Nº 2656 - Maio de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os conflitos espalham-se…
Tenente-coronel PilAv
João José Brandão Ferreira

“Há tanto burro mandando

Em gente de inteligência

Que eu até fico pensando

Que a burrice é uma ciência”

António Aleixo

 

A Geopolítica não pára. E os conflitos a que dá origem também não.

Os órgãos de comunicação social, por norma, só relatam o que acontece, depois de acontecer. E os políticos e chefes militares andarão à frente dos eventos?

É o que resta ir aferindo.

O actual conflito entre Marrocos e a Argélia, que se tem agudizado desde 2020, tem atraído pouca atenção.

Mas para nós, portugueses, o que se passa deve ser seguido à lupa, pois é de crucial importância.

Lembro apenas que é um espaço regional que nos fica próximo, onde tivemos presença activa durante 354 anos (entre 1415 – conquista de Ceuta e 1769 – abandono de Mazagão, sem esquecer combates marítimos desde D. Afonso Henriques e expedições às Canárias, desde 1336), e que gozamos hoje ainda a influência dos tratados de paz com Marrocos desde 1774, e do acordo com a Argélia, de 1821, sem embargo da marinha portuguesa apenas ter deixado de ter uma esquadra no sul do país (chamada a Esquadra do Estreito) em meados do século XIX, devido a ameaças continuadas de pirataria oriundas daquelas áreas1.

Hoje estamos confrontados com rotas de migração clandestina vindas de Marrocos, apesar do Tratado de Boa Vizinhança, Amizade e Cooperação, assinado em 30 de Maio de 1994, ao tempo do governo de Cavaco Silva.

Marrocos obteve a sua independência da França, em 24 de Março de 1956, e da Espanha, a 7 de Abril do mesmo ano, mantendo-se uma Monarquia, regime de certo modo liberal e ligado ao Ocidente; a Argélia conseguiu a sua independência da França, em 1962, após uma brutal guerra de guerrilhas, para logo se tornar uma República socialista, dominada por um partido único, a Frente de Libertação Nacional (FLN) e pelas Forças Armadas e ligada ao leste comunista. Ainda hoje quase não saiu desta postura, sendo um país muito fechado sobre si mesmo.

Nunca se deu bem com Marrocos, com o qual chegou a ter uma pequena guerra, em 1962.

O Sahara Espanhol continua “oficialmente” uma “colónia” espanhola, a que a Espanha nunca ligou grande importância. E com os “ventos” das independências africanas, o governo espanhol tentou entregar a resolução do futuro do território à ONU (que nunca resolve nada) retirando-se do território, em 1975.

Marrocos reivindica que o território lhe pertence, dado ser o prolongamento natural do seu território para sul ao que se opõe a “Frente Polisário”, organização que pretende a independência do mesmo, sob a sua tutela. Esta organização política é apoiada pela Argélia (digamos que foi criada ao tempo do Presidente Boumédiène, e muito apoiada por este), mas cujo principal objectivo é ter acesso ao Atlântico Sul, que dista na parte sul do seu território apenas cerca de 200 km do mar. Ambos os países pretendem obter os ganhos geopolíticos da posição territorial, não só do oceano, que é rico em peixe, como as riquezas naturais (fosfatos e ferro); bem como por ser uma via de acesso privilegiada à região do Sahel.

Marrocos – que ocupou o território, em 1975, através da célebre “Marcha Verde” – e a Frente Polisário chegaram a um acordo de cessar – fogo em 1991, mas a situação nunca deixou de estar tensa e a existência de incidentes é normal, desde então. Grande parte dos Sahauris vive em campos de refugiados no lado argelino da fronteira, onde se estima haver 160.000 pessoas, junto à cidade de Tindouf.2

Na sequência a ONU agendou um referendo para decidir o futuro do território, que até hoje não se realizou por oposição de Marrocos.3

Para se perceber melhor ainda a situação é mister recordar que a principal razão da ida de D. Sebastião a África, que redundou no desastre de Alcácer Quibir, foi a ameaça do Império Otomano (que já estava em Argel), de obter um porto no Atlântico, na altura a cidade de Larache.

