida no ano seguinte; a Guiné e o Gana formaram uma união, em 1958, que expandiram ao Mali, em 1961, embora esta não tivesse efeitos práticos e acabasse por ser dissolvida, em 1966; ainda sob o domínio britânico, na década de 1950, a ideia de uma federação entre o Uganda, Quénia e Tanganica foi promovida mas não implementada, embora os três viessem a formar a Comunidade da África Oriental, em 1967, após as independências, que seria dissolvida, em 1977, e revitalizada, em 2001, como um bloco económico; a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe) foi um dos membros da Federação da Rodésia e Niassalândia, que se dissolveria em 1963; em 1980, falhou uma tentativa de unir Cabo Verde e Guiné-Bissau; e, em 1981, foi criada a Senegâmbia, uma confederação entre o Senegal e a Gâmbia que terminaria em 1989. Apenas algumas tentativas de união entre ex-colónias tiveram sucesso, destacando-se a formação do Gana a partir da colónia britânica da Costa do Ouro e da Togolândia britânica; a integração do sul dos Camarões britânicos com os Camarões franceses, que resultou na formação dos Camarões, ao passo que a parte norte dos Camarões britânicos passou para a Nigéria; e ainda a criação da Tanzânia a partir da fusão entre Zanzibar e Tanganica55.

Por outro lado, existem também diversas tentativas de integração regional e continental, devendo destacar-se, em particular, a União Africana, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (em inglês, Southern Africa Development Community, SADC), cujo membro mais poderoso é a África do Sul, e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (conhecida como ECOWAS, ou seja, Economic Community of West African States), da qual faz parte a Nigéria. Em relação a esta última, embora o seu âmbito de actuação seja predominantemente no que concerne à integração económica entre os diversos Estados, Cohen salienta que também se tornou uma cobertura política ao abrigo da qual a Nigéria e outros Estados da África Ocidental enviaram forças de manutenção de paz para a Libéria e a Serra Leoa56.

Apesar de a Nigéria e a África do Sul serem os Estados mais proeminentes neste Shatterbelt, actualmente composto por cerca de 800 milhões de pessoas, não têm, para Cohen, a capacidade populacional e económica para se tornarem poderes regionais dominantes. Embora a Nigéria seja o país mais populoso da região, com cerca de 170 milhões de habitantes, e não obstante a sua economia estar em rápido crescimento, enfrenta conflitos étnicos e religiosos e desafios vários, que evidenciaremos57.

Ademais, no continente africano encontramos milhares de subdivisões etnolinguísticas, o que se reflecte na sua atomização, e a população encontra-se muito dispersa, quer devido aos conflitos, quer em virtude das condições geográficas do continente, ou seja, poucos terrenos aráveis, uma densa floresta tropical, muitos solos secos, desertos e estreitas linhas costeiras que não permitem o desenvolvimento de economias urbanas modernas, salvo algumas excepções. Uma delas é a do Delta do Níger, onde encontramos vastas reservas de petróleo e gás natural58.

Embora este Shatterbelt seja rico em recursos naturais, a região continua a ser a mais pobre a nível mundial, sendo assolada por doenças, guerras civis, conflitos étnicos e religiosos e desadequados investimentos de capital. Ainda que nos últimos anos o Produto Interno Bruto (PIB) dos vários países tenha crescido a um ritmo médio de 5 a 6%, a África Subsariana permanece numa condição de dependência económica e geopolítica do exterior. Este crescimento económico assente principalmente na exploração de recursos naturais não é suficiente para suportar a maioria da população, que continua a depender de uma agricultura de subsistência. Além do mais, “oscilações de preços nos mercados internacionais de produtos minerais e tarifas elevadas aplicadas aos produtos agrícolas contribuem para a instabilidade económica” e “a corrupção desvia muito do rendimento obtido através das exportações para os bolsos da elite política e económica”59.

No que concerne às características geopolíticas desta região, há vários elementos a salientar. Desde logo, segundo Cohen, a África Subsariana é a região com menor maturidade geopolítica do mundo, sendo pouco provável que as suas estruturas geopolíticas venham a evoluir no sentido de ultrapassar a atomização que a caracteriza60.

