Nº 2597/2598 - Junho/Julho de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Regresso ao futuro. A persistência do militar-leninismo enquanto conceptualização da guerra
Coronel
Nuno Correia Neves

Introdução

A revolução russa de há um século não se limitou apenas a modificar radicalmente a natureza de um dos atores principais do sistema internacional. Introduziu igualmente uma nova forma de conceptualizar o próprio sistema, que se caracteriza por uma perspetiva de bipolaridade ideológica permanente.

Se o marxismo já assumia uma natureza bipolar, tratando todos os problemas numa lógica de luta de classes em que um campo trabalhava para a construção do comunismo e todos os outros campos se lhe opunham, a sua transformação em leninismo, com a criação de um estado comunista, permitiu que essa luta do âmbito da política invadisse o campo das relações internacionais.

O sistema internacional passou a incluir um ator que, assumindo o princípio realista de que todos os estados necessitam de garantir a sua sobrevivência, se propunha ultrapassar no futuro a anarquia desse sistema por uma nova ordem comunista de aplicação universal, criando um contexto em que se substituiu a igualdade entre os atores pela divisão forçada em dois campos: comunistas e não comunistas.

Esta visão de um progresso divisor entre os que constroem um futuro idealizado e os que se lhe opõem, que permite uma bipolarização imediata e radical entre um nós idealizado e um eles demonizado, acrescenta uma nova dimensão à competição entre estados, ao assumir o objetivo de transformar o outro. Essa conceção obrigou a uma nova conceptualização da guerra, que para um comunista já não é, como em Clausewitz, uma forma de violência para obrigar o outro a submeter-se à nossa vontade, mas uma ação permanente para transformar o outro à nossa imagem.

 

O militar-leninismo

Nos últimos anos, têm surgido debates relativos à conceptualização da guerra que abordam a possibilidade de a guerra estar a dar um salto geracional, caracterizando-a como sendo de quinta geração (Reed 2008) ou, na fórmula introduzida por Liang e Xiangsui, “sem restrições” (Liang e Xiangsui 1999).

Este debate, aparentemente novo e resultante da introdução de abordagens multidisciplinares ao problema da guerra, decorrentes da conjugação dos efeitos da globalização com o esgotamento do modelo da guerra convencional como “produtor” de resultados políticos, corresponde, na realidade, ao recuperar de conceitos introduzidos há um século.

Corresponde, igualmente, não a uma aceitação ou rejeição da atualidade de Clausewitz, mas ao choque entre duas leituras da ideia base do pensador militar prussiano, quando definiu a guerra como “a continuação da política por outros meios”.

Para a escola clássica, desta leitura retira-se um momento em que a ação militar se substitui aos meios da política, por estes se terem esgotado. Existe, assim, um momento para a política e um momento para a guerra, subordinando-se a segunda à primeira nos objetivos, mas não devendo a conduta da guerra ao nível operacional ser condicionada pela política. Esta leitura permite limitar a guerra à definição clássica de “a guerra é um ato de violência, cujo objetivo é forçar o adversário a aceitar a nossa vontade” (Clausewitz, citado por Couto, 1988).

Esta limitação da guerra não exclui, como o explica Cabral Couto, todas as outras opções à disposição dos estados para impor a sua vontade, mas remete-as para a coação. Para Cabral Couto, “a coação pode considerar-se, (…) sinónimo de guerra, quer se caracterize pelo emprego da força militar, quer por uma qualquer aplicação de outros elementos do potencial nacional, conjugada com o risco de emprego da força militar” e “(…) a coacção pode ser exercida através das seguintes formas principais, que diz respeito aos meios empregados e não aos efeitos obtidos:

– acção psicológica;

– acção diplomática;

– acção política clandestina no interior do adversário;

– acção económica;

– acção militar” (Couto 1988).

Cabral Couto explicita, no entanto, a diferença que caracteriza a guerra, ao dizer que “como carácter distintivo, ressalta também que a guerra é uma violência organizada, que se reflete na escolha dos meios, no doseamento da violência (…)”. Este doseamento da violência, implica que a excecionalidade da guerra legitima ações que, pelo seu carácter destrutivo e pelo seu grau de violência, não são de outra forma aceitáveis. Cabral Couto tem assim uma visão abrangente da guerra, mas na qual devemos considerar que as diversas formas de coação que indica são multiplicadores da capacidade militar de um estado, e que a sua ação se torna coerciva por ter subjacente a possibilidade do uso da força. Para Couto, uma ação económica como forma de coação pode ser considerada como um sinónimo de guerra se estiver inserida numa lógica de preparação de uma possível guerra. A competição económica entre elementos de dois estados não é, nesta lógica, por si própria, uma guerra económica.