É mister ainda acrescentar que a fronteira terrestre entre Marrocos e a Argélia está fechada desde o tempo do Presidente Argelino Houari Boumédiène (presidente entre 1965 e 1976), havendo no entanto trânsito de aviões e navios.

O Presidente Abdelaziz Bouteflika que governou a Argélia durante duas décadas (entre 1999 e 2019) tentava apaziguar as relações entre os dois países (nasceu em Oujda, Marrocos e era conhecido pelo “marroquino”, junto dos seus oposicionistas), e durante muito tempo dedicou-se a pacificar a Argélia que passou por uma guerra civil larvar por causa da Frente islâmica de Salvação (FIS) que durou cerca de sete anos.4

O actual Presidente Argelino Abdelmadjid Tebboune, de 77 anos, eleito em 19 de Dezembro de 2019, também com uma longa carreira política tem, porém, uma atitude mais agressiva para com Marrocos.

Tomou a iniciativa de rever a Constituição, o que conseguiu, em referendo ocorrido em 1 de Novembro de 2020. Tem conseguido ultrapassar alguma contestação social e algumas doenças que o afectaram. Na política externa é muito crítico de Israel; apoia a causa palestiniana; ofereceu assistência à Líbia, fazendo pontes com o Egipto; pretende intervir na resolução dos problemas a sul, nos países do Sahel e pretende que a Síria volte à Liga Árabe.

Ora a situação piorou desde 2020 e tem passado algo despercebida. Elenquemos os principais eventos.

Aparentemente o que foi considerado mais grave na Argélia – mais ainda do que o conflito larvar por causa da autodeterminação do Sahara Espanhol, defendido por aquele país, ou a anexação do território a Marrocos como é a intenção do Estado deste último reino, liderado pelo actual Rei Moahmmed VI – foi o estabelecimento das relações diplomáticas entre Rabat e o Estado de Israel. Os argelinos não gostaram e insultaram Marrocos.

Este acordo de “paz” foi firmado em 10 de Dezembro de 2020 e inseriu-se na ofensiva diplomática iniciada na Administração Trump, que visava a aproximação entre Israel e países árabes (visando também isolar o Irão) e que já tinha contemplado os Emiratos Árabes Unidos, o Bahrain e o Sudão. A actual Administração Biden tem continuado esta política.

A moeda de troca desta aproximação foi o reconhecimento por parte de Washington da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental. O acordo não tem, porém, coibido o governo marroquino de tecer críticas a Israel, relativamente à questão palestiniana.

Na sequência, Marrocos defendeu, em Julho de 2021, na ONU, a autodeterminação do povo da Kabilia (uma região do norte da Argélia, onde existe uma constelação de berberes, descendentes de romanos e vândalos), o que foi muito mal recebido na Argélia.

O embaixador argelino em Rabat foi chamado e as relações ficaram extremadas. Em Agosto cortaram relações diplomáticas.

Os incidentes de fronteira começaram a acontecer, nomeadamente com “drones”, até que a 3 de Novembro de 2021, a Argélia anunciou que três dos seus nacionais morreram num incidente de fronteira, atribuindo a responsabilidade a Marrocos, prometendo retaliar.

Entretanto em Setembro, o Tribunal Geral da União Europeia, deu razão à Frente Polisário, anulando dois acordos sobre produtos agrícolas e pesqueiros celebrados entre a UE e Rabat, acusando o governo marroquino de explorar ilegalmente os recursos naturais do Sahara Ocidental, sem que os sahauris tenham dado o seu consentimento. Ou seja, na prática, dando razão à independência, não consumada, defendida pela Frente Polisário. Tal representa uma perda de 52 milhões de euros anuais para Marrocos. Desconhece-se o resultado de eventuais recursos.