Não possuindo nenhum centro histórico ou nuclear regional, alberga várias capitais políticas importantes, nomeadamente, Abuja, Pretória, Nairobi e Adis Abeba, mas nenhuma possui o potencial para se tornar num núcleo político regional61.

A região também não possui nenhuma ecumene, e as que existem a nível nacional são pouco desenvolvidas, à excepção da existente na África do Sul62.

Em termos de territórios regionais efectivos, existe o potencial para que dois territórios venham a adquirir este estatuto, a savana do Sul de África que se estende do norte da África do Sul ao Zimbabwe e à Zâmbia, e o Sahel na África Ocidental, que atravessa o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, o norte da Nigéria, o Sudão e a Etiópia. Todavia, existem obstáculos à concretização deste potencial, nomeadamente, a escassez de precipitação, doenças que afectam seres humanos e animais e a distância de acesso ao mar. No caso do Sahel, fenómenos de seca e fome afectaram severamente a região nas décadas de 1970 e 1990, o que resultou na desertificação de muitas zonas, ao invés da absorção de população que é suposto ocorrer em territórios regionais efectivos63.

Conforme já mencionámos, outra característica geopolítica de suma importância e responsabilidade quanto à atomização deste Shatterbelt é a das inúmeras disputas relativas às fronteiras existentes. Estas atravessam diversidades étnicas, tribais, linguísticas e religiosas, estando na origem de disputas pelo controlo de recursos naturais, acesso ao mar e reunificação de povos64.

Por último, cumpre ainda realçar uma característica geopolítica única, a existência de um elevado número de países encravados, ou seja, sem costa marítima, quinze no total, o que se reflecte na dependência externa em relação ao acesso ao mar. Para além desta dependência, estes países vêem-se na contingência de ter de pagar taxas sobre importações e exportações aos Estados com orlas costeiras, e a falta de acesso directo ao mar impede o processo de especialização económica, fragilizando ainda mais as suas economias65.

Cohen, como já anteriormente assinalámos, acredita que nenhum Estado tem o potencial para se tornar uma potência regional dominante em todo o continente, embora possam emergir potências que dominem as sub-regiões a que pertencem. A este respeito, o autor afirma que apenas a África Ocidental e o Sul de África têm o potencial para se tornarem unidades geopolíticas coesas lideradas por uma potência regional, a Nigéria e a África do Sul, respectivamente66, eventualmente passando a integrar o domínio geoestratégico marítimo. Isto depende da capacidade destes dois países para atingirem um elevado grau de coesão interna e liderarem processos de robustecimento económico e político da ECOWAS e da SADC67.

 

A situação geopolítica da Nigéria

Mapa 2 – Nigéria: os 36 estados e a capital federal68

 

Situada na já mencionada Zona de Compressão que se estende do Corno de África até à África Ocidental, mais concretamente no Golfo da Guiné, a Nigéria é o maior Estado africano em termos populacionais, com cerca de 170 milhões de pessoas que se dividem por mais de 250 grupos etnolinguísticos. É composto por trinta e seis estados federados que se dividem por seis zonas geopolíticas (Sudeste, Sul-Sul, Sudoeste, Nordeste, Noroeste e Norte Central), a que acresce a capital federal, Abuja, que, segundo Kalu N. Kalu, dada a parca força e efectividade política dos estados federados, é de onde emana a maior parte das políticas públicas, pelo que o federalismo nigeriano acaba por “reflectir um estranho híbrido entre consentimento popular, ditadura benevolente e arregimentação autoritária”69.

A geografia do país é bastante diversificada, com planícies no norte e sul e planaltos e colinas no centro, o que se reflecte também no clima, que varia entre árido e equatorial, sendo geralmente o característico de uma zona tropical, com épocas de chuvas e secas. A Nigéria possui também uma extensa rede de rios, sendo os principais o Níger e o Benue70.

Em termos demográficos, apesar de existirem cerca de 250 grupos etnolinguísticos, três etnias compõem a maioria da população: os Hausa, localizados no Norte, que representam cerca de 21% da população; os Yoruba, situados no Sudoeste, que totalizam 21%; e os Igbo, do Sudeste, que contabilizam 17%. Naturalmente, estas divisões reflectem-se também a nível religioso, embora a vasta maioria da população nigeriana se divida entre o Cristianismo e o Islamismo. Enquanto os que professam o Islão se encontram concentrados no Norte, os cristãos estão principalmente no Sul e no Middle Belt, i.e., a região central que atravessa longitudinalmente a Nigéria71.