Esta separação nunca foi definida neste termos para os teóricos de inspiração leninista. Como indica David Glantz “os Soviéticos estudam a guerra no contexto da “Ciência Militar”, uma das muitas ciências que procuram explicar o processo histórico (…), estudando a guerra no contexto da totalidade da atividade humana” e “a definição (da Guerra) distingue entre guerra “voina” que inclui a guerra económica, diplomática, ideológica, científico-técnica e outras formas de luta, e o conflito armado “vooruzhennaia bor’ba” que corresponde ao combate no campo de batalha” (Glantz 1991).

Esta diferença entre os dois campos poderá parecer superficial, podendo ser vista como essencialmente semântica, correspondendo a guerra no sentido soviético “voina” à coação e o conflito armado à guerra no sentido clássico, mas essa equiparação afastaria o enorme salto moral que está implícito em considerar como guerra a ação “económica, diplomática, ideológica, científico-técnica e outras formas de luta”.

 

A I Guerra Mundial e as origens do militar-leninismo

A I Guerra Mundial (I GM) não foi para os marxistas um fenómeno inesperado. Já em 1887, Engels, que era aquilo a que hoje chamaríamos um “comentador de assuntos militares” e que escrevera regularmente sobre essa temática para o Manchester Guardian (Neves 2015), descreveu uma futura guerra generalizada na Europa capitalista (Engels, citado por Kipp, 1985) como sendo:

“(...) uma guerra universal de uma amplitude sem precedentes, de uma força sem precedentes. Oito a dez milhões de soldados vão destruir-se mutuamente e enquanto o fazem vão espoliar a Europa de uma forma que uma praga de gafanhotos não conseguiria igualar. A devastação será a da Guerra dos Trinta anos mas condensada em três ou quatro anos e distribuída por todo o continente. Fome, epidemias, a escravização das tropas e das massas causada pelas extremas carências, a desesperada manipulação dos negócios da indústria e dos mecanismos de crédito, tudo acabando numa bancarrota geral: O colapso de velhos estados e da sua apregoada sabedoria. A impossibilidade de prever como tudo acabará e quem emergirá vencedor desta luta. Apenas um resultado é seguro, a exaustão universal e a criação das condições para a vitória final da classe trabalhadora”.

Engels estava certo em todas as suas predições, menos uma. A guerra veio, de facto, criar as condições para revoltas de inspiração comunista, mas apenas nos países derrotados, e com sucesso apenas num deles.

Depois do sucesso da revolução bolchevique, as esperanças comunistas de réplicas por toda a Europa foram falhando sucessivamente. Na Alemanha, houve uma primeira tentativa falhada em Berlim, pelo movimento Spartakista, em 1918, seguida por um segundo falhanço na Baviera (1919 a 1921) e um terceiro, em 1923. A breve revolução finlandesa foi esmagada pelas forças conservadoras, com apoio alemão (Gerwarth 2017). A tentativa de revolução iniciada por Gramsci, em Itália, falhou totalmente, o regime comunista de Kun, na Hungria, colapsou sob o bloqueio aliado, a resistência interna e a pressão militar romena e a população da Polónia, insensível à possibilidade de uma revolução, apoiou o seu governo nacionalista (Service, 2007). Os comunistas tinham tentado explorar a destruição da velha ordem pela guerra, mas foram surpreendidos pela resiliência inesperada dos setores conservadores da sociedade, tipificados pela criação de Freikorps para colmatar a incapacidade do Exército Alemão de controlar o país, confrontando os comunistas com a realidade imprevista de que a burguesia estava preparada para lutar em defender o seu estilo de vida (Neves 2017).

 

A conceptualização da guerra no pensamento político militar soviético

Os fracassos das tentativas de revolução comunista do final da I GM esvaziaram a lógica marxista de revolução global, e forçaram Lenine a repensar a construção de União Soviética numa lógica de oposição bipolar entre o único estado comunista e o imperialismo.