O contrato feito entre a Argélia e Marrocos, para a “exploração” do gasoduto Magreb – Europa (MEG), iniciado em 1996, que vinha da Argélia, passava por Marrocos e entrava em Espanha pelo Estreito de Gibraltar, dirigindo-se a Sevilha – e daí havendo uma ramificação para Portugal – não foi renovado pela Argélia, pelo que deixou de funcionar em Outubro de 2021.

Trata-se de uma retaliação argelina, que assim deixa de pagar direitos de passagem a Marrocos no valor de um bilião de metros cúbicos de gás natural por ano e que eram aproveitados por Marrocos para gerar 17% da sua produção de eletricidade.

Argel comprometeu-se, porém, a continuar a abastecer Espanha (e Portugal), cujas necessidades dependiam até então, em cerca de 30% do gás argelino, através de outro gasoduto, o “Medgaz”, que entra em Espanha perto de Cartagena, mas que é de menor capacidade, a ser compensada por transporte marítimo.

A tensão entre Argel e Paris, também subiu de tom com o Eliseu a acusar a sua antiga colónia de estar a ser governada por um “sistema político-militar” e de ter “reescrito totalmente” a sua história. Argel não gostou, chamou o seu embaixador em Paris e proibiu os aviões militares franceses de cruzarem o seu espaço aéreo que actuam sobretudo no Sul, em operações na zona do Sahel. Na volta o governo francês restringiu drasticamente o número de vistos a cidadãos argelinos (já tinha feito o mesmo em relação a Marrocos e à Tunísia) acusando-os de que não controlam a emigração ilegal para França.

Entretanto, as relações com Israel aumentaram, tendo sido celebrado um acordo de cooperação sobre segurança, em 24 de Novembro de 2021, durante uma visita a Rabat do Ministro da Defesa israelita, Benny Gantz e que abarca “todos os aspectos”.

Ora tal facto, no contexto de tensão actual com a Argélia, parece ser muito relevante.

Já em Janeiro de 2022, Marrocos criou uma nova zona militar ao longo da sua fronteira com a Argélia. Anteriormente havia apenas duas regiões militares (norte e sul), passando agora a haver esta terceira “zona oriental”. O novo comandante Major-general Mohammed Migdad foi investido a 5 de Janeiro. Segundo uma publicação militar marroquina “a criação desta entidade visa assegurar a consistência do comando, controlo e apoio das componentes terrestres, aéreas e marítimas das Forças Armadas Marroquinas” e dar-lhes “mais flexibilidade e liberdade de acção necessários ao cumprimento das diversas missões”.

A Frente Polisário, por sua vez, alegou em Fevereiro ter morto doze militares marroquinos durante diversos ataques no território em disputa.

Os incidentes no extremo sul do Sahara recomeçaram em Novembro de 2020, após o cessar-fogo que durara 29 anos, ter sido posto em causa após o Exército Marroquino ter intervido para desalojar guerrilheiros sahauris que bloqueavam a estrada que dá acesso à Mauritânia, algo que, alegam, não existia aquando dos acordos de 1991. Desde essa data a Polisário afirma estar “num estado de guerra de autodefesa”.

A ONU enviou o seu delegado para o Sahara Ocidental, Staffan de Mistura, visitar a região em Janeiro de 2022, para encontrar uma solução política para o conflito de que nada resultou, como aliás é típico de qualquer acção daquela desprestigiada Organização.

Os marroquinos continuaram a aprofundar as suas ligações a Israel ao assinarem 13 acordos no âmbito da tecnologia, agricultura e clima, por altura da visita a Rabat do Ministro das Relações Exteriores israelita Yair Lapid, em 27 de Março do corrente ano.