Mapa 3 – Distribuição dos grupos étnicos da população nigeriana72

 

Esta divisão resulta do processo de colonização e cristianização que se concentrou na região do Sul, acessível pelo mar, e reflecte-se nos conflitos entre o Norte o Sul, que têm também uma componente económica73. O país tem sido atravessado por vários episódios de conflitos armados, bem como a nível da competição pelo poder político que, por uma razão de economia de espaço não podemos explorar neste ensaio74, embora importe salientar como casos mais proeminentes a já referida tentativa de secessão por parte do Sul, concretizada na declaração de independência do Biafra e na guerra que se lhe sucedeu, e, mais recentemente, os conflitos no Delta do Níger e o surgimento de um grupo terrorista islâmico no Norte, o Boko Haram.

Kalu salienta que a questão do Delta do Níger já existia, antes mesmo de a exploração do petróleo se tornar a principal indústria da economia nigeriana, envolvendo a crise nesta região vários factores, nomeadamente, a competição por autonomia territorial, oportunidades económicas, a degradação ambiental, a representação política e a autodeterminação. Actualmente, o principal problema resulta do subdesenvolvimento, desemprego e pobreza que se verificam numa região onde vastas reservas de petróleo e gás natural são exploradas, acabando por se tornar evidente a desigual distribuição dos frutos desta exploração75.

Esta exploração, de acordo com Kunle Sehinde Benson, tem contaminado os solos e as águas, prejudicando a actividade de agricultores e pescadores76 numa região cuja população depende destas para a sua subsistência. Trata-se de uma região que é um vasto pântano, cobre nove estados nigerianos, é habitada por 33 milhões de pessoas de cerca de quarenta grupos étnicos, sendo o mais numeroso o dos Ijaw, com 14 milhões de pessoas77.

Segundo John Campbell, ex-embaixador dos EUA na Nigéria, o petróleo tornou-se a cola que une a Nigéria, motivando a preservação da federação e gerando a maior parte das receitas do governo e do comércio externo do país, permitindo-lhe, portanto, ser um dos principais actores globais no sistema internacional. Todavia, os residentes da região têm beneficiado pouco com a exploração do petróleo, quer em termos económicos quer no que concerne às exigências de autonomia política local, que procuram fazer notar em Abuja, sem sucesso78.

Perante este cenário, vários grupos têm-se insurgido, desde a década de 1990, atacando instalações petrolíferas e fazendo reféns expatriados que trabalham nestas, com o intuito de pressionar Abuja no sentido de atender às suas exigências79, acabando também por se estabelecerem milícias e grupos criminais na região que afectam a segurança das populações. A crise, segundo Benson, “produziu várias consequências contraditórias, com impactos a longo prazo na paz, segurança, desenvolvimento e governação democrática na região, e efeitos que se fazem sentir em todo o país”80.

Campbell salienta que, desde a eleição do actual Presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, um Ijaw cristão, a hostilidade da região em relação a Abuja diminuiu. Todavia, o mesmo autor prevê que, caso não ocorram mudanças nas políticas relativas à região, a violência poderá regressar, especialmente à medida que se aproximam as eleições de 201581.