Esta lógica traduziu-se em suas dimensões: por um lado, na implementação de uma política de planeamento económico centralizado, cujo princípio orientador era a construção de um instrumento militar desproporcionalmente poderoso (face aos recursos económicos), mesmo que com o sacrifício das condições de vida da população. Esta política conseguiu, no período que vai da revolução até aos anos trinta, construir o Exército e a Força Aérea mais poderosos do mundo, conseguindo, por um breve intervalo, entre 1934 e 1938, não apenas vantagem quantitativa mas igualmente qualitativa nos planos técnico e doutrinário (Neves 2015), e preparando-se para entrar na competição naval, apenas para autodestruir essa vantagem com a aplicação das purgas estalinistas às forças armadas, debilitando profundamente o aparelho militar na altura em que ele era mais necessário; por outro, a União Soviética transformou o movimento comunista internacional num agente perfeitamente subordinado à sua política (Service 2007).

Se a instrumentalização de cidadãos dos nossos adversários para servir as nossas necessidades não é de forma alguma uma novidade, a União Soviética conseguiu elevar essa ação a um grau superior de controlo com uma deslocalização da lealdade primária dos comunistas, que aceitaram a identificação dos interesses do movimento com os interesses da União Soviética, e a colocação desses interesses acima do seu próprio interesse nacional. Na prática, passaram da clássica instrumentalização para a subordinação pura e simples. Este fenómeno revelou a sua dimensão quando a União Soviética forçou os comunistas europeus a uma neutralidade contra natura na luta dos seus países contra a Alemanha Nazi, da qual só se libertaram com a invasão da União Soviética, em 1941 (Service 2007).

Uma das facetas interessantes da ação exercida pela União Soviética foi a procura de fragilidades internas nos seus adversários. Um exemplo foi a insistência de Moscovo para com os comunistas norte-americanos (inicialmente o Workers Party of America e, depois de 1930, com a designação mais transparente de United States Communist Party), apesar das resistências resultantes de algum racismo existente dentro do partido (Service, 2017), para que explorassem o descontentamento da população afro-americana, inclusivamente promovendo a ideia da constituição, no Sul dos Estados Unidos, de uma República (presumivelmente socialista) de afro-americanos (Service, 2007). Este continuou a ser um ponto forte da ação comunista nos Estados Unidos, nomeadamente como contrapropaganda nas questões de direitos humanos, durante toda a Guerra Fria (Joffe, 2017) e é interessante, porque demonstra o visar da coesão do adversário.

Esta dimensão foi apresentada, entre outros, pelo Marechal Mikhail Tukhachevsy (citado por Simpkin, 1987) que escreveu, em 1928, sobre a natureza da guerra:

“(…) Nos tempos modernos a conduta da guerra (…) passou para as mãos do governo. A política do estado ao travar a guerra encontra expressão nos objetivos da guerra, na luta de classes, na economia e na política interna e externa.

A guerra não é o único recurso da política, nem é apenas confinada a operações militares. As ações das Forças Armadas são acompanhadas pela pressão organizada e concertada de ofensivas em todas as frentes do conflito, económica, política e outras”.

O militar-leninismo é assim caracterizável como um modelo abrangente de condução da política, quer interna quer externa, do Estado, que pode ser definido como uma forma extrema de realismo que assume não apenas a necessidade de cada estado temer a possibilidade de uma guerra, mas a existência de facto dessa guerra de forma continua, e cujas características gerais, para além da matriz marxista, são:

1. A redução de todas as situações a uma oposição entre campos definidos ideologicamente, do que resulta uma bipolaridade permanente em que um dos campos é caracterizado como “nós” e o outro campo são todos os outros;

2. A assunção do caráter de guerra dessa oposição, numa lógica supra domínio, retirando qualquer limitação legal ou moral à ação;

3. A capacidade de agir no interior do adversário, através de elementos sob o nosso controlo;

4. A militarização do estado, decorrente do assumir de um estado de guerra permanente, com a centralização do controle de todas as atividades numa lógica de mobilização;

5. O carácter transformativo dos objetivos da ação sobre o adversário, no qual, para um leninista, o objetivo da guerra não é forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade, mas transformar o adversário à nossa imagem.

A aplicação plena deste modelo viria a concretizar-se na II Guerra Mundial (II GM), onde, ao contrário dos Aliados (e, em particular, dos Estados Unidos), a União Soviética condicionou sempre a conduta das operações militares aos objetivos políticos.

