Nº 2608 - Maio de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

War Machine

Filme Original Netflix

Escrito e realizado por David Michôd

 

War Machine – Uma Máquina de Guerra em torno de um homem

Estreou em 2017 um filme original do canal Netflix intitulado War Machine. O filme terá passado despercebido à maior parte dos portugueses, mas não é por isso que não merece ser visto e debatido, precisamente quando a “nova” estratégia de Trump para o Afeganistão, apresentada em agosto de 2017, está em curso e Portugal está de novo neste Teatro de Operações com uma Força Nacional Destacada de 160 militares a somar a outros que se têm mantido em funções de Estado-Maior.

 

Um general no centro da máquina

War Machine é uma produção de Brad Pitt que acumula também com o papel principal: o general Glen McMahon, alcunhado de Glenimal. McMahon não é mais do que uma versão satirizada do General Stanley McChrystal que comandou as forças internacionais no Afeganistão, a partir de junho de 2009, e que um artigo na revista Rolling Stone, publicado no ano seguinte, pôs termo ao revelar o conteúdo das conversas de McChrystal e o seu grupo de assessores mais próximos sobre o então presidente Obama e o seu vice-presidente. The Runaway General[1] foi o título desse artigo escrito por Michael Hastings e que venceu nesse ano o George Polk Award[2]. Mais tarde, Hasting publicou um livro intitulado The Operators[3], no qual o filme é baseado. Hastings, que viria a falecer num acidente de viação em 2013[4], é representado no filme como o jornalista Sean Cullen que é também o narrador.

Cullen afirma, logo no início do filme, que “para se perceber a mente do General McMahon, precisamos de compreender a loucura das guerras da América moderna”, mas é só mesmo sobre a mente do general que recai o grosso do filme. Cullen entende que “as guerras não são combatidas por nações ou exércitos, mas sim por homens. E que no aparelho militar americano existem dois tipos de generais: os que acreditam que podem vencer face a toda a evidência em contrário, e os que sabem que não o conseguem fazer”. O jornalista esclarece logo que “infelizmente para o mundo são os que acreditam que sobem ao topo da hierarquia. São tipos como Glen que recebem a chave do castelo”.

É fácil, e por isso tentador, satirizar o aparelho militar: os uniformes, as práticas e rituais, a hierarquia e a disciplina, principalmente quando vista do conforto de tempo de paz, o que não é o caso já que Hastings (o verdadeiro jornalista) conheceu e sentiu bem a dimensão violenta de países como o Iraque e o Afeganistão[5]. Os trejeitos de comédia na postura e fala do general McMahon parecem antever um filme todo ele de sátira e gozo, mas a verdade é que o filme não deixa de dar uma visão interessante da liderança (pouco habitual) deste general e da complexidade da guerra no Afeganistão, aspetos que podem passar despercebidos ao longo do filme. McMahon começa por percorrer o país, indo ao mais recôndito lugar para falar com as pessoas (líderes locais, agentes de ONG, etc.) e os comandantes militares no terreno, com sinais de uma genuína abertura. Sob o manto diáfano da sátira, o filme retrata a linguagem e procedimentos inovadores do general e o seu esforço em explicar que a doutrina de counterinsurgency não tem funcionado por ninguém a ter conduzido de forma correta. O general desdobra-se em explicações ao seu Estado-Maior multinacional – que reflete uma coligação de vontade de quarenta e três nações em que cada uma participa nos seus próprios termos – e em tentativas para mudar práticas de organização, inclusive a convencê-lo a trabalhar em open-space. A todos explica que “you can’t build a nation at a gunpoint”. Na matemática da contra-subversão do general Glen, dois insurgentes mortos num universo de dez não resulta em oito, mas sim em vinte já que a morte de cada um arrastará novos elementos dispostos a combater. Glen vai ainda mais longe, vai ao ponto de inverter a lógica da coragem militar e do papel do soldado no uso da força letal a uma ameaça: propõe – para espanto e confusão do simples soldado – o reconhecimento para uma “contenção corajosa”. O raciocínio é simples: não protegemos alguém que tentamos matar.

A saída precipitada de McMahon por causa da publicação do artigo impediu a continuação da sua estratégia inovadora, à qual Cullen parecia vaticinar o insucesso com base nos indicadores habituais (e incontornáveis): a morte de civis inocentes e a incompreensão do povo afegão sobre o papel dos americanos no seu país, mesmo quando explicado cara-a-cara pelo próprio general. Com a saída de Glen tudo parece pronto a seguir o mesmo diapasão com a nomeação de um novo general – Bob – que com o mesmo entusiamo acredita que é possível ganhar a guerra. Bob, na vida real foi Petraeus que, enquanto comandante do CentCom[6], era o superior hierárquico de McChrystal. Já a terminar, Glen é ainda apresentado na sua versão de general na reserva a “vender” sabedoria para gestão, numa alusão à evolução do general McChrystal para um guru da gestão, estatuto consolidado com a sua obra “Team of Teams”[7].

