Nº 2580 - Janeiro de 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A lógica da democracia norte-americana
Prof. Doutor
António M. Feijó

A minha especialização é a Literatura Americana e a Literatura Inglesa. Poderei, talvez, falar um pouco sobre os Estados Unidos nesta conjuntura particular. Ensinar, em Portugal, literatura e cultura norte americana é habitualmente difícil, porque os Estados Unidos são um país que toda a gente parece conhecer, e conhecer de um modo exaustivo, mas que, de facto, ninguém conhece.

E isto levanta um problema de percetibilidade do objeto, pois não é claramente percetível de que falamos, quando falamos dos Estados Unidos, quando, por exemplo, falamos da democracia “social” nos Estados Unidos, que é, de facto, a mais avançada no globo.

Aos meus alunos uso um exemplo, o filme de Chaplin ”Um Rei em Nova Iorque”, em que Chaplin é um rei de uma qualquer república balcânica, exilado no Waldorf Astoria, em Nova Iorque, com escasso dinheiro, numa suite que o dinheiro trazido temporariamente assegura. A certa altura, aparece um agente de publicidade norte-americano que propõe que o Rei faça um anúncio pago; o Rei acha a proposta indecorosa e recusa, mas, a dado passo, quando já não há dinheiro para pagar a suite, manda o assessor chamar o agente de publicidade, prevenindo-o desde logo: “Eu faço o anúncio, mas tem de ser uma coisa com bom gosto!...”

O agente de publicidade chega – muito vulgar na aparência, no modo como fala –, tenta persuadir o Rei de como deve fazer o anúncio e, quando o Rei o adverte “Mas tem de ser com bom gosto!...”, o agente de publicidade responde com uma frase que sintetiza a profunda informalidade social norte-americana: “King, you are the boss!

Há uma coisa muito interessante nesta resposta. Em primeiro lugar, “king” é tornado nome próprio, por ignorância da função; o norte-americano desconhece qual seja, toma “king” por um nome. Há particularidades nesta história que não são europeias, mas, agora, irei falar de um modo menos alusivo.

Fala-se muito, hoje, da disfuncionalidade do sistema norte-americano, fala-se, por exemplo, do colapso na relação de eficiência dos dois partidos centrais. Esta disfuncionalidade é, talvez, um pouco exagerada na descrição, embora existente, como irei tentar descrever.

Recentemente, um dos juízes do Supremo Tribunal norte-americano, Stephen Breyer, deu uma entrevista – e lembremo-nos que, neste momento, numa situação muito peculiar, dos nove juízes do supremo tribunal norte-americano, apenas estão oito em funções: o presidente Obama fez uma proposta para a nona posição, que os Republicanos bloquearam no Senado e só o próximo presidente terá a capacidade de propor. Isto leva a um bloqueio eventual, que é a relação 4/4, no sentido de que há quatro juízes percebidos como liberais e quatro juízes como conservadores.

Breyer pertence ao espectro liberal do Supremo Tribunal. Na ocasião que referi, apresentou alguns números interessantes, que, por exemplo, num ano judicial, o Supremo Tribunal norte-americano analisa entre 75 a 80 casos; em 50% desses 75 a 80 casos, a deliberação é unânime, o que é, desde logo, surpreendente. Por outro lado, 20% dos casos têm uma votação final repartida por cinco juízes de um lado e quatro do outro, mas esta divisão 5/4 é politicamente variável, não há um bloco liberal nem há um bloco conservador com uma história de voto consistente; quando, como é actualmente o caso, a divisão do Tribunal é 4/4, poderíamos pensar que o bloqueio se tornaria frequente pela divisão entre liberais e conservadores no tribunal, mas não é assim.

De 72 casos do último ano, apenas 4 foram objeto de uma votação 4/4; desses quatro casos, apenas 2 fariam a primeira página dos jornais pela importância da decisão. A perceção da disfuncionalidade do Supremo Tribunal é, por isso, um pouco exagerada.

Breyer continua dizendo que o problema reside na necessidade de especificação semântica de algumas palavras: “Este é um país muito grande, são 320 milhões de pessoas, e as discussões que aqui se travam são discussões sobre grandes palavras que têm um conteúdo muito lato, palavras como freedom ou liberty. A palavra freedom leva a grandes discussões, não sabemos exatamente o que é, temos de progressivamente lhe dar conteúdo.”

Um outro exemplo, antes de entrar propriamente no que me traz aqui. Aquele que é um dos profissionais mais influentes da política norte-americana das últimas décadas, James Baker, muito próximo da família Bush, que foi secretário de Estado de Reagan e é agora um advogado em Houston, com cerca de 90 anos, numa entrevista ao Financial Times – há uns três meses –, antes da candidatura de Trump entrar no aparente “colapso” que todos conhecemos, quando questionado sobre o que pensava de uma eleição de Trump disse: “Não estou assustado com isso!”. Poderá parecer inesperado ele dizer isto, porque, no espectro republicano, está mais próximo de uma facção mais civilizada e cordata. A razão por que o diz está no facto de um presidente eleito não ter a capacidade de decisão que as pessoas supõem que tem.

