Nº 2605/2606 - Fevereiro/Março de 2019 - Número Temático
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Conspirou? Certamente, mas…
Coronel
António José Pereira da Costa

O que se vê da conspiração, as reuniões, o cenário, tudo é pueril, mas

as conspirações que abortam parecem-nos sempre pueris...[1]

Raul Brandão

 

Declaração de Interesses

Começo por apresentar algo que se parece com uma declaração de interesses. Como bom brandoniano, para a elaboração deste trabalho, tomei como base a obra de Raul Brandão Vida e Morte de Gomes Freire, o seu processo individual militar e a documentação relativa à sua condenação. Embora publicado um século depois dos acontecimentos, considero o livro de Raul Brandão absolutamente inultrapassável, na profundidade da análise dos acontecimentos e das personalidades dos intervenientes e que deve ser considerado como a mais completa e profunda investigação jamais realizada sobre este tema. É pouco provável, mas, se surgir algum documento que não tenha sido analisado por Raul Brandão, ele nunca poderá produzir grandes alterações relativamente à visão dos factos que nos deu. Para além daquela obra, consultei outros documentos, nomeadamente a Memória sobre a Conspiração de 1817 […] Escripta e Publicada por hum Português, Amigo da Justiça e da Verdade e atribuída por Raul Brandão a Joaquim Ferreira de Freitas, (o padre Amado). O exemplar que consultei foi oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca e será a versão mais completa deste texto. Aparentemente publicada em Londres, apresenta um número considerável de anotações manuscritas a lápis de cor azul. Estou convencido de que foram feitas pelo escritor, tal é a semelhança entre a sua caligrafia e a das anotações. Devo confessar que estou de acordo com uma boa parte dos comentários que deixou.

Escapam-nos elementos importantíssimos que poderão levar-nos a aperfeiçoar a sua biografia, mas que só poderão existir nos arquivos dos países por onde passou durante a sua vida militar, em especial durante as campanhas ao serviço da Imperatriz da Rússia e desde a saída de Portugal, em 1808, até à sua prisão em Dresden.

O título que escolhi foi inspirado numa frase de Raul Brandão, no seu livro, na qual, referindo-se a Mathilde de Mello e não temendo más interpretações, o autor pergunta: “Casada?” E reponde: “Certamente!”[2].

Não existe nenhuma certidão daquele casamento, mas não importa. Matilde de Faria e Melo teve, durante a sua vida, o comportamento de uma mulher casada e que amava (muito) o seu marido.

Da mesma maneira podemos perguntar: “Conspirou”? “Certamente!”.

Gomes Freire sabia, mas não a denunciou, embora não acreditasse na Revolta. Conhecia o povo português, especialmente o de Lisboa e sabia que poderia acontecer-lhe, em plena revolta, olhar para trás e não ver ninguém. Contudo, achava-a necessária e até imperativa. As duas situações são, portanto, semelhantes: nenhum dos dois se prendeu com questões de forma para fazer o que achava que devia ser feito. Ela foi esposa, ele aceitou a realização de uma Revolta, na qual não participou, que não denunciou, mas que tinha a certeza que se justificava.

Venho falar de Gomes Freire enquanto Homem – Homem com H grande – como Raul Brandão lhe chama várias vezes, expressão que é o máximo elogio que se lhe pode fazer, a ele ou a outro qualquer homem e especialmente a um militar.

Como me foi determinado, escolhi três palavras-chave que traduzem sucintamente o desenrolar dos acontecimentos: Revolta, Beresford e Tortura. Vou abordá-las, não necessariamente por esta ordem.

 

Um colectar de experiência e conhecimento, o construir de um edifício de invejas

A vida de Gomes Freire é uma constante aquisição de experiência e capacidades no campo operacional, completada com a observação e estudo prático e teórico da gestão de grandes meios materiais e humanos. É sabido que os exércitos daquele tempo combatiam apoiados em todos os recursos que as áreas onde actuavam poderiam apresentar. O saque era não só uma forma de prémio para a tropa, mas também uma maneira de conseguir diversas formas de sustento. Quando regressa a Portugal, em 1815, não teria outro oficial capaz de ombrear consigo nestas áreas. Acresce que terá sido chamado a desempenhar funções no âmbito dos assuntos civis e governo militar nas diversas cidades onde foi representante do poder napoleónico, o que terá sucedido a poucos camaradas do seu tempo. Era um homem valente, culto, sabedor, experiente, próximo dos soldados e do povo e seria o oficial general mais completo do seu tempo. Como denominador comum de todas estas qualidades, uma última: a frontalidade. É o pior que pode acontecer a um militar: saber e expor aos seus superiores o que sabe e não ser atendido ou, pior do que isso, ser escorraçado ou denegrido. É que, na guerra, as coisas acontecem, os erros pagam-se caros e são dificilmente reversíveis ou corrigíveis. Isto para não falar dos mortos, das dores dos feridos e daqueles que, à luz da ciência de cada tempo, vão ficando assim, curados, mas sempre com aleijão ou deformidade. Por isso, o chefe consciente tem dificuldade em obedecer e conjugar a obediência com a necessidade de cumprir sem demasiado desgaste.

Gomes Freire de Andrade, por uma questão de personalidade, está em choque permanente com os superiores hierárquicos, de mentalidade reduzida e anquilosados pela burocracia, mas sempre prontos a demolir quem se lhes opusesse. As invejas não tardaram a surgir e, sufocadas por algum tempo, explodirão em Tortura, logo que para isso tiverem ocasião.

Além disso, na sua vida pessoal, não se pode dizer que estivesse muito inserido na moral vigente ao tempo. Poderia não a enfrentar directamente, mas contestava-a, na sua prática diária. A vida marital que fazia com Matilde de Melo é o exemplo mais acabado dessa contestação.

Tendo assentado praça como alferes no Regimento de Infantaria de Peniche (a 9 de Outubro de 1782), começa a sua actividade operacional incorporado na Marinha. As oito investidas realizadas na baía de Argel (Julho de 1784) sobre o poder naval ali sedeado foram muito duras, tendo em atenção que as barcaças artilhadas, com que esse tipo de ataques era feito, eram dificilmente manobráveis e os tiros das suas peças disparados a curtas distâncias das embarcações inimigas. Estas circunstâncias marcaram-no, enquanto militar e homem, a par dos múltiplos aspectos da organização da campanha (23 de Junho a 24 de Setembro de 1784) que terá observado em pormenor.

Ao voltar a Portugal, em menos de quatro anos, atinge o posto de sargento-mor do seu Regimento (27 de Abril de 1788). O regulamento do tempo, em vigor desde 1740 – Milícia Prática e Manejo da Infantaria – responsabiliza-o, entre múltiplas funções, pela disposição do regimento para a batalha. Consequentemente, procurava-se que aquelas funções fossem desempenhadas por oficiais criteriosamente escolhidos. Era a terceira figura do regimento e, num exército em que o comandante do regimento poderia ser analfabeto, ao sargento-mor exigia-se que soubesse extrair raízes quadradas o que, ao tempo, era uma operação transcendente. De um modo simplificado poderemos dizer que os sargentos-mores eram os «comandantes executivos» dos regimentos. A ascensão rápida e as funções exercidas não podem ter deixado de lhe criar adversários.

