Nº 2569/2570 - Fevereiro/Março de 2016
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Imprevidência Estratégica de Salazar: Timor, 1941 – Angola, 1961

A Imprevidência Estratégica de Salazar: Timor, 1941 – Angola, 1961[1]

David Martelo

 

Quero começar por cumprimentar o meu Amigo e Camarada coronel David Martelo, autor do livro que hoje aqui nos reúne.

Depois, desejo agradecer ao editor, porque permitiu, num tempo de grandes dificuldades financeiras, que se não perdesse, no disco de um computador, esta obra sobre a qual passarei a dizer algumas palavras de apresentação.

Finalmente, quero agradecer ao senhor general Comandante da Academia Militar por autorizar a que esta cerimónia tenha lugar no berço dos oficiais do Exército e, noutros tempos, da Força Aérea, como foi o meu caso.

Vou dividir a minha apreciação em duas partes: a que respeita aos aspectos metodológicos e a que trata dos factos e do conteúdo.

1. Aspectos metodológicos

A primeira referência que devo fazer concerne à boa consulta de fontes credíveis e à boa exploração bibliográfica. O autor foi exímio na utilização do material disponível para escrever uma obra que pode e deve ombrear ao lado de qualquer livro de investigação historiográfica. Neste domínio, o volume agora publicado confirma e autentica o seu autor como um historiador autodidacta.

A construção desta narrativa foi feita à volta de uma tese que o autor pretende e consegue demonstrar: Salazar, embora dizendo o contrário, privilegiava o equilíbrio orçamental com profundo descuido pelas despesas com a Defesa Nacional.

Na análise que o autor faz sobre os períodos em estudo, ao contrário do que se tornou comum em relação a Salazar e ao Estado Novo, David Martelo não peca por fazer uma crítica apologética nem condenatória. Limita-se a, seguindo o rigor cronológico, não cometer anacronismos tão comuns em historiadores interessados em:

a) Ou destruir o passado salazarista, exaltando e evidenciando só os erros do regime de então;

b) Ou “branquear” o passado salazarista, fazendo a apologia do homem, das decisões e das “vitórias” do ditador.

O coronel David Martelo foge ao anacronismo, porque faz a sua análise à luz da época, dos conhecimentos que existiam e do que se podia prever. Não faz o seu estudo na posição cómoda de olhar o passado com os olhos do presente.

Metodologicamente, usa o conceito de Estratégia para explicar a História e os conflitos de âmbito diplomático e de relação internacional das duas épocas que analisa. Este facto dá uma boa carga de ineditismo ao estudo que desenvolve nas 189 páginas de texto, pois o relato não é estático, caracterizando-se pelo dinamismo de saltar, tanto de Lisboa para Londres como para Timor ou Washington ou Nova Iorque ou, ainda, Luanda e Angola. O coronel Martelo saltita para os diferentes cenários onde se desenrola toda a acção, seja militar ou simplesmente diplomática. Este processo de construir a narrativa dá uma vivacidade ao relato que obriga o leitor a integrar-se no cenário e a estar presente como se fosse contemporâneo dos acontecimentos.

Em suma, na perspectiva metodológica, esta obra está ao nível da de um qualquer historiador encartado por uma qualquer universidade nacional ou estrangeira. E, diga-se em abono da justiça, outra coisa não era de esperar de um autor com uma obra já feita e consolidada como a que tem o coronel David Martelo.

2. Os factos e o conteúdo

A neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial foi, durante todo o pós-guerra até bem tarde na década de sessenta do século passado, saudada como um extraordinário feito de Oliveira Salazar. A propaganda soube esconder, durante duas dezenas de anos, as artimanhas do Presidente do Conselho de Ministros de então. O facto deixou de ser saudado como extraordinário quando um outro, também de natureza bélica, lhe veio tirar o brilho. Refiro-me, em concreto, ao alongamento da guerra colonial, iniciada em Fevereiro de 1961. Invocar a vitória diplomática obtida durante a II Guerra Mundial, no final dos anos sessenta, era um contra-senso absoluto perante um conflito armado nas colónias para o qual não se vislumbrava fim. Acresce que a conquista dos territórios do Estado da Índia pelas forças militares da União Indiana veio pôr a descoberto a falência dos jogos diplomáticos, dos quais se queria fazer acreditar ser Salazar um perito.