A situação complicou-se ainda mais, quando, sem que nada o fizesse prever, o governo socialista espanhol, mudou a sua posição relativamente ao futuro estatuto do Sahara Espanhol (que era de certa neutralidade) – problema que era a sua principal responsabilidade resolver – ao colocar-se ao lado de Marrocos, apoiando a sua última proposta de ampla autonomia do território, retendo Rabat a soberania sobre o mesmo.

Convém lembrar que espanhóis e marroquinos têm inúmeros conflitos sobre Ceuta e Melilla e mais meia dúzia de pequenas fortalezas e rochedos, na costa marroquina e respectiva delimitação de águas territoriais.

E convém também lembrar que a Espanha ainda não aceita sem engulhos a soberania portuguesa sobre as ilhas selvagens e sua influência na ZEE e estenção da plataforma continental nacionais, e que o Rei Hassan II, quando inaugurou a então terceira maior mesquita a nível mundial, em Casablanca, afirmou apontando para o Atlântico “que os caminhos de Alláh, também se estendem para ocidente”.

O mal-estar de Madrid para com Rabat também tem sido agravado nos últimos anos por causa da imigração ilegal vinda de Marrocos, para as Canárias, Ceuta, Melilla e em rotas navais para o Sul de Espanha.

Portugal também já começou a sofrer com tal, com os barcos tresmalhados que vão chegando ao Algarve (que o governo e a comunicação social têm escondido, desconsiderado ou desculpado) e só não sofremos mais porque gozamos de uma corrente forte para ocidente a sul das nossas águas territoriais, que teima em levar as embarcações que são abandonadas propositadamente ou lhes acaba o combustível para o alto mar...

Esta posição do governo de Madrid que tem, também, suscitado críticas internas, foi oficializada em Março deste ano através de uma carta enviada ao Rei de Marrocos, na qual considerava que a proposta marroquina de autonomia do Sahara, feita em 2007 era a “base mais séria, credível e realista para a resolução deste litígio”. A mudança de atitude foi posteriormente defendida no parlamento espanhol.

Esta posição foi considerada pelo presidente argelino como “moralmente e historicamente inaceitável”.

A retaliação argelina não se fez esperar, tendo suspendido o Tratado de Amizade entre os dois países (assinado em 2002) e congelado, no início de Junho, as operações bancárias relacionadas com o comércio de bens e serviços, com a Espanha. Tal pode pôr em risco o fornecimento de gás aos nossos vizinhos (e Portugal leva por tabela) que importaram cerca de 25% das duas necessidades, nos primeiros três meses do ano, em comparação com os cerca de 40% em 2021. Os espanhóis estão confiantes em que os acordos em vigor e que visam o fornecimento de gás se irão manter e já conseguiram que a UE fizesse declaração semelhante e a lamentar a suspensão do Tratado de Amizade.5

A situação ainda piorou depois de se saber, em Abril, que Madrid está na disposição de enviar para Marrocos gás liquefeito encomendado aparentemente por este país, que seria enviado para Espanha, regaseificado lá e depois enviado para Marrocos através do gasoduto agora encerrado ao gás argelino…

O governo argelino logo fez saber que não admitia que o gás que vende a Espanha pudesse ser desviado para Marrocos e que se tal ocorresse suspenderia o seu fornecimento. A Espanha comprometeu-se de imediato a não o fazer.

De facto, Pedro Sanchez ao tomar esta decisão rompeu o equilíbrio que a Espanha sempre procurou manter entre Marrocos e a Argélia, relativamente à sua antiga colónia. Porque o fez, é passível de discussão. E esta posição é tão mais significativa quanto foi tomada nas vésperas da reunião da OTAN prevista decorrer em Madrid, de 28 a 30 de Junho, onde o novo Conceito Estratégico da Aliança será debatido e aprovado.

