Nº 2640 - Janeiro de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

Os Números da Guerra de África – Angola, Guiné, Moçambique

 

Começo por felicitar o Tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, pela oportunidade e qualidade da obra “Os Números da Guerra de África – Angola, Guiné, Moçambique”, mas também o editor, pela coragem posta neste desafio, em tempos particularmente difíceis para as editoras.

Com o rigor do artilheiro e do investigador, a visão global do militar e do historiador, e o sentido critico do cidadão ativo nas redes sociais, o autor deixa a sua chancela neste livro, com uma escrita simples, acompanhada de um conjunto alargado de quadros e gráficos complementares e com uma dose muito equilibrada de razão e de paixão.

Sustentado por uma boa bibliografia (casos da “Guerra Colonial”, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes e da “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, da “Comissão para o Estudo das Campanhas de África” – CECA) e por fontes primárias existentes nos diferentes arquivos nacionais e norte-americanos, Marquês de Sousa divulga novos dados e atualiza outros relativos a uma Guerra que marcou e marca profundamente, ainda hoje, toda uma geração de cidadãos, em especial os combatentes. E esses números, que incluem os efetivos, os mortos e feridos, as armas e equipamentos, as estatísticas de ações e combates, as despesas e outros dados sobre os movimentos independentistas, são ilustrados através de vários gráficos e mapas, que nos dão uma imagem “diferente” da Guerra.

Assim, o livro pode considerar-se como que uma homenagem que o autor presta a todos os atores da Guerra, permitindo aos leitores e em especial aos investigadores, historiadores e combatentes, fazerem a “sua” análise sobre a Guerra ou mesmo colocarem em causa esses mesmos números, com base em novos dados, novas estimativas ou em diferentes metodologias. E isso faz parte da riqueza da História, pois só com investigação rigorosa, com análise metodológica e com reflexão construtiva poderemos aspirar a estar mais próximos da verdade histórica.

Como “filho da Guerra”, nascido em Angola, acompanhei, de perto, a Guerra até 5 de outubro de 1975 (inclusivamente com familiares nos dois lados da contenda). Como investigador e estrategista, entendo que os números da guerra constituem verdadeiros estandartes (que dão origem à “guerra dos números”), com um significado muito especial, designadamente no que se refere aos mortos e aos feridos.

Nos dias de hoje, em plena Pandemia COVID-19, temos acesso diário ao número de mortos em Portugal e no Mundo, com critérios muito objetivos (apesar de discutíveis no início – relativamente à inclusão ou não dos casos de acumulação de doenças graves). Entre 1961 e 1975, os dados relativos a mortos e a feridos nos diferentes teatros de operações africanos, seja de combatentes de ambos os lados, seja dos civis em geral e dos autóctones em particular, têm discrepâncias entre as várias fontes, independentemente do excelente trabalho desenvolvido pela CECA, ou pelos Arquivos dos três Ramos das Forças Armadas. Entre as várias razões, uma diz respeito à identificação das causas da morte (combate, acidentes, afogamento, doença, etc.), e outra a dados constantes de relatórios de companhia e batalhão que infelizmente se perderam. É neste sentido que os contributos para a sua atualização e correção são sempre bem-vindos, em especial para os combatentes, para os seus familiares e para as organizações que defendem os seus interesses, como a Liga dos Combatentes, que tem feito um trabalho extraordinário no âmbito da justiça, da homenagem, da ação cultural e pedagógica, do reconhecimento, e do cuidar das “vidas” subjacentes aos números.

A título de exemplo, os números normalmente utilizados pela comunicação social, quando trata de notícias sobre a Guerra, são de 13 anos de duração da guerra, 10.000 mortos e 30.000 feridos. Para Marquês de Sousa e relativamente ao número de mortos (p. 97), são 10.425 combatentes portugueses, aos quais se devem juntar os 6.000 civis e os cerca de 28.226 do lado dos movimentos de libertação – num total de 44.651 vidas perdidas. No entanto, quando consultada a entrada da wikipédia na versão em inglês sobre a Guerra Colonial (o mais consultado a nível mundial), constatamos que estão registados 16.278 mortos do lado português (incluindo os 7.447 africanos mortos pelo PAIGC) e 26.000 dos movimentos de libertação, para além de 110.000 mortos civis, o que dá um valor total de 152.278 mortos associados à Guerra. Entretanto, na versão do site em português, são referidos 8.830 mortos portugueses e menos de 20.000 dos movimentos de libertação, num total inferior a 30.000 mortos. São discrepâncias enormes e é tempo de tratarmos esta matéria com maior rigor, como no caso dos dados constates no livro do Marquês de Sousa, a quem sugiro que altere os dados da wikipédia nas suas duas versões, a bem da verdade histórica.

São assim dados que importa melhorar através de diferentes projetos de investigação, mas como podemos constatar no “Monumento Aos Combatentes do Ultramar”, em Belém, os cerca de 9.000 nomes ali gravados são muito mais do que números, pois representam o sacrifício de cada combatente, o sofrimento de cada família e amargura de toda uma Nação.

Organizado em 5 capítulos (I – Recrutamento e Mobilização; II – Os mortos e os feridos; III – Ações e meios de combate; IV – As despesas da guerra; V – Os movimentos independentistas), o livro é muito mais do que os efetivos e os mortos e feridos, pois disponibiliza contributos para a esfera económica, financeira, demográfica e militar, com números decorrentes de fontes nacionais, mas também de fontes próximas dos movimentos independentistas (pouco conhecidas).

É, assim, um livro mais frio sobre a Guerra, mas os números podem e devem ser lidos numa perspetiva mais quente e alargada, seja através do enquadramento internacional da Guerra ou do seu enquadramento nacional. Como referiu o Senhor Presidente da República, no seu discurso na Assembleia da República, no dia 25 de Abril de 2021, este não é “… um tempo desprendido de outros tempos. Foi o que foi porque as décadas que o precederam, o século que o precedeu, os cinco séculos que o precederam criaram ou prolongaram contextos que o haveriam de definir e condicionar…”.

Resta-me reiterar as minhas felicitações ao autor e ao editor, citando Marc Bloch: “O passado é por definição, um dado que coisa alguma pode modificar. Mas o conhecimento do passado é coisa em progresso, que ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa”. Eu diria que é a Memória, que urge cuidar com conhecimento e respeito… pelo passado, pelo presente e pelo futuro.

A Revista Militar felicita o autor pela publicação desta obra e agradece a oferta do exemplar que passou a contar no seu acervo bibliográfico.

 

Major-general João Vieira Borges

Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar

Major-general
João Jorge Botelho Vieira Borges
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