Mas é a partir de 1788, ao serviço da Czarina Catarina, que ficará mais indelevelmente marcado e onde se formará verdadeiramente como comandante, através da participação em combates violentíssimos, levados a cabo por grandes efectivos, no mar ou em maus terrenos e sob condições meteorológicas severíssimas. Raúl Brandão refere, sem aprofundar, a sua presença em Cronstadt, cidade conquistada pela Rússia à Finlândia, em 1704, e que garantia a defesa do acesso a S. Petersburgo. Embora não indicando datas, o escritor refere que os combates contra os navios da coligação franco-britânica devem ter sido duríssimos e disputados em condições a que chamaríamos, pelo menos, difíceis.

Porém, na conferência celebrada, na noite de 18 de Outubro de 1903, no Templo Grande José Estevam do Grande Oriente Lusitano Unido do Supremo Conselho da Maçonaria Portugueza, o orador, que assina com o nome de Böer, refere outros aspectos da sua actuação[3]. Começa por destacar a sua participação nas “Campanhas da Bessarábia”, sob as ordens do Príncipe Potemkine. Mas é relativamente à Guerra da Crimeia que Raúl Brandão apresenta descrições mais pormenorizadas que apontam para situações de fome e frio, com a soldadesca a viver miseravelmente em barracas de campanha e com os homens, animais e materiais movimentando-se num terreno enlameado. A descrição mais dramática é a do cerco, assalto e saque da cidade de Oczakov, na Crimeia (6 de Dezembro de 1788), defendida por 310 canhões. A atrição em ambas as partes atinge várias dezenas de milhar de mortos. Por este feito, vê o seu mérito reconhecido pela Czarina com a atribuição do hábito de S. Jorge.

Böer prossegue revelando que, sob as ordens do Príncipe Karl Heinrich von Nassau-Siegen, Gomes Freire entrou na campanha de 1790 contra a Suécia. Na Segunda Batalha Naval de Svensksund (9/10 de Julho de 1790) terá comandado uma bateria flutuante[4]. A esquadra russa é severamente derrotada mas, pela sua actuação em combate, apesar da «bateria» se ter afundado, a Czarina reconhece os seus méritos e dá-lhe, como prémio, a Espada de Honra.

É provável que tenha regressado a Portugal, “por breve tempo”[5] pois, ainda segundo o mesmo orador (Böer), em 1792, faz a Campanha do Reno, mas, em 1793, combateu, como voluntário, do lado dos prussianos. Talvez por isso, numa carta para António de Sousa Falcão, datada de 29 de Novembro de 1814, afirma ter aturado “os prussos(sic)”. Seria bom que soubéssemos de que lado esteve na I Campanha do Reno (que decorreu entre 1792 e 1797). Ao todo foram quase cinco anos (1788-93) de que o seu processo individual no Arquivo Histórico Militar pouco fala, passados em regiões da Europa totalmente desconhecidas dos portugueses e onde se sucediam factos históricos de que nem sequer se falaria no nosso país. A par disso, as condições em que os combates se processavam eram inimagináveis, mesmo para os militares profissionais portugueses. Só uma pormenorizada descrição, totalmente destituída de intenções romanescas e laudatórias, das situações com que Gomes Freire teve que de se defrontar, poderá permitir a sua justa avaliação.

Na sequência da declaração de guerra da Espanha à França e da consequente participação de Portugal, no que veio a ser a Campanha do Rossilhão, Gomes Freire regressa a Portugal. Porém, deveria vir também muito marcado pelo que vira durante os combates e pelos sacrifícios que os soldados dos beligerantes tiveram de suportar, desde o recrutamento feito em levas, até à morte ou, se tudo corresse bem, até à desmobilização que nunca sabiam se ocorreria. Mas deve também ter observado como é que os dois exércitos que ali se enfrentavam geriam os recursos necessários para a guerra: humanos, materiais e animais. E eram grandes massas de homens (recrutados sabe-se lá onde) e quantidades infindas de material, que era necessário produzir, distribuir, reparar ou obter localmente. Terá sido aí que começou a interessar-se por estas duas áreas que não era comum os oficiais do tempo estudarem com afinco, ao contrário dos estrangeiros que iam começando a produzir documentação no campo da logística e organização. Em Portugal, o caso do Conde Oyenhausen von Grafenburg – português e católico pelo casamento – deverá ter sido uma honrosa excepção.

Parte, então (20 de Setembro de 1793), à testa do regimento de que também era coronel, para a Campanha do Rossilhão. As descrições de Raúl Brandão sobre esta campanha são verdadeiramente surrealistas e, por outras fontes, sabemos que foi uma operação tão inútil quão inconveniente. A logística foi péssima (alimentação, alojamento e higio-sanitária), quando não falhou, e a actividade operacional decorreu em condições climáticas muito severas e dirigida por generais cuja capacidade levanta sérias reservas. Os militares portugueses, quando chegaram a Espanha, “pareciam desenterrados”[6], após uma viagem excessivamente longa. Os franceses, de invadidos, passaram rapidamente a invasores e a retirada é acompanhada de deserções em massa dos militares espanhóis que se sentem muito felizes quando se rendem. Segundo Raul Brandão, ”dançam ao som de pandeiros”. O ambiente entre a oficialidade portuguesa é mau, sem que John Forbes Skellater tenha mão nos seus inferiores. É aí que Gomes Freire cria uma amizade para a vida com António de Sousa Falcão – em horas de perigo e incerteza, na defesa do reduto e ponte de Ceret – e uma inimizade que roça o ódio com Luis Carlos de Clavière e D. Miguel Pereira Forjaz, ajudantes de ordens de Forbes Skellater. Os ajudantes-de-ordens, normalmente oficiais do estado-maior, eram intermediários entre um comando superior e os comandos subordinados. Transmitiam pessoalmente ordens, observavam a sua execução e a situação da unidade. Conferenciavam com o respectivo comandante e depois reportavam as suas impressões ao comandante que os enviara. Tinham, por isso, grande influência nas decisões que eram tomadas e eram tidos – com razão ou sem ela – como intriguistas e manipuladores da acção do comando a que pertenciam.

Para além de outros indícios claros de desorganização e indisciplina, a situação no comando do Exército Auxiliar Português tornou-se tão insustentável que Gomes Freire é mandado regressar a Lisboa, com certa mágoa do pessoal sob as suas ordens. Chega mesmo a falar-se da abertura de uma devassa ao comportamento das forças portuguesas no combate de 20 de Novembro de 1794.

É aqui que a inveja começa a avolumar-se e a sede de vingança a desenhar-se para ser servida em doses de Tortura, mal a oportunidade surja.