Terá sido uma forma de chamar a atenção para o flanco sul da OTAN, agora que as atenções estão focadas na Ucrânia e norte e leste da Europa? Será por pressão dos EUA, que se aprestam para fazerem exercícios militares com os marroquinos? Por eventual interesse judaico? Para estancar a migração clandestina (que é uma ameaça séria – a vários títulos – para toda a Europa) e nomedamente para os países do sul? Mas o que ganharão se Marrocos fechar as fronteiras, mas Argel as abrir?

A tentativa de invasão da cidade de Mellila, em 24 de Junho, por cerca de 2000 emigrantes clandestinos, e os mortos que daí resultaram, poderão ter sido um teste a este acordo?

Uma coisa é certa, era interesse espanhol normalizar as suas relações diplomáticas com Marrocos, muito afectadas depois de um incidente causado por Madrid ter autorizado o tratamento médico em Espanha, do líder da Polisário e presidente da auto-intitulada República Árabe Sarauí, Brahim Ghali.

Em breve se saberá ao certo, pois o estado espanhol mesmo debilitado não costuma dar tiros nos pés quanto aos seus interesses nacionais.

Para completar a análise (sucinta) desta actualidade regional, deve ainda dizer-se que a França tem um uso limitado do gás (apostou no petróleo, no carvão, nas hidricas e sobretudo no nuclear, como fonte da sua energia) pelo que não existe nenhum gasoduto da Argélia (nem de outro país) para o antigo Reino dos Francos. Tão pouco deixa passar gás da Península Ibérica pelo seu território ou vice-versa.

Recebe, no entanto, gás liquefeito, por mar, através de dois terminais, um no Atlântico (em Montair-de-Bretagne) e outro no Mediterrâneo (em Fos-sur-Mer).

Aliás a gestão coordenada da energia a nível da UE é quase nula e foi uma das causas que levou à invasão da Ucrânia, nomeadamente a utilização do Nord Stream 2, acabado de construir.

Já não é assim com a Itália, que é um dos maiores consumidores de gás da Europa e que está muito dependente do gás argelino, que recebe através de um gasoduto que atravessa a Tunísia, passa pelo Mediterrâneo e atravessa a Sicília até chegar ao sul da península italiana. O mesmo acontece através de outro gasoduto que abastece a Itália oriundo da Líbia.

Existe ainda um gasoduto com pequena capacidade (5 a 20 gm3/ano) que chega ao sul de Itália vindo do Mar Cáspio (Azerbeijão) passa pela Georgia e pela Turquia, toca na Bulgária e atravessa o norte da Grécia.

A Itália possui ainda em portos do norte de três terminais para gás liquefeito. Ou seja, a Itália é abastecida de gás através de países cuja estabilidade é duvidosa, podendo ser interrompidos em qualquer altura. E a sua principal fonte é a Argélia6.

Não é certamente por acaso que, na sequencia de uma visita à Turquia, o Presidente Tibboune tivesse apeado na Itália para uma visita de Estado de três dias, onde foi recebido principescamente – diria que com um cerimonial desproporcionado.

O conflito na Ucrânia está longe de estar concluído e existe uma tendência para o fazer escalar para vários pontos do globo, como pode ser exemplo os Balcãs (daí a tentativa frustrada do ministro russo Lavrov de ir à Sérvia, o que foi negado pela proibição do avião em que se deslocava de sobrevoar a Bulgária e a Roménia); os países bálticos; o “enclave” de Kaliningrado; a posição de equilíbrio instável e de jogar em vários tabuleiros por parte da Turquia; o recrudescimento dos conflitos entre sunitas e xiitas, com fulcro no Irão; o jogo perigoso da dialéctica nuclear; a “venda” no mar (através de transbordo) de crude russo, para navios de outras nacionalidades, que não querem ser identificadas, iludindo as sanções e aumentando os proventos de Moscovo (alguns dos quais já ocorrem perto das águas portuguesas), etc.

E, sobretudo, se a China quiser aproveitar-se da situação para destabilizar áreas do Estremo Oriente e aumentar o seu controlo sobre meios logísticos para o seu abastecimento e controlo energético.

