Nº 2651 - Dezembro de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

Fim de Império (1947-1975)

 

O livro Fim de Império (1947-1975), do Major-general Manuel de Campos Almeida, é uma espécie de autobiografia do autor que, além da sua própria vivência nos relata as suas experiências de vida e do ambiente, social, político e militar que o rodearam ao longo daqueles anos.

Depois de uma Nota de Apresentação e de um Preâmbulo, seguem-se os sete capítulos da obra.

No Capítulo 1, o autor descreve-nos a sua visão da terra que o viu nascer, sob os aspectos paisagísticos e sociais.

Nascido em Sezures, uma aldeia da Beira Alta, num período em que ainda se faziam sentir os efeitos da II Guerra Mundial, ali frequentou a Escola Primária. Como era hábito da época, ali lhe foram ensinados não só o “ler, escrever e contar”, como também os valores patrióticos, o culto pela Bandeira Nacional e pela História do Império.

No Capítulo 2, aborda a sua mudança, com a família, para Viseu, a fim de frequentar o Liceu; era a mudança do ambiente bucólico da aldeia para o ambiente urbano de uma cidade.

Foi uma alteração radical do estilo de vida com a “novidade” do acesso à electricidade, água canalizada e saneamento básico.

Recorda o autor a novidade de possuírem um frigorífico, coisa rara na época.

Foi nesse ano, refere o autor, que se iniciaram as emissões regulares da RTP e de como o pessoal se juntava junto às montras dos estabelecimentos de electrodomésticos para assistir às emissões.

Recorda-nos o autor as movimentações de militares em Viseu, não só para a Carreira de Tiro como as mobilizações do RI 14 para a Índia e, mais tarde, para África.

Efectuado o respectivo exame de admissão, o autor iniciou a frequência do Liceu Nacional de Viseu.

A sua entrada para o Liceu, em 1957, trouxe-lhe também a participação nas actividades da Mocidade Portuguesa, onde lhe foram incutidas as obrigações morais, cívicas e militares; a instrução de ordem unida fazia parte dos programas daquela organização.

Refere também a estrutura altamente estratificada e hierarquizada daquele estabelecimento de ensino e do seu corpo docente; os professores eram tratados por Senhor Doutor e as professoras por Minha Senhora.

Recorda-nos ainda com carinho e muito boa memória o corpo docente daquele estabelecimento: “recordo os seus nomes, rostos, postura, tom de voz e algumas das matérias que leccionavam”.

Significativa também a sua referência aos condiscípulos já falecidos.

O ambiente social da cidade também no é descrito neste capítulo, bem como as manifestações patrióticas que ocorriam sempre que partia um contingente militar do RI-14 para o Ultramar.

Das diversas personagens típicas da cidade que o autor refere, destacamos, aqui, as referências ao polícia sinaleiro (o cabeça de giz) e ao cauteleiro.

Refere-nos ainda o autor (p. 70), neste capítulo, as suas vivências de férias na Figueira da Foz que antes da descoberta do Algarve, tinha um ambiente cosmopolita com portugueses, espanhóis e franceses.

Destacou também os ícones daquela cidade (p. 70), como o Grande Hotel, o Palácio Sottomayor, o edifício acastelado do Engenheiro Silva, o edifício do Turismo, a Torre do Relógio e o Forte de Santa Catarina.

Faz-nos também referência, ainda sobre a Figueira da Foz, à vivência familiar durante essas estadias balneares.

No Capítulo 3, o autor descreve-nos o início da sua carreira militar; depois das provas de admissão, o autor iniciou o curso da Academia Militar, em Outubro de 1964, juntamente com mais 136 candidatos.

A este propósito, refere-se aos seus conterrâneos que anteriormente tinham seguido a carreira das armas, destacando, entre outros o General Fernando dos Santos Costa que foi Ministro do Exército.

A adaptação à vida militar é referida com algum pormenor, desde a praxe académica, aos rigorosos horários e disciplina, passando pelo uso correcto dos diferentes uniformes distribuídos aos mancebos.

Recorda-se ainda dos comandantes e dos professores daquela instituição.

Também os camaradas que com ele frequentaram aquela escola militar são referidos nesta obra.

Alguns deram a vida pela Pátria e outros tiveram participação activa no Golpe Militar de 25 de Abril de 1974.

Dos primeiros, destaco, aqui, o capitão piloto-aviador Francisco Lopes Manso, que faleceu na Guiné quando o helicóptero que pilotava e onde transportava quatro deputados da Assembleia Nacional se despenhou durante uma tempestade.