Um fenómeno mais recente é o surgimento do grupo fundamentalista islâmico denominado por Boko Haram. No que ao nome do grupo diz respeito, convencionou-se generalizadamente que boko é a palavra Hausa para “livro”, referindo-se comummente à educação Ocidental, ao passo que Haram é a palavra arábica para “proibido.” Todavia, o linguista Paul Newman evidencia que a interpretação da palavra boko está incorrecta, significando esta algo como fraude, engano ou decepção, sendo geralmente associada a todos os escritos e interpretações que não estão ligados ao Islão82. De qualquer das formas, Boko Haram é uma denominação que foi aplicada aos seguidores de Mohammed Yusuf, um professor islâmico. Este grupo era inicialmente bastante pequeno e integrava-se no movimento islâmico de contestação não-violenta na região do Norte da Nigéria. Todavia, o grupo evoluiu para uma revolta violenta contra o poder político, quer secular quer Islâmico, pretendendo implementar a Lei da Sharia, empreendimento que os políticos islâmicos, para o Boko Haram, falharam, pelo que se tornaram alvos preferenciais do grupo. Em 2009, Yusuf foi assassinado e o grupo resguardou-se na clandestinidade, surgindo em força a partir de 2011, com várias operações terroristas visando edifícios governamentais e igrejas, assaltos a bancos e assassinatos. Embora já tenha vitimado milhares de pessoas, só com o recente rapto de 276 raparigas é que o mundo ficou a conhecer melhor esta organização, em particular devido ao foco mediático que incidiu sobre este episódio. Actualmente, muito se especula sobre as suas reais intenções, mas certo é que se tornou uma ameaça séria que levou ao reforço da presença militar na região. Isto, no entanto, acabou por estimular o recrutamento de membros para o Boko Haram entre a população. Este embate entre militares e o Boko Haram tem levado, segundo Campbell, a um processo de bifurcação do país entre Norte e Sul, entre muçulmanos e cristãos, que a continuar poderá significar um futuro difícil para os cerca de 70 milhões de pessoas no Norte, que poderão ver-se privadas de usufruir das receitas do petróleo para o desenvolvimento da região83.

A estas duas forças centrífugas, junta-se ainda a instabilidade no Middle Belt que Cohen sublinha. Também esta região se vê a braços com conflitos étnicos e religiosos agravados pela fome e pobreza. Pode perspectivar-se, por isso, uma separação entre o Norte e o Sul84.

Todavia, os problemas internos não têm impedido a Nigéria de projectar o seu poder na região. Dois casos particularmente notórios a este respeito foram as intervenções militares na Libéria e na Serra Leoa. No primeiro caso, a intenção inicial era a de impedir a rebelião iniciada por Charles Taylor, em 1989, e que durou até 1997, quando a Nigéria decidiu apoiar Taylor, que impôs um cessar-fogo e conseguiu ganhar as eleições presidenciais. No segundo, a Nigéria ajudou a defender o governo de grupos rebeldes, no seguimento de um golpe militar que depôs Joseph Momoh, em 1992, e promoveu uma tentativa de resolução do conflito, convencendo o governo e os rebeldes a negociarem, em 1999. As tréguas foram quebradas quando os rebeldes fizeram cinco soldados das Nações Unidas reféns, pelo que a Nigéria acabaria por retirar as suas tropas do país85.

Segundo Cohen, a Nigéria só poderá tornar-se uma potência regional quando se “reunir em torno de objectivos nacionais amplamente aceites, estabilizar o seu governo, e aprender a utilizar as receitas do petróleo sabiamente”86.

A este respeito, cumpre destacar os esforços dos governos nigerianos na última década, em especial no que concerne às reformas económicas e a luta contra a corrupção protagonizadas principalmente por Ngozi Okonjo-Iweala, Ministra das Finanças, entre 2003 e 2006, Ministra dos Negócios Estrangeiros, em 2006, e actual Ministra Coordenadora da Economia e Ministra das Finanças. Okonjo-Iweala é uma prestigiada personalidade internacional, que foi vice-presidente do Banco Mundial e chegou a ser candidata à presidência do mesmo. No seu primeiro mandato como Ministra das Finanças foi responsável por diminuir o grau de dependência da despesa pública em relação às voláteis receitas do petróleo, baseando o orçamento federal numa perspectiva conservadora quanto à evolução futura dos preços do petróleo e colocando qualquer excedente numa conta à parte, o que reduziu a ameaça da inflação, que diminuiu de 26 para 11%, tendo ainda contribuído para a acumulação de reservas externas e introduzido procedimentos que elevaram o grau de transparência no que concerne à despesa pública. Foi também durante este mandato que conseguiu renegociar a dívida externa do país com o Clube de Paris, de forma a permitir à Nigéria tornar-se o primeiro país africano a pagar a sua dívida externa, tendo, desta forma, ganho acesso aos mercados financeiros internacionais87.