O episódio cómico-bélico denominado Guerra das Laranjas foi mais uma afirmação de Gomes Freire no campo operacional. Era então Quartel-mestre do Exército de Trás-os-Montes, servindo sob as ordens do Marquês de La Rosière, o que atesta a sua aceitação junto dos oficiais estrangeiros ao serviço de Portugal e o reconhecimento da sua capacidade de organizador de forças e de gestor de meios logísticos. É certo que o Marquês veio de França e que Gomes Freire é um “afrancesado”, mas isso não terá muito que ver com as qualidades pessoais e profissionais. Ao protagonizar uma acção ofensiva sobre Monterrey, a que hoje poderíamos chamar “golpe-de-mão”, torna-se num dos três oficiais que procuraram lutar contra o marasmo que foi a actuação das forças portuguesas. Os outros foram Matias José Dias Azedo (em Campo Maior) e Eusébio de Sousa Soares (em Vila Real de Santo António). Todos maçons, curiosamente.

 

Da Prática à Teoria

Como militar experiente e bem habilitado nas duas áreas fundamentais para o efeito, Gomes Freire de Andrade expendeu opiniões sobre a reorganização do Exército e, por sugestão do Duque de Sussex, acabou por escrever (1806) um livro de mais de 400 páginas[7] no qual expõe um plano para a reorganização do Exército, visando evitar os graves inconvenientes sobre a vida das populações motivados pelas levas, pelo serviço militar tão longo e dos graves prejuízos para a agricultura que considera a base da vida do país.

Nesta área, é o trabalho mais completo produzido por um oficial português, até então. É proposta uma divisão territorial do país, para efeitos defensivos, fundamentada na orografia e hidrografia do país, com indicação dos respectivos limites. São determinados os principais eixos de aproximação a Portugal e, consequentemente, o dispositivo territorial e logístico a adoptar, as modalidades de treino regular das unidades e até uma avaliação em termos financeiros das medidas preconizadas. Este trabalho ter-lhe-á granjeado mais algumas invejas, especialmente porque as I e a III Invasões utilizaram os eixos que havia apontado. É mau ter razão antes de tempo.

À data da I Invasão, Gomes Freire é responsável pela defesa da área de Setúbal, recebendo ordem de Junot para comandar a II Divisão das tropas que marchariam para França. Segundo afirmará mais tarde, esperava um desembarque de forças britânicas que não surgiu. Talvez a Inglaterra considerasse não ter vantagens nessa manobra. Resiste à ordem, procurando demorar o encontro com a unidade que iria comandar, mas, ao tentar atravessar a Espanha, a sublevação das populações põe-lhe a vida em perigo. Não podendo regressar a Portugal, consegue entrar em França e, a partir da sua apresentação em Paris, a sua vida é um autêntico rosário de colocações, desempenhando tarefas que seria óptimo que conseguíssemos detalhar. O período entre 1808 e a sua rendição em Dresden, em 1814, é talvez o mais rico de experiências da sua vida, mesmo sendo, “pobre como Job[8]” e nunca tendo passado de um “prisioneiro condecorado e armado”, como afirma em cartas a António de Souza Falcão. Depois da rendição, é conduzido, sob prisão, à Hungria (não sabemos onde se situaria o local de detenção), e só regressa a Paris, a 5 de Junho de 1814, perdido da sua Matilde que o procurou num percurso de mais de 2.000 Km, sobre uma Europa esventrada por vários anos de movimentações de exércitos, esta, porventura, a forma mais bárbara de devassar um território naquele tempo.

Gomes Freire não aceita voltar ao serviço de Napoleão – que havia regressado a Paris –, admitindo antes a hipótese de ir servir sob as ordens do Grão Turco ou directamente para Brasil, onde esperava ter boa aceitação por parte de D. João VI.

Sabe que não é bem quisto em Lisboa e procura demonstrar, antecipadamente que, “a menos que tivesse realizado o milagre de S. António”, nunca combatera em Portugal, nem na Península Ibérica. É uma dura batalha a produção do cartapácio[9] que lhe permitiria fugir à sanha dos procuradores. Mesmo assim, quando regressa, via Londres, em 25 de Maio de 1815, ainda passa pela Torre de Belém por alguns dias. Conhecidas as áreas habitáveis da Torre, será fácil imaginar as condições pouco cómodas em que ali esteve detido, mas, a 3 de Junho de 1815, um acórdão assinado por três doutores: Faria, Carvalho e Santa Maria e Mello “Julgou que não resulta crime […] do processo formado no juízo de inconfidências e o julgou livre de toda e qualquer mácula e o mandou soltar[10]”.

Uma vez em liberdade, tudo se complica, em face do estado do país e do Exército que vem encontrar. Embora seja um general velho (para o tempo) terá considerado que uma Revolta era inevitável, com ou sem a sua participação.

Quando Gomes Freire chega a Lisboa, os franceses já tinham saído de Portugal havia cerca de quatro anos. Os afrancesados são perseguidos e os partidários dos ingleses também não estão bem vistos, embora tenham de ser aceites em nome da boa vivência entre a Regência e oficialidade inglesa, detentora da quase totalidade do poder militar.

É dado adquirido que a situação social e económica do país é grave e a descrição de Raúl Brandão (se outras não houvesse) fala de falta de braços nos campos, do número de órfãos, viúvas e desenraizados que é enorme, da fome nas Beiras, dos preços que sobem sem cessar. A corte que fugira já poderia ter regressado do Brasil, considerando as profundas alterações políticas que se verificaram pela Europa. Para agravar a situação, o tratado de comércio com a Inglaterra (14 de Fevereiro de 1810) põe o país a saque económico. E, para além disto, duas instituições fundamentais para o funcionamento da sociedade do tempo estão abaladas: o Exército, cuja reestruturação sob a orientação de Beresford gera permanente mal-estar, e a Igreja Católica, no seio da qual se avolumam suspeitas de imoralidade.

Em consequência da sua experiência, Gomes Freire estará sensível ao sentir do povo e acaba por se tornar numa espécie de protector dos militares portugueses que, de alguma forma, foram vítimas das decisões de Beresford. Um deles – o coronel de milícias Manuel Monteiro de Carvalho –, visita de sua casa, não recebia vencimento há trinta meses. Todavia, não lhe são conhecidas iniciativas contestando a acção da Regência ou de Beresford, mesmo depois da sua total reintegração no Exército.

 

Tortura

Os dezoito documentos que constam no Autos do Juízo da Inconfidência levantada pela regência mostram que haveria uma Revolta em marcha. Os infiltrados no movimento atestam, pelos seus depoimentos, as diligências dos insurrectos e, relativamente a alguns, conseguem denunciar o que fizeram e quando. Todavia, tudo parece estar numa fase embrionária e a organização ser demasiado burocrática e bastante sincrética.

A análise dos factos, ocorridos entre 25 de Maio (domingo) e 18 de Outubro de 1817 (sábado), revela um tratamento kafkiano que é aplicado a Gomes Freire de Andrade que, para além da óbvia condenação, deveria passar por um crivo de Tortura bem estreito.