 

Afinal tudo se repete?

A história das nações está repleta de sucessos que se deveram unicamente a políticos e militares que acreditaram que venceriam contra todas as evidências do contrário. Mas o mesmo se pode dizer dos grandes insucessos, ou mesmo grandes desgraças, que se deveram a essa vontade que se transforma em obstinação e perde o sentido da realidade[8]. O filme insiste em clichés banais e sistematicamente recorrentes (se calhar, com razão) de que os generais só se sentem úteis na guerra (um médico só se sentirá útil quando existe doença e pacientes?), de que são invariavelmente arrogantes (sempre a falar em vencer a guerra) e ambiciosos “para além dos limites do que é pedido”.

O artigo foi publicado na revista Rolling Stone na altura em que a guerra no Afeganistão ultrapassava em longevidade a guerra do Vietname e cujos resultados decisivos tardavam em aparecer. Tal como hoje, mas agora com o estatuto da mais prolongada guerra em que os Estados Unidos estiveram e ainda estão envolvidos. Na apresentação da nova estratégia, em finais de agosto de 2017, em Fort Meyr, no Estado da Virgínia, Trump relembrou que o “povo americano está cansado de guerra sem vitória”[9]. A abordagem estritamente militar, iniciada em 2001, não foi suficiente para dar uma solução duradoura naquele país, pelo que o esforço evoluiu para outras dimensões – formação massiva das forças armadas e de polícia, bem como de outras estruturas do estado – levando a que o empenhamento internacional, em 2010, chegasse ao ponto de uma coligação internacional liderada pela NATO com mais de cem mil militares, muitos deles empenhados em proteger e dinamizar projetos de reconstrução.

Antes de ler o artigo, o general McChrystal interrogou-se para si como é que a história do repórter da Rolling Stone poderia ser um problema[10]. Depois de ver o filme também nos interrogámos sobre se este não poderia ter sido produzido e realizado com o mesmo guião, numa versão sem sátira – bastava tirar os trejeitos de comédia aos tiques do general McMahon e fazer pequenos ajustes à banda sonora. Fica a dúvida de qual das versões contribuiria melhor para a aspiração de Cullen em despertar a questão chave de “o que qualquer parte disto diz de nós”. Por este motivo, o filme merece ser visto principalmente por políticos e académicos ligados à área das Relações Internacionais e assuntos de Segurança e Defesa, mas também por militares para um exercício de humildade e compreensão que mesmo as mais criativas formas de abordagem à complexidade das operações se podem esfumar facilmente.

Tenente-coronel José Miguel Moreira Freire

Sócio efetivo da Revista Militar

 

 


[1]    HASTINGS, Michael – The Runaway General. [Consultado em: 22 de agosto de 2017] Disponível em: http://www.rollingstone.com/politics/news/the-runaway-general-20100622.

[2]    Prémio criado em 1948, pela Long Island University, em Nova York, para reconhecer o jornalismo intrépido. Trata-se de um dos prémios jornalísticos mais prestigiados nos Estados Unidos.

[3]    HASTINGS, Michael – The Operators. New York: Penguin Random House, 2012.

[4]    O embate violento a alta velocidade do seu Mercedes C250 Coupé numa árvore, em Los Angeles, viria a alimentar algumas teses sobre a possibilidade de um homicídio disfarçado de acidente.

[5]    A sua noiva de então morreu no Iraque ao serviço de uma ONG – a National Democratic Institute – e Hasting publicou um livro intitulado “I lost my love in Baghdad: A modern war story”.

[6]    Abreviatura de Central Command. O Comando Central americano é responsável por comandar e coordenar todas as operações militares americanas num total de vinte países e que compreende a região do Médio Oriente e da Ásia Central.

[7]    MCCHRYSTAL, Stanley – Team of Teams. New Rules of Engagement for a Complex World. New York: Penguin Publishing Group, 2015. ISBN: 978-1-59184-748-9. Curiosamente, no meio militar americano, o termo “Team of Teams” passou a ser usado como classificador de modernidade e coesão nos Estados-Maiores.

[8]    Talvez a obra paradigmática seja a de DIXON, Norman – A Psicologia da Incompetência dos Militares. Lisboa: Dom Quixote, 2005. ISBN: 9789722027281.

[9]    TRUMP, Donald. Remarks by President Trump on the Strategy in Afghanistan and South Asia. [Consultado em: 3 de setembro de 2017]. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2017/08/21/remarks-president-trump-strategy-afghanistan-and-south-asia.

[10]    MCCHRYSTAL, Stanley – My Share of the Task. A Memoir. New York: Perguin Group, 2013. ISBN: 978-1-59184-475-4.

Coronel
José Miguel Moreira Freire
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by CMG Armando Dias Correia