 

A “guerra híbrida” de Estaline – Bulgária 1944

De todos os países europeus sujeitos à ação transformacional do “rolo compressor” soviético, em 1944/1945, a Bulgária é aquele que se reveste de maior interesse como demonstração da natureza supra domínio do militar-leninismo. A Bulgária tinha entrado na II GM com imensa relutância, acedendo à pressão alemã para o fazer, apenas em dezembro de 1941, e conseguindo distanciar-se suficientemente da “cruzada contra o bolchevismo” para declarar guerra apenas aos Estados Unidos e ao Reino Unido, mas evitando declarar guerra à União Soviética, depois de ter facilitado a atuação das forças alemãs na invasão da Jugoslávia e da Grécia (Bauer, 1970).

Esta situação estranha manteve-se sem alterações, apesar da morte do rei Boris, em 28 de agosto de 1943, em circunstâncias misteriosas depois de uma visita a Hitler, deixando na regência um triunvirato constituído pelo Príncipe Cirilo (irmão do rei Boris), o Professor Filipov e o General Michov, em nome do Rei Simeão, ainda criança. Os búlgaros sentiram diretamente os efeitos da guerra apenas quando os aliados iniciaram ações de bombardeamento contra Sofia, em novembro de 1943, tendo aumentado progressivamente os bombardeamentos com o objetivo de forçar a Bulgária a um cessar-fogo. O evento que veio a pressionar decisivamente a regência Búlgara foi, no entanto, a mudança de campo da Roménia para os Aliados, em 23 de agosto de 1944, que deixava o país completamente exposto e que levou a regência a pedir aos aliados ocidentais condições para cessar-fogo, ao mesmo tempo que a Alemanha ordenava a evacuação dos Balcãs onde tinha, nesse momento, 345 000 militares.

A União Soviética forçou então a situação, manobrando diplomaticamente para evitar uma paz separada entre a Bulgária e os Aliados Ocidentais, ao mesmo tempo que mobilizava os comunistas búlgaros para agir na frente interna e declarava guerra à Bulgária, em 5 de setembro de 1944, após o que a Terceira Frente Ucraniana invadiu por Silistria e Ruchtchuk, facilitando que um movimento nacional búlgaro, de liderança comunista, tomasse o poder por um golpe de estado, a 9 de setembro. De nada serviu à regência a iniciativa de declarar guerra à Alemanha, a 8 de setembro, que criou uma situação perfeitamente esquizofrénica em que o governo búlgaro ordenou às suas tropas para se deslocarem e se oporem aos alemães, ao mesmo tempo que eram invadidos pelos soviéticos, conseguindo estar simultaneamente nos dois campos da guerra durante um dia. O V Exército Búlgaro (10 Divisões, incluindo uma Blindada, recentemente equipada pelos alemães com 88 Panzer IV e 50 StuG III), tentou de facto opor-se à retirada alemã dos Balcãs, com sucesso parcial (Bauer, 1970).

Em 2 de fevereiro de 1945, os regentes são fuzilados, depois de um julgamento sumário e, em novembro de 1945, a frente patriótica, dominada pelos comunistas, consegue 86% dos votos numas eleições denunciadas pelo Ocidente como violentas e fraudulentas, após o que país se torna numa república socialista e um aliado da União Soviética, até ao colapso do bloco comunista (Service, 2007).

 

A “guerra sem restrições” como modelo pós-soviético

A escritora e jornalista espanhola Rosa Pareda, num artigo do El País, escrito a propósito da crise financeira de 2008 (Pareda, 2008), evocou a primeira experiência falhada de monoteísmo, pelo faraó Akhenaton, para dizer que da mesma forma que a experiência falhada de impor o monoteísmo no Egito não impediu, por mais que pudesse parecê-lo na época, o regresso posterior do monoteísmo como ideia, o colapso da experiência comunista na União Soviética não significa necessariamente a impossibilidade do regresso de conceitos surgidos com o comunismo enquanto ideias.

No campo das doutrinas militares, um regresso deste género manifestou-se com uma recuperação da conceptualização da guerra soviética, numa forma evoluída, por teóricos chineses, enquanto abordagem alternativa ao aparente consenso Clausewitziano, após a guerra do Golfo de 1991.

A Guerra do Golfo representou o apogeu máximo da aplicação dos conceitos clássicos de guerra. A uma agressão que contrariava claramente a ordem jurídica internacional, seguiu-se uma resposta que passou por um mandato claro das Nações Unidas, por um consenso amplo internacional e pela formação de uma coligação multinacional que esgotou progressivamente as formas estabelecidas de coação, indo ao ponto de iniciar pontualmente as ações militares após a hora limite dos prazos estabelecidos para o acatar das resoluções.