A prisão dos réus (os residentes ou em serviço na área de Lisboa) ocorre na noite de 24 para 25 de Maio de 1817, numa operação bem planeada e conduzida, entre a meia-noite e as quatro horas da manhã. Claramente sob controlo de oficiais estrangeiros – quatro comandantes de regimento[11] – é feita uma demonstração de força que leva a que o Inspector-geral da Artilharia (Tenente-general José Antonio Rosa) receba ordem para colocar no Cais dos Soldados quatro “Brigadas de Artilharia Volante, num total de 20 peças e quatro obuses de calibre nove, em linha e com os murrões acesos[12]”. A captura de cerca de trinta homens, cujas unidades militares e moradas eram conhecidas, não necessitaria de tanto, até porque alguns não foram capturados em Lisboa.

O primeiro indício de tortura direccionada a Gomes Freire é que só ele é enviado para São Julião da Barra e aí mantido incomunicável, até à execução. Todavia, em face do que foi sucedendo e, especialmente, no momento da execução, podemos admitir que as autoridades também tivessem receio de que qualquer coisa, que não se deduz o que seja, pudesse acontecer. Rapto ou libertação do réu? Seu assassínio antes da execução? Sublevação das unidades responsáveis pela segurança e ou guarda do preso? De qualquer modo, a partir da captura, a tortura é constante. O lugar onde esteve preso e as condições a que foi sujeito nos primeiros dias de prisão confirmam-no. Durante seis dias não lhe é abonada a verba para alimentação que lhe tocava e é o Marechal-de-campo Archibald Campbell, governador daquela fortificação, desde 26 de Maio[13], que paga a sua alimentação durante esse tempo[14]. O processo não observa as regras processuais em vigor, como se conclui da contestação da sentença apresentada pelo advogado e ainda por outras situações, mais clamorosas.

O preso é interrogado na cela, sem a presença de mais ninguém para além do desembargador João Gaudêncio Torres e/ou José Vicente Casal Ribeiro e um escrivão (Joaquim António Cabral). É de admitir que Gomes Feire não dominasse bem o português. Tendo nascido em Viena, só terá começado a falar português com regularidade, depois de ter assentado praça (1782). Entre 1788 (início da sua aventura na Rússia) e 1815 (regresso a Lisboa), passou por dois períodos, que totalizam cerca de 11 anos, a que podemos chamar de imersão total em línguas estrangeiras. Durante a Campanha do Rossilhão terá, obviamente, falado bastante português, mas recorde-se que as suas opiniões acerca da acção do Conde l’Union estão expressas numa brochura, em francês, que era uma língua comum entre civis e militares cultos. Isto poderá ter levado a que tenha assinado depoimentos, cuja sintaxe permitirá leituras diversas. Não será, contudo, daí que poderemos deduzir que a sua condenação tivesse acontecido sem remissão.

Não lhe tendo sido confiscado qualquer documento comprometedor, a acusação fundamenta-se, quase exclusivamente, nos depoimentos dos elementos infiltrados na estrutura dos golpistas. Mesmo assim, Gomes Freire nunca foi acareado, nem com estes, nem com os outros réus que o acusaram. Esta diligência foi aplicada aos outros réus entre si, sempre que os investigadores julgaram necessário.

No que respeita à falta de cumprimento das regras processuais, salienta-se o facto de a sentença ter sido cumprida sem que fosse previamente apresentada ao soberano. Nega-se-lhe o apelo para o Rei, determinado pelo decreto de 20 de Março de 1777, que previa que “a pena de morte não se aplicava aos Réus Militares de coronel para cima sem se dar parte ao Rei”.

Mas há um mistério completamente insolúvel, que diz respeito aos «papéis» escritos por Gomes Freire e que seriam peças essenciais para a sua defesa. Tendo desaparecido, nunca saberemos qual era o seu conteúdo. Todavia, o seu desaparecimento será mais um aspecto a considerar na tortura de que foi alvo, durante a sua prisão e degredo. Vejamos o que foi possível apurar da leitura da documentação que nos tem servido de base para a produção deste texto.

A 24 de Junho de 1817 (véspera do seu segundo interrogatório), Gomes Freire entregou a Archibald Campbell uns papéis que esperava fazer chegar às mãos do Rei e do Duque de Sussex. Conforme instruções dos Governadores do Reino, transmitidas a Beresford, os documentos foram elaborados com meios (papel, tinta e pena) facultados por Campbell e sob sua supervisão, enquanto Governador da Torre, e no âmbito das responsabilidades que lhe foram atribuídas por Beresford. O Governador terá ficado com uma ideia sobre o seu conteúdo, mas nada diz sobre este assunto, em momento nenhum da correspondência com o seu superior hierárquico. Sabemos que os papéis foram entregues ao Marquês de Borba, Presidente do Governo, por Beresford, o que corresponde ao padrão de comportamento deste durante todo o processo: fornecer elementos para o início e elaboração da devassa, mas seguir de longe a respectiva marcha. Todavia, a 10 de Junho de 1817, envia a D. Miguel de Forjaz um conjunto de onze perguntas em que é notória a intenção de relacionar a prática de Gomes Freire com a acção dos conspiradores[15].

Numa carta, enviada a 8 de Setembro de 1817[16], a D. Miguel Pereira Forjaz, Beresford pede “uma certeza do destino que tiveram os papéis que […] mandou (Gomes Freire) para serem levados à Presença de sua Me pois deles depende muito a sua defesa”. Na mesma carta, Beresford volta a colocar-se fora da questão declarando que “[…] eu nada lhe mandei senão dizer que nada podia fazer por authoridade minha, que era sujeita às determinações do mesmo Aug. Sr”. Segundo Raul Brandão, numa nota a lápis, à margem deste documento, D. Miguel dá indicação de que o preso, daí em diante, só poderá corresponder-se com o exterior através do juiz da inconfidência. Mas Raul Brandão pergunta também: que dizia o documento que Gomes Freire […] mandou a Beresford para ser entregue ao Rei e que o Marechal entregou ao Marquês de Borba? E põe na boca do preso a seguinte frase: “[…] conhecia outros conspiradores contra a auctoridade real; segurança pública, como fez constar, mencionando-os ao Marechal General, para ser presente o protesto, que fizera junto com as provas a Sua Majestade”[17].

Por fim, numa carta para António de Sousa Falcão, datada de 16 de Outubro de 1817, Gomes Freire deixa-nos a ideia de que o protesto teria, pelo menos, três folhas das quais “duas escritas à mão e assinadas por mim”. Declara que só há pouco tempo o Marechal lhe mandou dizer que o protesto não tinha sido remetido ao Brasil, para ser entregue ao Rei, mas fora entregue aos Governadores do Reino. Ficou assim, dois dias antes da sua execução, a saber que lhe tinha sido “frustrado” o direito de qualquer vassalo de recorrer ao seu soberano. A carta termina com a aceitação da morte, pedindo apenas para ser fuzilado em vez de enforcado. Este sentimento começara a avolumar-se, desde que, tendo sabido do destino dos documentos, confidenciou a Campbell que seria “enforcado como um cão nas vizinhanças da Torre”[18].