Ora, em todo este cenário, é curial que as consequências do que se passa na Ucrânia cheguem de forma mais pesada ao conflito existente entre Marrocos e a Argélia, a que agora se junta a Espanha.

É necessário ter em mente que a Argélia está a ser empurrada para os braços da Rússia, com quem desde a sua independência, tiveram grandes afinidades ideológicas. Aos russos não seria despiciendo contar com a Argélia como aliado, pois permitiria melhor concertar o puzzle da guerra energética em curso e obter eventuais facilidades aeroportuárias na Argélia, para os seus navios e aviões tanto militares como civis. Tal iria reconfigurar toda a situação em toda esta vasta área e até no Sahel onde os interesses russos se têm manifestado, nomeadamente no Mali, contra países ocidentais, de que se destaca a França. Curiosamente, uma área onde têm permanecido tropas portuguesas em operações de guerra (chamando-lhes de paz), área (mais uma) onde não tem interesses directos em jogo.

Quer tudo isto dizer que Portugal pode encontrar-se a breve trecho (quer queira, quer não) envolvido numa área de grande turbulência.

O Governo Português aos costumes tem dito nada, o que não é de todo errado, desde que estivesse preparando o país para piores cenários o que, face às décadas de governação anterior, duvidamos o mais possível. Já não seria mau se tivessem alguém no activo que os informasse do que se vai passando.

Acontece que o país vive em permanente mentira geopolítica e social; demagogia infrene e negação da realidade. E à boa maneira portuguesa, não está preparado para nada devido à irresponsabilidade política; falta de autoridade e indisciplina e abandalhamento social e progressivo esfarelamento da consciência nacional.

A dívida está ingerível e aumenta todos os anos (e vai continuar a aumentar, por causa da natureza do regime e ser a única coisa que os governantes sabem fazer é “atirar dinheiro para cima dos problemas”; a nossa dependência alimentar aumenta e a carência na produção de cereais é uma irresponsabilidade (como é, por exemplo, a alienação de terrenos no país, para multinacionais estrangeiras fazerem plantação intensiva de olival, para além do necessário e frutos secos, só para ficarmos por aqui). Qualquer dia não teremos um quilómetro quadrado de terra em mãos portuguesas...

Os erros energéticos são evidentes e culminaram ultimamente com o erro crasso de se fechar as centrais de carvão e a refinaria de Leixões. Põe-nos constantemente nas mãos dos outros, tornam tudo mais caro, e na prática, não ajudam a despoluir nada, nem a salvar o planeta, apenas servem para colocar comissões nos bolsos de uns poucos.

O “stress” hídrico continua a aumentar, e nada de fundo se antevê fazer, como seria por exemplo, obrigar o governo espanhol a cumprir os caudais mínimos acordados; fazer planos de contingência para rega; medidas para evitar o desperdício de água e pensar em instalar algumas centrais de dessalinização de água do mar. Mas isso não parece dar votos...

Pôr a economia a funcionar bem, também não parece ser prioridade, já que a indústria é boa, mas apenas para os outros, e o turismo é o que está a dar... (outra asneira do modo como está a ser gerido); além disso as teses socialistas e sociais – democratas imperantes (condicionadas pela Constituição da República e pela acção subversiva dos Partidos Comunista e Bloco de Esquerda), privilegiam a distribuição da riqueza em vez da sua criação; sufocam a iniciativa privada (e todos os desgraçados que trabalham) com impostos e fomentam a ociosidade com a distribuição continuada de subsídios.

E quando precisamos de importar (ou exportar) algo estamos completamente dependentes de fretes estranhos, já que a Marinha Mercante Nacional praticamente desapareceu. Lembro, por exemplo, que durante toda a Segunda Guerra Mundial, o país esteve dependente de um único petroleiro, o saudoso S. Brás, para o seu abastecimento em combustíveis e conseguiu sobreviver. Agora não temos um único, 40 anos depois de termos uma das melhores marinhas mercantes do mundo...