A essa exemplaridade doutrinária correspondeu a eficiência da aplicação das mais recentes doutrinas e tecnologias com a obtenção de resultados, cuja assimetria em termos de “kill ratios” recordava os conflitos coloniais do século XIX. Este conflito foi igualmente marcado pelo fracasso das tentativas iraquianas de criar divisões na coligação pelo apelo a fatores religiosos ou pelas provocações a Israel. Para os estudos da guerra, como para as ciências políticas, parecia ter-se atingido um “Fim da História”, com Clausewitz no lugar de Kant.

Se a União Soviética, nesse momento, atravessava uma crise demasiado profunda para poder apresentar uma reconceptualização, a resposta a este momento doutrinário unipolar viria a surgir na China, sendo tornado público com a publicação, em 1999, do livro “Unrestricted Warfare”, dos Coronéis Qiau Liang e Wang Xiangsui, dois oficiais que tinham feito carreira como oficiais políticos e ligados aos meios académicos do Exército Popular de Libertação Nacional.

Este trabalho insere-se no contexto de uma profunda reinvenção das forças armadas chinesas, que iniciaram, nos anos de 1990, um processo de redução maciça de efetivos na sua componente terrestre e um desenvolvimento acelerado da qualidade da sua Força Aérea e Marinha, ao mesmo tempo que procuravam igualar as melhores forças ocidentais, quer na qualidade dos meios quer na evolução da doutrina e do treino e preparação das forças, num processo delineado pelas “Diretivas Estratégicas Militares” de 1993 da Comissão Militar Central do Partido Comunista Chinês, o órgão máximo do país em questões de defesa. Esta reorganização correspondia, igualmente, a uma profunda evolução então em curso da China, nos planos económico e social.

Se esta evolução viria a ser impressionante ao nível do instrumento militar, o interesse do conceito de “guerra sem restrições”, de Liang e Xiangsui, reside, sobretudo, na assunção de que a guerra é um fenómeno constante, supradomínio, que se concretiza na ação contra o adversário em domínios tão diversos como “o económico, o psicológico, o social, a instrumentalização do direito internacional e outros (Liang e Xiangsui, 1999).

Os autores justificam esta abordagem com a necessidade de as potências (que não os Estados Unidos) evitarem os conflitos convencionais face à demonstrada capacidade destrutiva das forças militares norte americanas, recorrendo a outros domínios de ação, e com a evolução do mundo que consideram ter, pela aceleração da tecnologia e da globalização, tornado impossíveis abordagens centradas num único domínio e numa única região. A guerra passa a ser, assim, inevitavelmente global e permanente. Para Liang e Xiangsui, qualquer ação em qualquer domínio que contribuía para o enfraquecimento do estado pode ser vista como uma forma de guerra. Para eles, um especulador financeiro que ataca a moeda de um país empobrecendo-o está a praticar guerra financeira (e evocam a possibilidade de o estado visado se defender, matando-o), mesmo que a sua ação não esteja enquadrada em qualquer conflito entre estados.

Embora nunca o mencionando, este conceito de guerra recupera quase integralmente a distinção entre “voina” (guerra) e “vooruzhennaia bor’ba” (conflito armado) presente na doutrina soviética, como se pode deduzir do quadro 1:

Quadro 1 – Comparação do militar-leninismo com a Unrestricted Warfare.

Características

Militar-leninismo

Unrestricted Warfare

Bipolaridade permanente entre campos definidos ideologicamente.

Sim, numa redução ao binómio comunismo vs imperialismo.

Não.

No limite, China vs EUA, mas aplicável a todas as situações.

Assunção do carácter de guerra, numa lógica supra domínio.

Sim.

Sim.

Capacidade de agir no interior do adversário, através de elementos sob o nosso controlo.

Sim, no domínio político, através do movimento comunista internacional.

Sim (por exemplo, no domínio económico, através do setor empresarial e financeiro do estado).

Militarização do estado, com a centralização do controle de todas as atividades.

Sim, através do partido.

Sim, através do partido.

Carácter transformativo dos objetivos da ação sobre o adversário.

Sim, pela construção de regimes comunistas.

Não. A ação chinesa a nível internacional não tem revelado qualquer esforço transformativo sobre os países onde se exerce.