Em relação ao que se passa nos Estados Unidos, neste momento, gostaria de chamar a atenção para uns dois ou três aspetos que me parecem importantes. Em 1949, um grande crítico literário norte-americano, Lionel Trilling, publicou um livro influente chamado The Liberal Imagination, em que começa por dizer que, em 1949, “nos Estados Unidos, o liberalismo não é apenas a tradição intelectual dominante, é também a única tradição intelectual”.

Trilling continua dizendo que não há propriamente ideias reacionárias ou conservadoras em circulação geral, embora existam impulsos conservadores ou reacionários notórios, mas que não há propriamente ideias desse tipo em circulação geral. O liberalismo é a persuasão e o ethos dominantes na sociedade norte-americana.

Mas, recentemente, há cerca de quinze anos, verificamos como o liberalismo está numa aparente e profunda regressão nos Estados Unidos. Por exemplo, George W. Bush, na sua candidatura presidencial, quando queria dizer a palavra “liberal”, substituía-a por “You know, the L word”, expressão decalcada da que se usa em relação a profanidades em inglês, habitualmente referidas por uma perífrase de que aquela foi decalcada: “The F word”.

Ou seja, o liberalismo passou de dominante em 1949 para uma posição defensiva nos anos 1990/2000, se não acossada. Uma filósofa contemporânea, de Harvard, Judith Shklar, na sua tentativa de o fazer ressurgir, esvaziou “liberalismo” de qualquer conteúdo substantivo, dizendo que um liberal é uma pessoa que pensa que o pior que se pode fazer é ser-se cruel, definição esta que qualquer conservador poderá decerto subscrever.

Portanto, consideremos a diferença: em 1949, Trilling diz que o liberalismo é a única persuasão dominante nas ideias; em 1995, Shklar define liberalismo de modo tão vápido e despido de conteúdo. Trilling, porque era um homem muito inteligente invoca, nessa época de domínio intelectual de uma tradição liberal em que se revê, a necessidade de reler o grande filósofo inglês John Stuart Mill que, no século XIX, a dado passo, defendeu que os liberais do seu tempo deviam ler o conservador Burke. Por que deveriam lê-lo?

Mill sugere que se reze deste modo: “Lord enlighten down our enemies”, que se peça que os nossos inimigos sejam iluminados, para que tenham um espírito mais agudo, para que mais clareza nos seus juízos. Porquê? Porque os liberais, em cuja companhia ele se considera estar, correm o perigo da sua intolerância, e não da sua sabedoria e, portanto, que Deus transforme os nossos inimigos conservadores em alguém intelectualmente forte.

Esta tensão tumultuária em redor do Liberalism já vem desde os anos de 1950. Em 1964, a candidatura presidencial republicana de Barry Goldwater, que acabou por ser derrotado por Lyndon Johnson, já tem, em potência, tudo o que está a acontecer agora com Donald Trump.

Goldwater, por exemplo, no seu ataque ao candidato democrático, pôs em questão a legitimidade do candidato. Este não é um debate que, dentro do decoro democrático, reconheça que o seu opositor democrata tem a capacidade de defender ideias que não são as suas, mesmo que de modo robusto. Não, Goldwater põe em questão a legitimidade do candidato democrático, como, aliás, põe a de republicanos liberais: por exemplo, alguns dos seus apoiantes adeptos diziam que Eisenhower era um infiltrado comunista.

O decoro democrático e o modelo bipartidário há muito estabelecido começam a ter uma erosão muito forte a partir da campanha de Goldwater. Num livro que analisa isto muito bem, com um título particularmente adequado à conjuntura atual, O estilo paranóico na política americana, de Richard Hofstadter, este analisa a emergência de Goldwater e expõe como este corroeu todo o decoro democrático, justamente porque visava deslegitimar o opositor.

Este movimento vê-se em coisas triviais: quando Goldwater perdeu a eleição, só muito tardiamente telefonou ao candidato vitorioso, quando o decoro do regime estipulava que as pessoas dessem os parabéns imediatamente pela vitória, gesto que não releva de uma noção de etiqueta, mas consagra a alternância, e a concessão pelo derrotado à legitimidade dessa alternância. O tom intemperado na política americana que nós vemos, neste momento, por exemplo, em Trump, pode fazer-nos pensar “ah, isto é uma patologia recente ou uma patologia contemporânea”, mas não é o caso, foi frequentemente este o tom. Lincoln, por exemplo, era descrito pelos seus opositores como baboon, como um orangotango. A intemperança no debate democrático é assim, desde o início. Pode fazer-se facilmente esse rastreio vendo os epítetos que foram sempre usados.