O procedimento da regência que se acaba de descrever é claramente um abuso de autoridade, independentemente das provas que existissem da conspiração em marcha e de que os réus que foram presos estivessem profundamente inseridos nela. É muito verosímil que é Gomes Freire quem arrasta para a morte e degredo um grupo de homens e não aqueles que, envolvendo-o nas suas actividades conspirativas, o levam à forca.

D. Miguel Pereira Forjaz dá ordem pessoal ao Arsenal Régio para o fornecimento do alcatrão a usar na queima do cadáver de Gomes Freire, o que teremos de considerar um excesso de zelo, tendo em conta a posição hierárquica de quem ordena e de quem obedece. Era necessário que nada falhasse…

Gomes Freire era um militar que, durante cerca de trinta anos, exercera a sua profissão de modo empenhado e sempre com grande apreço por parte dos seus subordinados. Considerava este apreço tão importante para um chefe militar que, logo na primeira página da brochura em que comenta a acção do Conde l’Union, a 1 de Maio 1794, durante a Campanha do Rossilhão, se refere ao “amor da tropa para com o seu general”, como sendo algo que lhe cria condições para a vitória. Portanto, não será de estranhar que quisesse dar uma última palavra aos soldados das cinco companhias do Regimento de Infantaria n.º 19 (Cascais) que isolavam o perímetro da sua execução. O pânico das autoridades, que já era grande, tornou-se maior. Daí que a formatura tivesse que se virar de costas para o patíbulo e, além disso, os padres que assistiam à execução tivessem gritado para que não se percebesse o que dizia.

Em 16 de Outubro de 1817, envia uma carta a António de Sousa Falcão pedindo que “caso não se atenda aos embargos […] o Letrado faça um requerimento […] para que se mude o modo como está sentenciado a morrer para aquele de ser fuzilado”. Agora, parece estar absolutamente cônscio e quiçá conformado de que não tem qualquer hipótese de sair vivo da Torre. Que se terá passado na mente de um condenado à morte num processo deste tipo que o levasse a aceitar a morte e a pedir para ser fuzilado, como o Marechal Ney, que recusara a venda a que tinha direito e indicara aos soldados do pelotão para onde deveriam apontar? O pedido é, obviamente, recusado. Seria uma concessão que o enobreceria, mesmo à hora da morte. É enforcado.

No dia da execução, barbeia-se e farda-se a rigor. É obrigado e despir a farda e a vestir a alva dos condenados, como determinava a sentença. Desmaia, mas reanimam-no. Depois, ouvida a leitura da sentença, recupera a verticalidade e aguarda a execução, descalço durante várias horas.

No âmbito da tortura a si direccionada, encontramos ainda a indicação do método e local de execução designado na própria sentença, “a forca que se há-de levantar da fortaleza de São Julião da Barra, onde se acha preso […] e nela padeça morte de garrote para sempre e depois de decepada a cabeça seja com o seu corpo tudo reduzido a cinzas que serão lançadas ao mar”[19]. É a morte com infâmia (aplicada a oito dos réus), uma autêntica profanação de cadáver legalmente determinada. Há diferença entre a morte por garrote e por enforcamento, como é sabido. Neste caso, parece ter havido uma «imprecisão de nomenclatura»...

A sentença foi proferida em cinco dias e os recursos apresentados pelo advogado de defesa prontamente considerados improcedentes (17 de Outubro de 1817). Pelo pouco tempo que mediou entre a condenação dos réus e a execução da sentença, pode parecer estranho numa justiça que primava pelo formalismo e burocracia. Mas mais estranho é a publicação deste documento, ocorrida já dois dias após a execução. Todavia, sabemos que era necessário actuar contra (hum, principalmente) dos réus e secar as veleidades dos que quisessem repetir a aventura. A Regência parece que estava ansiosa por liquidar o assunto, mesmo que pudessem vir a ser encontrados erros de forma no processo.

Não podem restar-nos dúvidas de que houve intenção de matar e de que o assassínio foi bem premeditado.

 

A acção de William Beresford

Numa primeira aproximação poderemos pensar que William Beresford seria parte interessada no abate de Gomes Freire. Porém, o seu comportamento, ao saber da revolta e após a captura, poderá invalidar esta ideia.

Beresford, que vinha reestruturando o Exército, a partir de 15 de Março de 1809, é o primeiro a saber da conspiração. É, essencialmente, um militar estrangeiro a quem o respectivo governo atribuiu uma missão. Está rodeado de um grupo de oficiais estrangeiros que materializam as decisões que havia a tomar. Depois de reconstruído e disciplinado o Exército Português e expulsas as forças francesas de Portugal (Maio de 1811), continua a sua acção noutras direcções, procurando agora levar a Regência do país a conduzir uma política favorável aos interesses ingleses. O seu poder foi aumentando, através de delegação do Poder Real, nomeadamente depois da ida à Corte, no Brasil, em 1815/16. Sabemos que não tinha grande apreço pela Regência, a quem chamava, em privado, “os senhores do Rocio”, mas a missão que lhe fora atribuída não a perdia de vista.

Estranhamente, os denunciantes: José de Andrade Corvo de Camões, Pedro Pinto de Morais Sarmento (ambos militares) e o bacharel João de Sá Pereira Ferreira Soares, levam ao conhecimento do Marechal as actividades conspirativas que estariam em curso e alguns documentos da organização que conseguem obter em consequência da denúncia involuntária, mas exibicionista, de António Cabral Calheiros Furtado de Lemos, tenente demitido do Regimento de Infantaria n.º 3. Raúl Brandão, que lhe consultou o processo individual, afirma que fora contado no Hospital (Militar de Santo António(?)) de Lisboa, mas do qual não tem verba de saída. O advogado do processo, Filippe Arnaud de Medeiros, afirma, na “Allegação de Direito e de Facto” escrita em defesa dos réus e publicada em 1820, que era efectivamente louco. Por seu turno, Morais Sarmento, numa carta remetida a Joaquim Ferreira de Freitas e transcrita na sua Memória[20], afirma que “o tal Cabral passava por huma cabeça esquentada”.

Os delatores poderiam ter procurado, directamente, o Intendente-geral da Polícia ou mesmo a própria Regência, mas nunca saberemos as razões por que se dirigiram ao oficial inglês. Joaquim Ferreira de Freitas, na sua Memória (publicada em 1822) atribui este procedimento a uma certa desconfiança que teriam sobre o modo defeituoso como se articulavam as diferentes entidades e fala mesmo de um “miserável estado de cousas que então reinava em Portugal […] por falta de boa intelligencia e harmonia entre as diferentes authoridades[21]. Esta desconfiança leva-os até a pedir ao Marechal que lhes forneça uma espécie de salvo-conduto que os creditava como observadores dos projectos dos revoltosos. Beresford começa por lhes orientar a pesquisa de informações, logo a partir de 15 de Abril de 1817, quando recebe as primeiras denúncias, mas, logo que tem provas concretas de que algo se passa, resolve agir de outro modo.