 

A “retirada” dos elementos ideológicos vem assim retirar elementos à guerra sem restrições que, se por um lado, contribuíram para o sucesso soviético no contexto muito particular da II GM, contribuíram igualmente para radicalizar a resistência ao comunismo.

Podemos, assim, sintetizar a recuperação de conceitos soviéticos pelos chineses na fórmula

“Guerra sem restrições” = (Guerra leninista – Guerra de classes) + Globalização

 

A persistência do modelo na Rússia pós-soviética

A atuação da Rússia nas suas intervenções, no século XXI, e principalmente no recente conflito na Ucrânia, foi classificada pela NATO como uma “guerra híbrida”. Essa atuação tem muitas semelhanças com a conceptualização da guerra da escola soviética, mas para estabelecer uma continuidade é necessário efetuar uma comparação nos cinco elementos acima descritos que caracterizavam o modelo militar-leninista (ver quadro 2).

Quadro 2 – Comparação do militar-leninismo com a “guerra híbrida”.

Características

Militar-leninismo

“Guerra híbrida” (Rússia)

Bipolaridade permanente entre campos definidos ideologicamente

Sim, numa redução ao binómio comunismo vs imperialismo.

Sim, mas limitada à construção de uma situação de “cerco” que inviabiliza a sua globalização.

Assunção do caráter de guerra, numa lógica supra domínio.

Sim.

Sim, como demonstrado pela utilização coordenada de ações em múltiplos domínios sem restrições.

Capacidade de agir no interior do adversário, através de elementos sob o nosso controlo.

Sim, no domínio político através do movimento comunista internacional.

Sim, mas limitada às minorias russas existentes.

Militarização do estado, com a centralização do controle de todas as atividades.

Sim, através do partido.

Sim, através da crescente centralização do poder.

Carácter transformativo dos objetivos da ação sobre o adversário.

Sim, pela construção de regimes comunistas.

Não. Com a exceção da possibilidade de anexação, não há um modelo exportável que possa ser imposto.

 

Da análise da aplicabilidade das características à intervenção russa na Ucrânia, resulta claro que se trata de uma evolução do modelo soviético, mas ao qual a retirada do pressuposto ideológico de base reduziu a aplicabilidade, que fica estritamente limitada aos países onde exista uma minoria significativa de populações russas.

 

A adaptação de contra-modelos nos Estados Unidos

O sucesso conseguido pelos soviéticos no final da II GM, ao transformar o leste da Europa em Estados Satélite, seguido pela vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa, provocou uma reação Ocidental que integrou um dos conceitos base soviéticos, a redução à bipolaridade ideológica. A lógica do Containment sobrepunha-se, assim, ao realismo clássico dos interesses nacionais para caracterizar os estados em dois campos ideológicos, comunistas e anticomunistas.

A Guerra Fria permitiu aos Estados Unidos integrar na sua política uma lógica de guerra permanente, permitindo um abrandamento limitado das restrições morais e legais inerentes ao binómio Guerra e Paz. Ao agir contra o bloco comunista, empregando todos os instrumentos ao seu dispor, os Estados Unidos incorporaram na sua política um carácter supradomínio e viriam, ao assumir a necessidade de transformar os regimes comunistas em regimes democráticos, a assumir também o carácter transformativo do adversário. Esta característica de procurar a transformação do adversário, já presente nos projetos de “parcerias para a paz” e nas ações de “State Building“ dos anos de 1990, viria a atingir o seu apogeu com a aplicação de uma agenda neoconservadora que incluía o uso da força militar para forçar a transformação de um estado. Mas a aplicação deste conceito no Iraque, em 2003, viria rapidamente a demonstrar a dificuldade de agir sobre um estado sem controlar elementos organizados no seu interior.

A tentativa de assumir uma postura de transformação do adversário viria a confrontar-se com a realidade de que a democracia, por mais desejável que seja, não é passível de ser imposta. Os Estados Unidos, que tinham, numa lógica de contenção do comunismo, sido bem sucedidos a impor ditaduras em várias ocasiões durante a Guerra Fria (como no Irão, em 1953, ou no Chile, em 1973) descobriram, no pós-Guerra Fria, a impossibilidade de impor a instauração de regimes democráticos em países não preparados para se democratizarem sozinhos.