No actual mandato, Okonjo-Iweala tem procurado reduzir o nível de despesa corrente do governo e expandir as obras públicas com o intuito de diminuir o desemprego88, apontado pelo Banco Mundial como um dos principais desafios que o país enfrenta, a par com a necessidade de promover o crescimento do sector privado, para que se possa efectivamente reduzir o nível de pobreza89. Precisamente tendo estes desafios em mente, Okonjo-Iweala implementou diversas reformas visando diminuir a volatilidade macroeconómica e promover o crescimento do sector privado através de privatizações e esforços de desregulamentação e liberalização do sector90.

Segundo Okonjo-Iweala, a luta contra a corrupção deve permanecer no centro da agenda reformista nigeriana. Uma das formas de a combater, para a Ministra, é precisamente melhorando o ambiente de negócios e atraindo fontes de investimento, especialmente nas áreas de infra-estruturas, agricultura, produção industrial, construção e serviços, o que, em conjunto com as reformas estruturais que estão em curso, será essencial para melhorar a situação nigeriana no que ao desenvolvimento humano concerne91.

O caminho para a total transformação da economia nigeriana é longo, mas tem vindo a ser percorrido, merecendo particular destaque a iniciativa Nigeria 20:202092, cujo objectivo é colocar a Nigéria entre as vinte maiores economias do mundo até 2020. O caminho para este objectivo foi recentemente encurtado, em resultado da revisão da fórmula de cálculo do Produto Interno Bruto do país, que não era actualizada desde 1990. A nova fórmula, elaborada com a assistência do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, reflecte uma imagem mais realista da economia do país e permitiu determinar que o actual PIB se cifra em cerca de 510 mil milhões de dólares. Isto significa que a Nigéria se tornou a maior economia africana, ultrapassando a África do Sul, continuando a prever-se um crescimento assinalável do PIB, conforme fica patente no gráfico e na tabela infra retirados do paper sobre a Nigéria elaborado por Barbara Barungi, do Banco Africano para o Desenvolvimento, para o African Economic Outlook.93

Gráfico 1 – Evolução do crescimento do Produto Interno Bruto da Nigéria, da África Ocidental e de África94

 

Tabela 1 – Indicadores macroeconómicos da Nigéria95

 

Okonjo Iweala acredita que “quando a Nigéria alcançar o sucesso na sua transformação, irá transformar África e a visão desta como um grupo de nações economicamente emergentes com um rápido crescimento económico, comparável aos BRIC, tornar-se-á uma realidade”96.

 

Conclusão

Neste ensaio procurámos cumprir o objectivo geral de evidenciar e analisar a situação geopolítica e geoestratégica da Nigéria à luz do corpo teórico e conceptual de Cohen, tendo em especial consideração a inserção internacional e regional do país, assim respondendo à pergunta de partida, o que passou também pelo cumprimento dos objectivos específicos, nomeadamente a caracterização do Shatterbelt da África Subsariana e da Nigéria.

Concluímos, em primeiro lugar, que o Shatterbelt da África Subsariana é a região com menor coesão e maturidade geopolítica do mundo, encontrando-se altamente fragmentada em virtude de guerras e conflitos vários, devendo destacar-se, em particular, os que advêm do traçado de fronteiras políticas que não respeitam a diversidade étnica, cultural e religiosa do continente.

Por outro lado, e daí a sua classificação como Shatterbelt, a região é hoje uma das mais disputadas do mundo entre a China, por um lado, e os EUA e Europa por outro, focando-se a competição essencialmente nos recursos naturais e nas oportunidades de investimento em países que estão a procurar desenvolver-se economicamente.

É também de assinalar que apenas dois países possuem o potencial para se tornarem potências regionais dominantes, a África do Sul e a Nigéria, líderes da SADC e da ECOWAS, respectivamente, embora tenham de ultrapassar diversos obstáculos.

No que à Nigéria concerne, os desafios prendem-se com o desenvolvimento económico que permita reduzir a pobreza, o que passa, em larga medida, por reformas macroeconómicas, o combate à corrupção e a sábia utilização das receitas obtidas com a exploração dos recursos naturais, especialmente o petróleo e o gás natural, mas também com a necessidade de minorar os efeitos das forças centrífugas que emanam dos conflitos étnicos, que têm um particular relevo no Delta do Níger e no Norte, onde prevalece a ameaça terrorista do Boko Haram.