Prudentemente, procura conselho (noite de 22 de Maio), reunindo-se, em sua casa, no Pátio do Saldanha, com três funcionários superiores da administração: Cipriano Ribeiro Freire (Presidente da Junta do Comércio), o Visconde de Santarém e José António de Oliveira Leite de Barros (Desembargador do Paço e Auditor-geral do Exército), três quadros médios que lhe ofereceriam mais confiança, talvez pela sensatez e eficácia no desempenho das suas funções…

Também ele poderia ter tido outra atitude, limitando-se a entregar a documentação à Regência ou à polícia que actuariam como achassem conveniente. Contudo, parece prevenir para, mais tarde, não ter que remediar. Obedecendo ao conselho que lhe é dado, no dia seguinte, entrega os documentos de que dispõe ao Marquês de Borba, que se compromete a informar a regência.

Mas William Beresford parece não confiar na eficaz repressão aos revoltosos, o que poderia pôr em perigo as tarefas que tinha a desempenhar e, participada a conspiração, assegura a captura dos conspiradores numa operação que dura apenas quatro horas, conduzida sob controlo de um número considerável de oficiais estrangeiros, quatro deles comandando regimentos da capital. A Regência terá tido uma participação discreta na captura, mas, a partir daí, a conduta dos acontecimentos é sua. Beresford sai de cena, depois de ter louvado as tropas que participaram na captura, na Ordem do Dia de 30 de Maio de 1817. A partir daí, parece ir observando a marcha dos acontecimentos, mas intervindo indirectamente, sempre que considerou necessário. Contudo, fá-lo sempre através daquilo a que poderíamos chamar as vias hierárquicas, normalmente através do Intendente-geral de Polícia, João de Matos Vasconcelos Barbosa de Magalhães.

Haveria grande conveniência em determinarmos se Gomes Freire e Beresford se conheciam bem ou sequer pessoalmente. A integração de Gomes Freire no Exército não é imediata e não se lhe conhecem funções concretas. Entre o desembarque do primeiro e a captura conduzida pelo segundo, decorreram dois anos, durante os quais Gomes Freire começa por tentar obter o seu lugar no Exército. Obtém-no, em Julho de 1815.

Após a detenção de Gomes Freire, logo em 29 de Maio de 1817, Beresford procura saber quais as condições em que está preso em São Julião da Barra e, por carta, dá instruções ao Marechal-de-campo Archibald Campbell[22]. Nomeia-o responsável pela guarda de Gomes Freire. Envia o ajudante-de-campo de Campbell ao Intendente-geral de Polícia, solicitando que o preso tenha consigo um criado (como era uso ao tempo) e mais “aqueles artigos que o seu commodo exigisse”[23]. Pela mesma via, tentou também que “se lhe permitisse dar procuração a algum amigo para tomar conta da sua casa e dos seus efeitos(sic)[24]”.

Mas, só a 24 de Junho, recebe comunicação dos Governadores do Reino de que podia comunicar com o preso “do modo que ele desejava”. Como vimos, logo que este lhe confia documentos que considera essenciais para a sua defesa essa autorização é-lhe retirada. Numa carta para Campbell, com esta data, determina-lhe que forneça a Gomes Freire material de escrita e a assista e veja com atenção o que ele escrever. Pergunta-lhe também “que lhe parece o estado da sua cabeça”, já que tinha informação do Tenente-coronel Robert Haddok de que Gomes Freire “algumas vezes está agitado”[25].

Numa carta escrita em Sintra, em 7 de Setembro de 1817, Beresford informa Campbell de que não ficou com nenhuma cópia dos documentos que Gomes Freire lhe entregara, nem mesmo com uma cópia para ser entregue ao Duque de Sussex, mas que os tinha visto na secretária do Marquês de Borba (Fernando Maria de Soares Coutinho) a quem os havia entregado “porque não podia obrar d’outro modo”[26]. Há, nesta carta, algumas expressões que nos fazem supor que Beresford começa a ter uma ideia do que se prepara. Quando alude “à pergunta que faz o pobre Gomes Freire” e entende que “não se deverá deixá-lo em ignorância de cousa alguma que ele julgue necessária para a sua defesa, quer seja na realidade assim, quer não”. Julgamos descortinar uma certa piedade ou complexo de culpa relativamente à situação “do pobre homem que parece julgar que o conhecimento do destino que tiveram estes papéis lhe pode ser útil para a sua defesa”[27]. Beresford pede a Campbell que informe Gomes Freire de que “nenhum (documento) foi jamais transmitido (por si) nem a Sua Majestade nem ao Duque (de Sussex)”.

Noutra carta escrita no mesmo local e na mesma data, Beresford começa a tentar regular as relações do Governador com o desembargador que iria ficar a viver, porventura, com os seus criados na fortaleza. Na véspera, Henry Watson, coronel de cavalaria e ajudante-de-ordens de Beresford, recebera ordem para perguntar a Campbell se “tinha ocorrido alguma cousa de novo depois que Gomes Freire foi posto debaixo da direcção do Juiz da Inconfidência e como tomou ele aquela medida”. Beresford considera que Campbell deve tentar explicar a nova situação a Gomes Freire ao mesmo tempo que procura separar as responsabilidades dos militares e do desembargador no que respeita à segurança do preso. Vai mesmo ao ponto de procurar saber se “os officiais ficam exonerados de toda a responsabilidade”. E termina aconselhando: “deixemos o Desembargador arranjar o que lhe pertence”[28].

A chegada do desembargador à Torre é fonte de atrito com os militares ingleses, nomeadamente Archibald Campbell e Robert Haddok. Embora o governador da Praça procure evitar conflitos até a chegada do carrasco, que vinha do Porto, é motivo para discussão. O carrasco vem escoltado por uma pequena força que, de acordo com as normas em vigor, só entrará depois de reconhecida. A discussão, algo caricata, centra-se em quem deveria mandar abrir a porta da fortificação: Campbell ou o desembargador.

Archibald Campbell chega a pedir para ser substituído – logo após a chegada do desembargador –, mas o seu pedido não é aceite por Beresford. Não assiste à execução, embora Gomes Freire tenha pretendido despedir-se dele e agradecer-lhe o seu empenho. A ligação entre ambos é feita através de Robert Haddok que é quem comunica a Gomes Freire que Beresford se encontra doente, na Feitoria da Fortaleza.

D. Miguel Forjaz “chega a censurar William Beresford, invocando palavras de Sua Majestade que estranhava que S. E. comunicasse com um preso de Estado e fizesse representações ao governo acerca da maneira como era tratado”. Resta saber como teve acesso às palavras do Rei…

Robert Haddok virá a ser alvo de um processo de investigação (sem efeitos) por ter cumprimentado Gomes Freire, quando o foi buscar ao cárcere, e lhe ter cedido uns sapatos para que não aguardasse a execução descalço.