Dos segundos, refiro aqui os Capitães Dinis de Almeida e Salgueiro Maia.

Deste período inicial da sua carreira militar, o autor refere a viagem ao Brasil, em 1968, de um grupo de cadetes para as comemorações dos 500 anos do nascimento de Pedro Álvares Cabral. Foi o mesmo ano do acidente que vitimou o Presidente do Conselho de Ministros, Professor António de Oliveira Salazar, levando à chefia do governo o Professor Marcelo Caetano.

O Capítulo 4 refere-se ao Período Imperial, e corresponde aos períodos em que o autor prestou serviço nos antigos territórios sob administração portuguesa.

A primeira experiência ultramarina do autor foi na Guiné, para onde partiu em Junho de 1970 e onde teve o primeiro contacto com a realidade africana bem diversa daquela que imaginara (p. 107).

Do clima quente e húmido, aos ruídos dos helicópteros Alouette III que, logo ao alvorecer, deslocavam do aeroporto de Bissalanca, à presença dos numerosos muçulmanos com os seus trajes, tudo foi inesperado para o autor.

Desta primeira comissão ressaltou, da descrição do autor, os problemas da limitação da bagagem (limitada a 20 kg), e das despedidas (a nomeação fora feita com uma semana de antecedência).

Já na Guiné, o autor descreve-nos pormenorizadamente a cidade, as suas instalações civis e militares e a sua população. Fala-nos também das lojas de comércio elegante pertencentes a sírios e libaneses, os restaurantes e a ponte-cais do Pidjiguiti onde ocorrera a revolta de 1959.

O primeiro sobressalto do autor ocorreu quando observou os clarões e ouviu as explosões nocturnas vindas da região a Sul de Bissau e que os mais conhecedores identificavam, não só o quartel do Exército que estava debaixo de fogo como as armas utilizadas.

Explica-nos ainda o autor (p. 113) que o dispositivo militar assentava numa quadrícula bastante densa e refere que o seu colega de liceu Alferes António Júlio Rosa fora atacado no seu acantonamento em Bissassama e aprisionado pelo PAIGC, em 3 de Fevereiro de1968; viria a ser libertado na Operação Mar Verde, em 22 de Novembro de 1970.

Explica também as consequências positivas e negativas da exiguidade do território, do seu clima e das condições oro-hidrográficas para as acções militares e de contraguerrilha.

São ainda explicadas as limitações das nossas acções militares (limitadas ao nosso território) e ao armamento utilizado; antes da chegada dos Fiat G91, foram os P2-V5, aviões de luta anti-submarina, que se utilizaram em missões de bombardeamento.

Depois do falhanço das conversações promovidas por Spínola e que levou à morte dos três majores em 20 de Abril de 1970, começaram os preparativos para aquela que seria a Operação Mar Verde.

O autor seguiu depois para a ilha do Sal, em Cabo Verde, e que designa (p. 129) como a Ilha Deserta Perdida no Atlântico. Ali, a Força Aérea Portuguesa mantinha o apoio logístico, técnico e de comunicações às aeronaves militares que cruzavam o Atlântico.

Diz-nos o autor (p. 131) que O ambiente desértico, a escassez de água, os anos consecutivos sem chuva, a aridez lunar, o isolamento, a inexistência de rede telefónica para o exterior, a falta e distracções, a precaridade de condições de vida, o afastamento da família, tornavam a comissão no Sal pouco apetecível para os militares.

Conta-nos ainda (p. 136), relativamente ao P2-V5, que uma “missão notável ocorreu em 30 de outubro de 1969, quando (após exaustivos voos de 9 e 12 horas) a tripulação conseguiu encontrar e resgatar o piloto holandês Peter Matteus, que havia saído de Faro, com destino ao sal e se ejectou em pleno Atlântico, por falta de combustível”.

Explica-nos também o autor o porquê de não ter havido guerrilha em Cabo Verde, citando (p. 142) António Tomás, em O Fazedor de Utopias:

Na Guiné, bastara sobrepor ao protesto nativo, latente desde as últimas campanhas de pacificação, a reivindicação da independência nacional. Em Cabo Verde, a palavra para mobilizar teria de ser outra. O recurso ao colonialismo não funcionaria porque os cabo-verdianos, de um modo geral, não se consideravam colonizados. Amílcar Cabral sabia que para resolver este problema era necessário tornar os cabo-verdianos conscientes de serem colonizados (…) Cabo Verde era um caso à parte. Os seus naturais eram civilizados e o arquipélago, legalmente, estava a meio caminho entre a colónia e a região adjacente, como a Madeira e os Açores.