Recentemente, face à necessidade de encontrar uma conceptualização que permita enquadrar o longo conflito em que os Estados Unidos estão envolvidos, desde os ataques de 11 de setembro de 2001, surgiram nos meios académicos militares norte americanos teorizações que se aproximam dos conceitos defendidos pelos Coronéis Liang e Xiangsui, dos quais a conceptualização de guerras de quinta geração é a que mais se aproxima das conceções chinesas.

O quadro 3 identifica as várias aproximações da conceptualização da guerra nos Estados Unidos ao longo do tempo, verificando-se que o elemento mais específico e definidor do leninismo é a centralização resultante da aplicação de um modelo ideológico totalitário.

Quadro 3 – A conceptualização da guerra nos Estados Unidos, desde a II GM até à atualidade

Características

Período

Aplicação

Bipolaridade permanente entre campos definidos ideologicamente.

1945 a 1991

Parcial. Houve uma tentativa de redução ao binómio comunismo vs anticomunismo, atingindo o seu expoente máximo com a administração Reagan, mas sempre limitada pela pluralidade da sociedade americana. A administração Bush tentou recuperar esta dimensão na lógica do “connosco ou com os terroristas”, mas sem sucesso.

Assunção do caráter de guerra, numa lógica supra domínio.

1980 a 1990

Parcial. Conjugação de ações políticas e económicas para enfraquecer a União Soviética, mas não sendo demonstrável a integração num conceito de guerra supra domínio.

Capacidade de agir no interior do adversário, através de elementos sob o nosso controlo.

1945 a 1990

Limitada. Ocasionalmente eficaz em ações contra regimes considerados hostis, como no Chile, em 1973.

Militarização do estado, com a centralização do controle de todas as atividades.

2011 a 2018

Não, embora se assista a uma lógica de militarização da ação policial, após 2001, e a um reforço do aparelho de segurança interna.

Carácter transformativo dos objetivos da ação sobre o adversário.

1991 a 2013

Fomentação do modelo democrático numa lógica de “State Building” ou através de parcerias seguida por tentativas de transformação por ação militar ou do apoio a revoltas populares.

 

 

Estas aproximações temporárias a conceitos empregues pelos leninistas são forçosamente parciais. Como já vimos, o elemento essencial do leninismo é a centralização, com a subordinação de tudo e de todos ao fim último da vitória numa luta entre um nós idealizado e um eles demonizado. Implica um grau de desumanização incompatível com uma sociedade democrática. Se é recorrente na história dos Estados Unidos, depois da II GM, o desvio para práticas que implicam a inexistência de limites morais e legais, esses desvios são corrigidos mais tarde ou mais cedo pelos mecanismos da democracia.

 

 

O caso do “islamismo radical”

A aplicação da matriz de comparação às características do “islão radical” permite identificar a presença das características operativas do militar-leninismo, em especial dos seus dois elementos definidores, que são a redução da visão do mundo à divisão entre dois campos, levando, no caso do “islão radical”, ao extremo da quase literalidade a demonização do outro, e a natureza transformacional dos seus objetivos (ver quadro 4).

Quadro 4 – As semelhanças entre o “islamismo radical” e o militar-leninismo.

Características

Militar-leninismo

“Islão radical”

Bipolaridade permanente entre campos definidos ideologicamente.

Sim, numa redução ao binómio comunismo vs imperialismo.

Sim numa redução ao binómio Fiéis vs Infiéis.

Assunção do caráter de guerra, numa lógica supra domínio.

Sim.

Sim.

Capacidade de agir no interior do adversário, através de elementos sob o nosso controlo.

Sim, no domínio político através do movimento comunista internacional.

Sim, supra domínio, através das comunidades religiosas e da ação de elementos isolados.

Militarização do estado, com a centralização do controle de todas as atividades.

Sim, através do partido.

Potencialmente, sim.

Carácter transformativo dos objetivos da ação sobre o adversário.

Sim, pela construção de regimes comunistas.

Sim, pela construção de regimes islâmicos.

 

Conclusões

O leninismo não é apenas o socialismo mais a eletrificação do país. Corresponde a uma visão global de transformação que se constrói através de uma militarização das ideias politicas, e que subordina todas as ações do presente a um futuro definido ideologicamente.