O desenvolvimento dos tempos “soit dizent”, democráticos tem sido um espanto!

A doença infantil da Democracia, chamada Demagogia – hoje confundida com populismo – e o primado dos Direitos sobre os Deveres – mesmo que estes últimos não sejam cumpridos – faz o resto.

Por isso, correu há poucas semanas um chiste (verdadeiro) nas redes sociais; dizia mais ou menos isto: “um país a caminho de ser o mais pobre da Europa anda a discutir ciclovias, quatro dias de trabalho e licenças menstruais. Não ganhem tino que não é preciso”.

E, já agora, convém lembrar que já não temos nenhuma “esquadra do Estreito”, tão pouco, outra qualquer já que, por junto, a Marinha Portuguesa – aquela que comemora 700 anos de história, verdadeiramente nasceu ao tempo do nosso primeiro Rei – não está capaz de pôr no mar hoje em dia mais do que uma Fragata, uma Corveta, um Patrulhão e duas ou três lanchas de fiscalização; duas companhias de fuzileiros, e um submarino, em dias bons, semana sim, semana não. E não sei se com as guarnições completas.

A Força Aérea, dificilmente os poderá apoiar, já que se dispuser de um avião P3P para pôr no ar, um C-130, dois ou três C-295; igual número de helicópteros; e meia dúzia de F-16, já será uma festa.

E já não falo em stock de munições (de que não fabricamos uma única) e de toda a parafernália logística necessária para sustentar operações militares.

O Exército Português, antigo como as teias de aranha, está uma sombra do que foi há escassos anos e não reúne, tacticamente, por junto, um Batalhão, mais uns pozinhos. Não conta praticamente para nada. E a melhor arma ligeira de que dispunha, as G-3, estão a ser cedidas aos ucranianos. “Melhor” por ser a única espingarda automática que passámos a ter (e levou 30 anos a substituir) cujo calibre (7,62) ter uma letalidade maior.

Ironias do destino.

 

__________________________________________

1 A Esquadra, ou Armada, do Estreito foi criada em 1520, para proteger a navegação e o comércio português nas águas do Norte de África.

2 A Marcha Verde ocorreu em 6 de Novembro de 1975 quando o Rei Hassan II enviou 350.000 civis com unidades militares camufladas e ocupou o território.

3 Sem embargo os 55 países da organização da Unidade Africana (de que Marrocos deixou de pertencer por causa disso) reconheceram a “República Árabe Saarauí Democrática” (mesmo sem existir), bem como, pelo menos, outros 44 países.

4 A “FIS”foi fundada em 20 de Fevereiro de 1989, sendo uma organização política de carácter islamista. Ganhou as eleições municipais em 1990, com 54% dos votos, sobretudo nas principais cidades argelinas. Nas eleições gerais de 1992, obtiveram 82% dos mandatos (188 em 231), na primeira volta, o que levou os militares a fazerem um golpe de estado, a fim de impedir a vitória dos islamitas. Foi declarado o estado de sítio e anulado o processo eleitoral. Tal facto originou uma sangrenta guerra civil. Em Março de 1992, a FIS foi ilegalizada. Um acordo de paz foi firmado em 1999, após um cessar – fogo ter sido declarado dois anos antes.

5 Existe uma forte hipótese inclusivé, de que se a Argélia suspender o fornecimento de gás a Espanha possa violar o Acordo Mediterrânico de 2005, que estabeleceu um regime de associação preferencial entre a Argélia e a UE.

6 A última visita de um presidente da Itália a Argel ocorreu em 6 de Novembro de 2021.

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Tenente-coronel PilAv

João José Brandão Ferreira

Sócio Efetivo da Revista Militar.

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by CMG Armando Dias Correia