 

Assistência Médica

A assistência médica que foi prestada a Gomes Freire materializou-se em duas visitas, realizadas a 6 e 12 de Julho, pelo físico-mor do Exército, José Carneiro Barreto, o que seria sinónimo da intenção de um tratamento feito por alguém de créditos clínicos firmados. Todavia, da leitura dos respectivos relatórios[29], poderemos concluir uma certa frieza na abordagem do caso clínico, uma espécie de consultas para cumprir os deveres de médico, mas sem grande empenhamento. O agravamento do reumático de que o Tenente-general sofria não lhe merece atenção especial, embora fosse intuitivo considerá-lo adquirido com a idade e os sofrimentos da vida em campanha, mas não é difícil admitir que se tivesse agravado com as condições de humidade da cela onde estava preso. Gomes Freire queixou-se de “indisposição de estômago e […] de incommodo de ventre que são bem de acreditar pela conspurcação da língua e outros signais”. O médico pretendeu combater a indisposição de estômago de que se queixava com um produto que provoca o vómito (emético) e o incommodo de ventre com um catártico (que provoca a diarreia). Queixou-se também de enxaquecas, sem que o médico tenha considerado que seriam sintomas de quaisquer doenças. O preso apresentava uma dermatite que o incomodava bastante e o médico propõe que lhe seja permitido que se barbeie, pois será um primeiro passo para a cura. Efectivamente, desde a sua captura, pelo menos até à segunda consulta médica, Gomes Freire não estava autorizado a ter produtos de higiene consigo, não podendo por isso barbear-se.

A recusa das autoridades em permitir que se barbeasse, apesar das insistências de William Beresford e Archibald Campbell, é prova indirecta de que quem controlava o tratamento dado ao prisioneiro pretendia causar-lhe toda a dor que lhe fosse possível, porém não o assumindo directamente.

Campbell dispôs-se até a assistir à actuação de um barbeiro que barbeasse o preso, e, em alternativa, procurou que ao prisioneiro fossem fornecidas «navalhas de segurança» para que se barbeasse. Acaba por comprá-las e envia-as ao Intendente para que veja e permita o seu uso. Nenhuma das soluções foi autorizada o que prova que, mesmo na prisão e independentemente da condenação que viesse a receber, Gomes Freire não estava a salvo da intenção da Regência de o torturar.

 

E Igreja Católica?

A posição da Igreja Católica não surpreende. Logo em 8 de Junho de 1817, uma ordem do Patriarcado determina a celebração – em 22 de Junho – de um Te Deo de acção de graças em todas igrejas e conventos regulares do Patriarcado de Lisboa, pela descoberta da conspiração. Haviam decorrido quinze dias sobre a prisão dos réus e a Igreja já os dá como culpados, chamando-lhes “insensatos, temerários e atrevidos[30]”. É natural, uma vez que deve ter tido conhecimento, mesmo que indirecto, da matéria do corpo de delito. A sua hierarquia congratulou-se com a vitória das forças conservadoras na repressão aos subversivos e, assim, ganhou em dois tabuleiros: apoiou o poder, o que sempre lhe trouxe dividendos, e ganhou tempo, retardando a evolução das ideias ou julgando que assim ela seria travada.

Virá a surgir no processo, sim, mas apenas no que respeita a uma das suas tarefas habituais e que mais ninguém desempenhava: a encomenda das almas dos condenados à morte que, quase de certeza, iriam parar o céu, considerando que se haviam arrependido e confessado os seus pecados e a partir daí teriam pouco tempo para pecar gravemente…

 

Conclusão

É minha convicção de que Gomes Freire de Andrade foi essencialmente vítima das invejas e ressentimentos que a sua competência técnica, actividade operacional acumulada e conhecimentos teóricos adquiridos pela prática e pelo estudo não podiam deixar de atrair, entre a oficialidade portuguesa. Não nos restam, hoje, dúvidas de que a sociedade portuguesa daquele tempo era uma “sociedade hirta, onde tudo se espionava e que parecia ter engolido um cabo de vassoura”[31]. Daí que considere que a avaliação do processo de Gomes Freire de Andrade só possa ser feita se conseguirmos reconstituir, com rigor, os principais episódios/períodos da sua vida. Será uma reconstituição um pouco árida, por destituída de qualquer espécie de visão romântica ou heróica, mas que rapidamente se tornará fértil à medida que formos imaginando o ambiente onde esteve mergulhado e o que fez ou podia ter feito. Em suma, determinaremos a Circunstância, já que o Homem conhecemo-lo nós bem, ou julgamos conhecer.

Neste âmbito, é absolutamente fundamental que se reconstitua a sua vida profissional e não só, entre 1788 e 1793, quando esteve ao serviço da Czarina da Rússia. Teríamos de desenhar o seu percurso desde que saiu de Lisboa até que aqui voltou, quer tenha combatido ou não. Que funções militares exerceu? De estado-maior ou de comando de tropas e a que nível? Para um português, habituado ao nosso clima, as condições meteorológicas em que decorreram os combates e as marchas em que esteve envolvido devem constituir motivo de espanto. Mesmo os períodos de inactividade, nos chamados quartéis de Inverno, durante os quais, grandes efectivos – às vezes estranhos ou mesmo inimigos das populações locais – se aboletavam nas localidades e ali viviam, foram determinantes na sua formação de quadro médio/superior do Exército Português.

Talvez devêssemos melhorar o nosso conhecimento da fita do tempo relativa à Campanha do Rossilhão, em ordem a determinarmos as razões de queixa que poderá ter tido da actuação da sua hierarquia e daí podermos inferir as inimizades que a sua conduta lhe granjeou. Considero essencial que a participação de Gomes Freire nessa Campanha seja bem conhecida, pois terá sido aí que D. Miguel Pereira Forjaz armazenou desejo de vingança suficiente para aplicar mais tarde numa Tortura implacável. Poderemos começar pela leitura da “Mémoire Raisonnée sur la Retraite de l›Armée Combinée Espagnole et Portugaise du Roussillon” que, embora assinada por um tal G. F., é da autoria de Gomes Freire. Que outro militar sentiria necessidade e teria capacidade para escrever, numa brochura de 67 páginas, onde analisa o decorrer da campanha?

Consideremos também os acontecimentos de Campo de Ourique, em Julho de 1803, que parecem ter resultado de uma proximidade do comandante do regimento ao povo da cidade e aos militares sob o seu comando e que, certamente, lhe granjearam inimizades insolúveis. Poderia ter sido apenas mais uma desordem de feira, entre o povo (com o apoio dos soldados) e a polícia, mas parece que se atingiu uma espécie de antagonismo entre o comandante da unidade e alguém que virá a ter um papel importante na fama que lhe vier a ser atribuída.

Mas será na odisseia decorrida, entre 1808 e 1815, que teremos de nos concentrar. A marcha para França através de um país revoltado deve ter sido algo de heroico, mas que deixou um rasto de dúvidas naqueles que já o odiavam e, depois do regresso de França, essas dúvidas passaram à inveja aberta por parte de alguém que não teve nem quereria ter aquela espécie de vivência.