Mas, continuando um pouco, eu gostava de chamar a atenção também para alguns aspetos dessa campanha de Goldwater contra Johnson. Um colunista conservador, recentemente falecido, disse que Goldwater quebrou uma regra da política eleitoral antes de uma convenção do partido, que consiste em que o candidato vencedor na convenção deve apaziguar os apoiantes do correligionário derrotado, mas Goldwater não fez isso: em vez de apaziguar os opositores, a única coisa que fez foi titilar os preconceitos dos seus apoiantes, não parecendo interessado em convencer ninguém. Estas são posições que põem em questão o próprio sistema.

Há uma diferença no sistema americano entre aquilo que se pode descrever como ‘liberalismo procedimental’, quando, por exemplo, dizemos que neste conjunto de novos juízes, deve haver juízes de todas as sensibilidades: liberais, conservadores…, porque tal diversidade de opinião é um bem em si mesmo, porque no “mercado das ideias” é bom que haja essa robustez. Este liberalismo procedimental leva, aliás, a que, por exemplo, na eleição em que o Gore perdeu contra o Bush, o movimento do candidato talvez falazmente derrotado é imediatamente dizer: “mesmo que o resultado eleitoral seja questionável, we have to move on”. “To move on” tem a ver com preservar o sistema, preservar a liberalidade procedimental do sistema, e é isso que está a ser questionado ostensivamente com a candidatura de Trump. Deste ponto de vista, a candidatura de Trump tem muitos precedentes na história americana, tem essa irredutibilidade de posição que fere a essência do sistema.

Gostaria apenas de concluir com uma observação sobre isso. Recentemente, hoje, ouvi alguém, penso que da família Trump, anunciar o propósito de criar uma Trump TV. A Trump TV, deste modo anunciada, é algo que se fará depois das eleições, na presunção de que o candidato possa ser derrotado. Este anúncio é altamente sintomático deste tipo de política. Este tipo de política pode não querer ganhar, é exercida por pessoas que acham que estão certas e partem de uma ética de convicção muito profunda contra o opositor, porque o opositor representa coisas que são, para eles, inaceitáveis.

Gostava também só de acabar com a pequena observação mais genérica, que tem a ver com os Estados Unidos. Em face a tudo o que estou a dizer, poderá pensar-se que é grande o grau de perturbação endógena destes acontecimentos, pois até aqueles que admiram o sistema norte-americano se mortificam com algumas coisas que nele veem passar-se.

Eu admiro o sistema norte-americano e também sofro com essa perturbação episódica, quando vejo notícias recentes. De facto, comecei por falar da relativa impercetibilidade do sistema norte-americano aos europeus. Mas há, no entanto, algumas constatações que me parecem interessantes. Por exemplo, se olharmos para a história do séc. XX, e se pensarmos para as alterações massivas que, na sequência, por exemplo, do marxismo, tiveram uma erupção continental na União Soviética, na China, etc., poderíamos pensar que, decisivas no séc. XX, foram decerto essas erupções que capturaram a imaginação de gerações de neófitos e conversos. O sistema norte-americano, por seu turno, e em contraste, tem uma lógica, que é a lógica da progressão inelutável da igualdade. A lógica de um sistema democrático consiste na progressão inelutável de igualdade, mesmo que o espectáculo dessa progressão seja muitas vezes ofuscado por aparentes reversões de curso.

Se olharmos para o que aconteceu, nas últimas décadas, nos Estados Unidos, constatamos como projectos de emancipação, tendo-se iniciado com os direitos civis dos negros, rapidamente passaram aos direitos civis das mulheres com a emergência do feminismo, e aos gay and lesbian rights. Na emergência destas sucessivas minorias, ou aparentes minorias, não privilegiadas que são sucessivamente admitidas à mesa em que se recortam os recursos tangíveis e simbólicos, é a democracia que promove, inexorável, a igualdade.

Este impulso igualitário será, a prazo, mais decisivo do que qualquer outro dos projetos políticos maiores que referi. Uma possibilidade todavia se levanta, a de constatar que esses projetos emancipatórios não estão mortos, porque parece haver sempre uma recrudescência nestas coisas, quando as circunstâncias se alteram, e não é, decerto, por acaso que o lugar onde o marxismo reside hoje de modo mais vivo é nos departamentos de literatura das universidades norte-americanas.

Era isto que eu queria trazer para a discussão.

Muito obrigado.

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Prof. Doutor

António M. Feijó

Licenciado em Estudos Anglo-Americanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1977), Mestre em Literatura Inglesa e Americana pela State University of New York (Albany) (1980), Doutor em Literatura Inglesa e Americana pela Brown University (1985).

Professor Catedrático do Departamento de Estudos Anglísticos e do Programa em Teoria da Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Director e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2008-2013).

A sua actividade de ensino e investigação tem incidido em domínios como a Teoria da Literatura, a literatura do Renascimento ingl&eci

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