Para que a Nigéria possa ultrapassar estes desafios e concretizar o seu imenso potencial, importa que seja sedimentado o consenso interno, num país etnicamente muito diversificado, em torno de objectivos nacionais que contribuam para o desenvolvimento económico e humano de todo o país (como pode ser o caso da mencionada iniciativa Nigeria Vision 20:2020). Esta é a chave para que a Nigéria possa tornar-se uma potência regional com ainda maior capacidade de projecção internacional que a que possui actualmente.

 


 1  Saul Bernard Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 2.a ed. (Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2009), 6.

2 Fundada em Setembro de 2012 na Embaixada da Nigéria em Lisboa, a Associação de Amizade e Negócios Nigéria Portugal resulta dos esforços de várias empresas e entidades para promover e aprofundar as relações entre os dois países. Entre os associados contam-se, naturalmente, empresas portuguesas e nigerianas como a SIBS INTERNATIONAL (cujo Director-Geral é também o Presidente da Direcção da Associação, Dr. Pedro Hipólito), a Novabase, a NIBSS – Nigeria Inter-Bank Settlement System, o Union Bank, o Keystone Bank, o Sterling Bank, a PharSolution, a FHC Farmacêutica, a Jaba Recordati, a Raposo Bernardo & Associados, a KPMG, entre outras, sendo ainda de salientar que a Associação tem como sócios honorários a Embaixadora da Nigéria em Portugal, o Embaixador de Portugal na Nigéria e o Vice-Governador do Banco Central da Nigéria. Mais informação pode ser consultada no site http://nigeriaportugal.org/.

3 Adriano Moreira, Teoria Das Relações Internacionais, 5.a ed. (Coimbra: Almedina, 2005), 59.

4 Wole Soyinka, Of Africa (New Haven: Yale University Press, 2012), viii.

5 Ibid., 4.

6 José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política: Introdução à Teoria Política, 2.a ed. (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1996), 41.

7 José Pedro Teixeira Fernandes, Teorias Das Relações Internacionais (Coimbra: Almedina, 2004), 36.

8 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 33.

9 Ibid.

10 Philippe Moreau Defarges, Introdução À Geopolítica, 2.a ed. (Lisboa: Gradiva, 2012), 23.

11 Políbio Valente de Almeida, Do Poder Do Pequeno Estado: Enquadramento Geopolítico Da Hierarquia Das Potências (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1990), 87.

12 Ibid., 88.

13 Ibid., 97.

14 Montesquieu, Do Espírito Das Leis (Lisboa: Edições 70, 2011), 440.

15 Defarges, Introdução À Geopolítica, 21-22.

16 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 34.

17 Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, vol. 1, The Spell of Plato (London: Routledge, 2003), 190.

18 Ibid., 331.

19 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 34.

20 Ibid.

21 Ibid., 35.

22 Ibid., 36.

23 Ibid.

24 Ibid., 56-57.

25 Ibid., 37.

26 Almeida, Do Poder Do Pequeno Estado: Enquadramento Geopolítico Da Hierarquia Das Potências, 176.

27 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 40-42.

28 Ibid., 42.

29 Ibid., 5.

30 Ibid., 44.

31 Almeida, Do Poder Do Pequeno Estado: Enquadramento Geopolítico Da Hierarquia Das Potências, 177.

32 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 5.

33 Ibid., 413.

34 Ibid., 33.

35 Ibid., 41.

36 Ibid., 46.

37 Ibid., 47.

38 José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais (São João do Estoril: Principia, 2002), 169.

39 Ibid., 165.

40 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 47-49.

41 Ibid., 50-54.

42 “Africa,” World Atlas, 2014, consultado em 13 de Julho de 2014, http://www.worldatlas.com/webimage/countrys/af.htm.

43 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 76.

44 Ibid., 25.

45 Ibid., 418.

46 Ibid., 7.

47 Ibid., 418.

48 Ibid., 393.

49 Ibid.

50 Ibid., 418.

51 Ibid., 393.

52 Ibid., 394.

53 Soyinka, Of Africa, 11.

54 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 395.