A neutralidade na II Guerra Mundial – chamada por Salazar, no fim do conflito, neutralidade colaborante – foi tudo, como já tive oportunidade de escrever e defender num pequeno artigo cheio de conteúdo[2], menos neutralidade e menos ainda neutralidade colaborante! Da análise que fiz e defendo, tratou-se de uma beligerância condicionada e nunca efectivada através de uma declaração formal de guerra. E foi uma beligerância somente por causa de um motivo: a posse por parte do Estado português de posições geoestratégicas de alta importância para a condução das operações militares. E desses territórios há dois que se destacaram: Timor e os Açores. O primeiro, depois de ter sido invadido por tropas aliadas, foi ocupado por tropas japonesas, colocando Portugal, através de parte daquela ilha distante, no teatro de operações em colaboração com o Japão; o segundo, tendo vivido a ameaça de invasões semelhantes feitas pelas Forças Armadas dos EUA e da Grã-Bretanha, acabou sendo cedido para, na Ilha Terceira, se instalar uma base aeronaval britânica e americana. Basta estes envolvimentos tão directos para que a neutralidade deixe de existir e para se poder falar de uma beligerância condicionada. Ora, é do primeiro território – Timor – de que se ocupa o coronel David Martelo no livro que hoje tenho o prazer e a honra de apresentar. Ele escolheu Timor, em 1941, para poder estabelecer o paralelo estratégico com Angola vinte anos mais tarde e, desse modo, defender a tese que apresenta e que repito, para não ser esquecida pela audiência: constante primazia do equilíbrio orçamental em detrimento da construção de um bom aparelho de defesa militar.

Fazendo uso de bibliografia quase inédita, dada a sua recente publicação, relata e evidencia os acontecimentos naqueles dois tempos históricos.

E desfaz mitos. O mito de como Salazar conseguiu manter Portugal numa neutralidade digna e conveniente durante a II Guerra Mundial.

Ora, o que o autor vem provar é que a neutralidade nacional se ficou a dever à prática de uma política “manhosa” sem fundamento no único caminho onde deve assentar a neutralidade: a força militar dissuasora de intenções falsamente “proteccionistas” partidas de quem procura defender os seus interesses sem respeito pelo interesse do Estado neutral.

A política de Salazar durante o conflito, e face ao caso concreto de Timor, foi absolutamente desastrosa, por ausência de um pensamento estratégico ao nível das mais altas instâncias políticas e porque os mais elevados escalões militares não tiveram a coragem de afrontar a vontade do ditador, impondo gastos financeiros para providenciar a uma defesa que não existia. As Forças Armadas eram meros conjuntos de supostos militares, sem treino e sem armamento, que não conseguiam oferecer resistências simbólicas. Aliás, o autor deixa bem claro que Salazar sabia, nos momentos cruciais, apelar para o sacrifício extremo, mas, do ponto de vista militar e até político, sacrifício sem proveito material imediato nem vantagem diplomática: morria-se, porque, segundo a História, no passado, outros já haviam morrido naquelas paragens distantes para consagrar políticas de grandeza.

David Martelo, ao analisar a situação, vinte anos depois dos acontecimentos de Timor, isto é, em 1961, faz como que a contra-prova dos comportamentos de Salazar, face ao que o ditador afirma no tocante à defesa e segurança e à gestão orçamental.

Os ventos da história apontavam, na sequência do final da II Guerra Mundial, para as independências das colónias e o fim dos Impérios Coloniais. Portugal, através de uma propaganda de grandeza política, quer para consumo interno quer para afirmação externa, sem a prática nem os meios capazes de lhe dar sustentação, afirmava-se, em primeiro lugar no tempo, através do Acto Colonial, como cabeça de um Império destinado a levar a civilização aos povos indígenas dos territórios dominados. Era, nos anos trinta do século vinte, uma afirmação balofa, tonta e carente de crédito nas grandes capitais da Europa e até das Américas. Carente de crédito, porque nessas mesmas capitais se conheciam as fragilidades de toda a ordem existentes em Portugal. Mas, acima de todas as fragilidades, as que podem garantir Impérios, ou seja, as militares.