Ainda neste capítulo, são passados em revista os acontecimentos militares, políticos e sociais ocorridos até 1974. Nomeadamente, o agravamento da situação militar nos territórios portugueses, a evolução política nos países em redor das Províncias portuguesas, perguntando, no final (p. 244), “porque desistimos da guerra?” e respondendo com uma frase atribuída a um prisioneiro: “Vocês têm os relógios, mas nós somos os donos do tempo”.

O Capítulo 5 refere-se ao 25 de Abril de 1974 e faz uma retrospectiva do que foi o Movimento dos Capitães.

Refere também as intentonas, ocorridas depois do 28 de Maio de 1926, como a revolta do general Sousa Dias (1927), a Revolta da Madeira (1931), a Revolta do Marinheiros (1936), ainda antes da II Guerra Mundial; depois desta, referem-se as ocorridas desde a Mealhada (1946) até Beja (1962). Afirma o autor (p. 252) que:

Entretanto os jovens tenentes e capitães do QP cedo se deram conta do abismo estatutário que os separava das altas patentes e dos técnicos superiores das grandes empresas. Tomavam ainda consciência da modéstia dos seus salários, da rotatividade constante entre a Metrópole e o Ultramar, da perigosidade das suas missões, do descalabro das suas vidas familiares e da impossibilidade de sustentar por tempo indefinido o conflito africano”.

O Capítulo 6, Fim de Império, aborda a comissão do autor em Angola já em 1974, descrevendo os acontecimentos de guerra naquele território desde 1961, e a evolução do dispositivo militar da Força Aérea Portuguesa e dos seus meios operacionais.

Descreve também (pp. 285-286) a retracção do dispositivo militar com o início da descolonização, em 1975, e ainda as lutas entre os três movimentos independentistas para obterem a hegemonia, referindo;

À minha geração haviam sido pedidos dois esforços hercúleos, o de aguentar com a defesa do Império, nos anos sessenta e setenta, e o de superintender às sequelas do seu abandono”. (p. 289).

Afirma ainda (p. 293) que “Em Outubro de 1975, também eu regressei definitivamente a Lisboa (…) senti o mesmo que S. Paulo quando, já no crepúsculo da sua existência, escreveu a sua Segunda Carta a Timóteo: Avizinha-se o tempo da minha libertação. Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel”.

O último Capítulo, o 7º, identifica os dez naturais de Penalva do Castelo que faleceram no conflito do Ultramar (1961-75), acompanhando-a de uma curta biografia de cada um. Foram um capitão, três cabos e 6 soldados.

Termina a obra com as habituais Cronologia e Bibliografia.

Parabéns ao autor que, deste modo, recorda os difíceis tempos vividos pela nossa geração na defesa de Portugal e dos territórios sob a sua administração.

A Revista Militar agradece ao autor o exemplar que foi oferecido para o acervo da sua biblioteca.

 

Capitão-de-mar-e-guerra José António Rodrigues Pereira

Vogal da Direção da Revista Militar

Capitão-de-Mar-e-Guerra
José António Rodrigues Pereira
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2023-04-19
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Capitão-de-Mar-e-Guerra

José António Rodrigues Pereira

Oficial de Marinha, nasceu em Lisboa em 7 de Junho de 1948, entrou para a Escola Naval em 1 de Setembro de 1966, sendo promovido a Capitão-de-mar-e-guerra em 27 de Julho de 1999, e passado à Reserva, por limite de idade, em 7 de Junho de 2005. Reformou-se, a seu pedido, em 30 de Dezembro de 2010.

Prestou serviço em diversas unidades navais, destacando-se os NRP Brava (1970), NRP Porto Santo (1970), NRP Boavista (Açores, 1970-71), NRP Velas (1971), NRP Jacinto Cândido (Moçambique, 1973-75), NRP Afonso Cerqueira (Timor, 1975-76), NRP Hermenegildo Capelo (1977), NE Vega (1984-85), NE Polar (1985-86) e NRP São Miguel (Golfo Pérsico, 1990-91); comandou os NRP Zaire (1979-82), e NE Polar (1986-88).

Para além de diversos curs

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by CMG Armando Dias Correia