55 Ibid., 396-397.

56 Ibid., 398.

57 Ibid.

58 Ibid., 398-399.

59 Ibid., 400.

60 Ibid., 403.

61 Ibid., 403-404.

62 Ibid., 404.

63 Ibid., 404-405.

64 Ibid., 405-406.

65 Ibid., 408.

66 Ibid., 409.

67 Ibid., 419.

68 “Nigeria,” Wikipedia, 2014, consultado em 13 de Julho de 2014, http://en.wikipedia.org/wiki/Nigeria.

69 Kalu N. Kalu, State Power, Autarchy, and Political Conquest in Nigerian Federalism (Lanham: Lexington Books, 2008), 33.

70 Toyin Falola, Culture and Customs of Nigeria (Westport: Greenwood Press, 2001), 2-3.

71 Toyin Falola and Matthew M. Heaton, A History of Nigeria (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), 4-5.

72 Mobolaji E. Aluko, “MID-WEEK ESSAY: On the Important Matter of the National Conference (NC),” Nigerian Muse, 2013, consultado em 13 de Julho de 2014, http://www.nigerianmuse.com/20131010152622zg/sections/essays/mid-week-essay-on-the-important-matter-of-the-national-conference-nc-bolaji-aluko/.

73 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 408-409.

74 A este respeito vide Kalu, State Power, Autarchy, and Political Conquest in Nigerian Federalism, 65-87; Samuel Egwu, “Ethno-Religious Conflicts and National Security in Nigeria: Illustrations from the ‘Middle Belt’,” in State, Economy, and Society in Post-Military Nigeria, ed. Said Adejumobi (New York: Palgrave Macmillan, 2011), 49-83; John N. Paden, Muslim Civic Cultures and Conflict Resolution: The Challenge of Democratic Federalism in Nigeria (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2005), 183-199; e Rotimi T. Suberu, Federalism and Ethnic Conflict in Nigeria (Washington, D.C.: United States Institute of Peace Press, 2001).

75 Kalu, State Power, Autarchy, and Political Conquest in Nigerian Federalism, 173.

76 Kunle Sehinde Benson, “The Niger Delta Crisis and Nigerian Democracy,” in Nigeria’s Democratic Experience in the Fourth Republic Since 1999, ed. A. Sat Obiyan and Kunle Amuwo (Lanham: University Press of America, 2013), 228.

77 John Campbell, Nigeria: Dancing on the Brink (Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2013), 65.

78 Ibid., 66.

79 Ibid.

80 Benson, “The Niger Delta Crisis and Nigerian Democracy,” 229.

81 Campbell, Nigeria: Dancing on the Brink, 80.

82 Paul Newman, The Etymology of Hausa Boko (Mega-Chad Research Network, 2013), consultado em 13 de Julho de 2014, http://www.megatchad.net/publications/Newman-2013-Etymology-of-Hausa-boko.pdf.

83 Campbell, Nigeria: Dancing on the Brink, 131.

84 Cohen, Geopolitics: The Geography of International Relations, 414.

85 Ibid., 413.

86 Ibid., 414.

87 Campbell, Nigeria: Dancing on the Brink, 18–19.

88 Ibid., 21.

89 Giuseppe Iarossi, Peter Mousley, and Ismail Radwan, An Assessment of the Investment Climate in Nigeria (Washington, D.C.: The World Bank, 2009), 1-9.

90 Ngozi Okonjo-Iwela, Reforming the Unreformable: Lessons from Nigeria (Cambridge: The MIT Press, 2012), x.

91 Ibid., 133-143.

92 Ibid., 133.

93 Barbara Barungi, “Nigeria 2014” (African Economic Outlook, 2014), consultado em 13 de Julho de 2014, http://www.africaneconomicoutlook.org/fileadmin/uploads/aeo/2014/PDF/CN_Long_EN/Nigeria_EN.pdf.

94 Ibid., 3.

95 Ibid.

96 Okonjo-Iwela, Reforming the Unreformable: Lessons from Nigeria, 143.

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Mestre

Samuel de Paiva Pires

Doutorando em Ciência Política no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e investigador no Centro de Administração e Políticas Públicas do mesmo Instituto.

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