O autor, com brilhantismo e prudência, estabelece as diferenças e semelhanças entre o fim do Acto Colonial e a sua integração na Constituição da República, dando-nos a perceber – e a palavra só pode ser essa – as manhosices de Salazar. Aliás, já por altura do relato histórico da II Guerra Mundial, David Martelo havia deixado bem claro que a forma do ditador se movimentar na cena política internacional era feita na base do uso de artifícios, os quais a História, às vezes, tem deixado a claro e, na maior parte do tempo, tem mantido no segredo dos estudantes deste passado que já vai sendo longínquo. Os biógrafos mais recentes do ditador, porque estão preocupados em lançar para o futuro imagens e contornos para figurarem na História e, não poucas vezes, em escusarem-se a ir ao fundo das políticas praticadas, de modo a perceber-se exactamente os comportamentos de Salazar em face dos acontecimentos, acabam distorcendo a imagem de quem foi o responsável pela política do Estado Novo. É o mal das biografias: centram-
-se na personalidade aparente e nunca a traçam em função dos comportamentos efectivos dos biografados. Para biografar, com plena consciência de quem foi o biografado, tem de se estudar mais fundo do que a presença na cena onde se desenrolou a vida da personagem, indo aos acontecimentos e esmiuçando-os para descobrir a verdadeira forma de estar e de ser daquele de quem se pretende dar o estudo de vida. David Martelo está, neste momento, em muito boas condições para se lançar na magna empresa de escrever, pelo menos, uma parte da biografia de Salazar. Mais outra, que, julgo, traria muito mais verdade sobre o ditador do que todas as existentes.

Claro que, da leitura que fiz do texto que me cabe agora apresentar, não me posso nem quero eximir da minha condição de militar, antigo aluno desta Academia, e olhar para o que o coronel David Martelo nos traz sobre os oficiais mais responsáveis no tempo dos acontecimentos sobre os quais se debruça. Vejamos.

Enquanto, em 1941, parece que os altos comandos militares integravam oficiais, posso dizer com rudeza de linguagem, domesticados pelo ditador, fiéis servidores sem grande verticalidade e poder de afirmação da vontade – e isso compreende-se pela manhosice de dar poder a um capitão para se sobrepor a generais… e diga-se lá que Salazar não soube integrar, quando precisou, o princípio da luta de classes para dele beneficiar?! – já em 1961, fruto dos contactos havidos com os EUA, com as suas Forças Armadas e as suas práticas democráticas, por causa da integração de Portugal na OTAN, os mais altos responsáveis militares – nem todos, está bem de ver! – começaram a mostrar capacidade para evidenciarem ao ditador novos rumos e novas soluções estratégicas e, por conseguinte, políticas, resultantes da fraqueza do aparelho militar de que dispunham.

Salazar, fiel, também ele, aos princípios de uma política de contenção de despesas, de modo a não desequilibrar o orçamento do Estado, foi sempre protelando o equipamento e o rearmamento moderno e eficaz das Forças Armadas. Confiava, como a dado passo afirma David Martelo, excessivamente em Nossa Senhora de Fátima e isso está ressaltado, na obra, por um embaixador britânico em Lisboa, bem conhecedor das características dos Portugueses e do ditador. E, assim, Salazar limitou-se a exaltar, até limites pouco convenientes, o messianismo português e a nossa tendência para a solução miraculosa de tudo o que deve começar por ser resolvido com os pés bem assentes no chão sem esperar mais do que aquilo que as nossas capacidades nos permitirem.