Entendo que William Carr Beresford não poderia ter-lhe grande ódio. Quantas vezes se terão encontrado e falado? Em que medida um agente inglês poderia ser prejudicado por um general velho e cansado que, como deixou escrito, queria “pendurar a espada e deixá-la enferrujar bem à vontade”? É certo que a vida privada e o modo de pensar de Gomes Freire não era muito consentânea com os padrões da sociedade, mas em que medida é que isso colidiria com a missão do Marechal inglês que estava bem apoiado pela coroa e tinha ascendente sobre a Regência? Entre os dois, a probabilidade de um confronto directo era mínima, uma vez que Gomes Freire nunca teve funções de governo ou direcção dos destinos do país, mesmo depois de totalmente reintegrado no Exército.

Estou convencido que o «assunto» Gomes Freire foi essencialmente uma vingança rasteira de portugueses, embora Beresford tenha destapado a caixa de Pandora ao apresentar à Regência as provas de que havia um Revolta em marcha. Nem outra coisa era de esperar.

Detecta-se uma certa solidariedade entre a Beresford e os seus homens de mais confiança para com Gomes Freire, mas eles não poderiam ir muito para além do que fizeram, tal era a sanha e a boçalidade e a intenção não apenas de o condenar, mas de o torturar que animavam as autoridades portuguesas. E, além disso o assunto Gomes Freire era essencialmente um problema das autoridades portuguesas.

 

Bibliografia

ANDRADE, Gomes Freire de, 1806. Ensaio sobre o Methodo de Organisar em Portugal o Exército Relativo à População, Agricultura e Defeza do Paiz. Lisboa: Nova Officina de João Rodrigues Neves.

BRANDÃO, Raul, Janeiro de 1988. Vida e Morte de Gomes Freire (4.ª edição), Lisboa, Editorial Comunicação, Rua da Misericórdia, 67-2º, 1200 – Colecção Obras Completas de Raul Brandão, Depósito Legal n.º 20027/88.

COSTA, António José Pereira da, 2008. “Os Generais do Exército Português”, (Vol. III, II Tomo). Lisboa: Biblioteca do Exército.

FREITAS, Joaquim Ferreira de (o padre Amado), 1822. Memória sobre a Conspiração de 1817, vulgarmente chamada Conspiração de Gomes Freire, Escripta e Publicada por hum Português, Amigo da Justiça e da Verdade[32], Eds. Ricardo e Artur Taylor, Londres. Oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca (S.L.f-3-72) e incluído do espólio de Raúl Brandão.

G. F. Officier au Service de Portugal (Gomes Freire), 1797. Lisboa, Mémoire Raisonnée sur la Retraite de l’Armée Combinée Espagnole et Portugaise du Roussillon Effectué sous les Ordres du Comte de l’Union le 1.er Mai 1795 avec un Exposé des Premières Operations de La Campagne. Imprensa Nacional. Biblioteca do Exército, cota 9471-BE.

 GONÇALVES, António José Rodrigues, 2017. “Gomes Freire de Andrade – Um Mártir da Pátria”. Lisboa, Âncora Editora.

MAYA, Fernando, 1904. Subsídios para a História de Portugal, Lisboa, Typografia Universal, (Impressor da Casa Real), Rua do Diário de Notícias 110.

VIANA, Bento José da Cunha (coronel de Infantaria), 1871. Meditações Militares, Ed. Typografia Universal de Thomaz Quintino Antunes, Impressor da Casa Real, Rua dos Calafates.

GÖTEBORGS UNIVERSITET, Institutionen för historiska studier, Renströmsgatan 6 Box 200, 405 30 Göteborg.

https://www.youtube.com/watch?v=drQrKY6YRgs.

 


[1]    Brandão, Raul. 1913. 192.

[2]    Brandão, Raul, 1913. 88.

[3]    Gonçalves, António José Rodrigues, 2017. As transcrições do texto desta conferência estão contidas nas pág. 117 e seguintes.

[4]    Segundo a Göteborgs Universitet, esta foi a segunda maior batalha naval ocorrida em toda História e a maior que ocorreu no Golfo da Finlândia. As perdas dos navios russos são elevadas: capturados 22 navios de todos os tipos e afundados 16 galés, 16 canhoneiras e 19 navios de linha. A descrição da batalha a que tivemos acesso não refere baterias flutuantes, nem as representações, em pintura, da batalha as mostram. Presume-se que designação de “bateria flutuante”, usada por Böer, deverá ser atribuída às canhoneiras, 23 no início da batalha.

[5]    Gonçalves, António José Rodrigues, 2017, 44.

[6]    Brandão, Raul,. 1913. 26.

[7]    Andrade, Gomes Freire de, Ensaio sobre o Methodo de Organisar em Portugal o Exército Relativo à População, Agricultura e Defeza do Paiz, Lisboa, 1806. Em 1871, o então coronel de Infantaria Bento José da Cunha Viana (1817-1902), produz uma brochura de setenta e duas páginas – Meditações Militares – acerca da mesma temática e faz a apologia de algumas propostas de Gomes Freire.

[8]    Brandão, Raul, 1913. 40.

[9]    Hoje, diríamos “processo”, como conjunto de documentos a apresentar para fazer prevalecer os seus direitos.

[10]    Brandão, Raul, 1913. 75.

[11]    Brandão, Raul, 1913. 10.

[12]    De acordo com a doutrina actual, seriam 5 baterias de peças e uma de obuses. A expressão “morrões acesos” quer dizer carregadas e prontas a disparar.

[13]    Podemos admitir que esta nomeação resultará mais da pouca confiança que Beresford tinha nas autoridades portuguesas do que da intenção de evitar que o prisioneiro fosse maltratado ou até de o proteger.

[14]    Tinha direito a 12 vinténs por dia. Naquele tempo, sempre que possível, os presos procuravam assegurar a sua a alimentação através de familiares e amigos.

[15]    Ver Böer, conferência apresentada em 18 de Outubro de 1903, no Templo Grande José Estevão do Grande Oriente Lusitano Unido do Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa (pág. 15) incluída em Gonçalves, António José Rodrigues, “Gomes Freire de Andrade – Um Mártir da Pátria”.

[16]    Brandão, Raul, 1913. 199.

[17]    Brandão, Raul, 1913. 196.

[18]    Brandão, Raul, 1913. 186.

[19]    Sentença que Condenou Gomes Freire de Andrade e outros, Lisboa, 1817 (Pág. 25).

[20]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 88.

[21]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 47.

[22]    Este oficial era Marechal-de-Campo, desde 1816, no comando da divisão sedeada em Lisboa. Era, como muitos outros oficiais britânicos, um E. O. P. S. (Engaged On Particular Service), “dispositivo/situação legal que permite a promoção de um oficial sem vagas para tal na sua unidade de colocação”. A designação da situação administrativa estará relacionada com as tarefas (no estrangeiro) atribuídas ao oficial. Costa 2008, Vol. III, Tomo II, 438.

[23]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 37.

[24]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 39.

[25]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 40 e 41.

[26]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 41 e 43.

[27]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 43.

[28]    Freitas, Joaquim Ferreira de, 1822. 45.

[29]    Brandão, Raul, 1913. 207.

[30]    Brandão, Raul, 1913. 200.

[31]    Brandão Raul, 87

[32]    Autoria atribuída por Raúl Brandão.

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