Está conceção cria um problema inultrapassável aos comunistas no quadro das relações internacionais. Qualquer estado não comunista está, na sua relação com um estado comunista, confrontado não apenas com um adversário, mas com uma ameaça existencial, o que torna qualquer colaboração, que não seja apenas instrumental, impossível. O leninismo veio, assim, condicionar as relações internacionais de forma global. A sua capacidade de controlar o movimento comunista internacional obrigava qualquer estado com um partido comunista ativo a ter que lidar com um potencial inimigo interno, e a forma confrontacional como trata todas as situações contribuiu para um permanente agudizar das tensões e gerou, nos anos vinte e trinta do século XX, como reação a uma radicalização das políticas na maioria dos estados europeus, a qual contribuiu para aumentar a destruição e o horror da II GM.

A existência de uma ameaça transformacional, quando levada a sério, provoca uma resposta simétrica e total. A essência do Containment, e a chave do triunfo do Ocidente na Guerra Fria, foi a ideia de que o comunismo era uma ameaça em todas as suas formas e tinha que ser combatido, a qualquer custo, onde quer que se manifestasse. De igual forma, a anunciada miragem neoconservadora de impor o modelo norte-americano pela guerra se necessário, provocou uma reação a nível mundial.

A primeira vaga de proto-Containment a nível europeu, nos anos vinte e trinta do século XX, que não teve uma potência diretora e resultou da confluência de movimentos nacionais no rescaldo da supressão das tentativas de revolução europeias, deixou a maior parte da Europa nas mãos de governos ditatoriais ou, no mínimo, autocráticos. A segunda vaga do Containment, sob a direção dos Estados Unidos, teve certamente excessos localizados, nos quais a identificação de elementos na ação dos Estados Unidos com semelhanças às conceptualizações leninistas, ainda que com fundamentação ideológica completamente oposta, oferece uma perspetiva alternativa para enquadrar algum radicalismo recorrente nessa ação, e promoveu de forma geral a difusão da democracia e da prosperidade. Até à data, a reação à perceção de  uma ameaça islâmica, traduzida num fortalecimento de movimentos nacionalistas e ou populistas, aproxima-se mais, naturalmente de uma forma ainda muito incipiente, à reação, nos anos vinte do século XX, da ameaça comunista.  

A proximidade conceptual entre a atuação da Rússia no conflito na Ucrânia e a atuação da União Soviética permite assumir uma continuidade, mas a retirada do carácter ideológico reduz a sua aplicabilidade a países onde seja possível a instrumentalização de minorias russas. A assunção da utilização pela Rússia de ações do tipo caracterizado pela NATO (Lasconjarias 2017) como “guerras híbridas” é, assim, uma ameaça real para os países bálticos, mas não para a Polónia ou a Finlândia, por exemplo.

A assunção da “guerra híbrida” como forma de ameaça, e o desenho de capacidades para a contrariar, deve, assim, ter em conta a limitação geográfica da sua aplicabilidade, condicionando assim a aplicabilidade de uma lógica simétrica de Containment ao nível global.

A proximidade entre a lógica de funcionamento do “islão radical” e a conceptualização da guerra característica do leninismo indica a necessidade de considerar se não serão aplicáveis ao “islão radical” os argumentos que sustentaram, no início da Guerra Fria, a doutrina do Containment, criando as bases para a implementação de uma política global de contenção, da qual podemos encontrar sinais, ocultados pela correção política prevalecente, na evolução da política externa norte-americana face ao Islão.

 Finalmente, a proximidade entre as conceções de guerra soviéticas e chinesa obriga a equacionar a necessidade de aplicar à China atual esse mesmo princípio de a considerarmos como uma ameaça existencial, o que remeteria para uma lógica de contenção da China numa versão renovada da doutrina Truman, como defende o grupo que a administração Trump designou como o “Foreign Affairs Establishment” (Friedman 2017), similar à defendida, entre outros, por Mearsheimer, mas não pelas razões realistas de relações de poder apresentadas por esse autor. O fator decisivo para avaliar o grau e natureza da ameaça representada pelo crescimento da China está em saber se ao abandonar a retórica transformacional a China renunciou, de facto, ao princípio base da dialética marxista da revolução universal ou continua a perseguir um futuro cuja construção é o fim que justifica todos os meios.

Até à data, todas as evidências parecem indicar que, adotando políticas muito próximas ao modelo do “open door” dos Estados Unidos, do início do século XX, a China atual está certamente a tentar mudar o seu lugar no mundo mais do que a tentar mudar o mundo, o que esvazia a argumentação histórica da aplicação de uma lógica de Containment relativamente à China.

 

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Coronel

Nuno Correia Neves

Chefe do Gabinete da Direção Instituto Universitário Militar. Investigador Integrado no Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar (CIDIUM).

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