Claro que a minha leitura deste livro leva a interrogar-me, indo um pouco mais longe do que o meu Amigo Martelo, sobre se o apego de Salazar ao equilíbrio orçamental era o contraponto de um desprezo constante pela defesa e segurança nacionais que caracteriza os Portugueses. Na verdade, enquanto povo, somos avessos a gastos com as Forças Armadas por as acharmos inúteis. E isto não é de hoje nem de ontem! É de sempre! Os nossos quartéis, as nossas bases, os nossos navios, podem chegar ao limite do que é operacionalmente julgado mínimo, que não há mais reparo ou reclamação, para além de uns tímidos queixumes de alguns oficiais com altas responsabilidades hierárquicas. E não se fazem reparos, porque os altos escalões das Forças Armadas se escondem atrás, ou do receio de provocar indisciplina nas fileiras ou das conveniências pessoais que conseguem não ver maculadas, na tranquilidade de uma carreira que, a partir de determinado momento, é de importância mais pessoal do que deveria ser. E a democratização, na sequência do 25 de Abril de 1974, veio facilitar que se escondesse atrás do conceito de não politização das Forças Armadas a incapacidade de fazer sentir que, a continuar nesta senda de poupança financeira, em quase tudo igual à do ditador Salazar, Portugal venha a ter umas Forças Armadas que não passam de uma mera ficção. O silêncio conivente da oficialidade militar de 1941, a falta de coragem e de decisão da oficialidade militar de 1961, não podem continuar em 2021!!! Os oficiais têm de estar cada vez mais atentos àquilo que, em 1941 e em 1961, não estiveram ou não quiseram estar: à política nacional. Porque tomar atenção à política nacional não é fazer política, nem interferir no jogo livre da livre democracia, mas tão-somente perceber quando os limites da sobrevivência da Pátria estão em perigo ou quando nos areópagos mundiais Portugal é motivo de menor consideração, de menor credibilidade e de menor respeito. O coronel David Martelo, neste livro, que é um olhar crítico para o passado, não deixa de, nas últimas páginas, alertar para o futuro. Aliás, permitam-me que faça aqui e agora uma observação julgada pertinente: este livro, no meu exclusivo e pessoal entendimento, foi escrito para satisfazer a dois objectivos bem visíveis, mas não imediatamente legíveis: um, contar dois episódios do passado, onde se evidenciam o desleixo das coisas relativas à defesa e, outro, deixar uma crítica implacável para o presente e para o futuro se continuarmos por esta senda de pôr à frente de tudo o equilíbrio orçamental e a finança! Para reforçar este meu ponto de vista, recordo que David Martelo, cadete meu contemporâneo nesta Academia, jovem como eu nos recuados anos do começo da década de sessenta do século passado, preparado para fazer a guerra num tempo em que a necessidade imperiosa de defender o que era já indefensável por descuidos vários e, acima de tudo, por causa de imprevidências estratégicas de Salazar, quase a concluir esta magnífica obra – cujo valor não se mede pela dimensão material – diz o seguinte, que transcrevo para concluir: «Com tantas reduções de efectivos e tão preocupantes atrasos no reequipamento mais elementar, para um espectador atento, as Forças Armadas portuguesas parecem reunir alguns traços de pura ficção, ficando bem distantes das capacidades que a Constituição da República e o senso comum exigem».

Nada mais tenho a dizer, para não vos ocupar tempo, tirando o brilho a quem deve brilhar nesta altura. O momento é do coronel David Martelo a quem agradeço a confiança depositada para que fizesse a apresentação de um livro tão importante e tão significativamente oportuno.

 

Coronel Luís Alves de Fraga

Sócio Efetivo da Revista Militar

 

Nota da Direção

A Revista Militar felicita o autor e as Edições Sílabo por esta publicação, agradecendo a oferta do livro que enriquecerá o seu acervo bibliográfico.

 

[1]1 Apresentação da Obra no Museu Militar do Porto, no dia 19 de novembro de 2015.

[2]  A Beligerância Portuguesa no Século XX: Constantes e Motivações. Revista de História das Ideias, Coimbra: Instituto de História das Ideias, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ISSN 0870-0958, Vol. 30, (2009), p. 417-434.

Coronel
Luís Alves de Fraga
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