Calculo que este pequeno escrito cause alguma estranheza a quem o ler, porque é um pouco contra a corrente de pensamento, convicções e posições de muitos daqueles que observam, criticam e comentam o conflito entre o Hamas e Israel. Isto também porque as simpatias e até os ódios por qualquer um dos lados extravasam a região geográfica e estão largamente espalhados pelo mundo. Porém, porque não tenho particular simpatia por qualquer dos lados, e sou crítico de ambos, penso que, com uma visão mais desapaixonada possam surgir alguns dados e ideias que nos levem a repensar aquilo que se passa naquela guerra e que tantas paixões, críticas, mortes e destruição tem causado.
Julgo que com uma análise mais “fria” podemos primeiro elencar alguns dados da situação, depois fazer algumas considerações sobre elementos e factos controversos e, por fim, arriscar algumas conclusões.
– Israelitas e palestinianos pretendem obter o mesmo espaço geográfico ao mesmo tempo, não aceitam a convivência dos dois povos num só Estado, nem mesmo a existência de dois Estados.
– Ambos indicam razões históricas e religiosas para justificar as suas pretensões, e parte significativa dos dois povos, com maior ou menor intensidade, têm habitado por longo tempo aquele espaço geográfico, apesar do crescimento da população israelita no último século.
– Os palestinianos não professam uma única religião, mas têm uma maioria de muçulmanos que, internamente ou por acções e actos externos, são radicais e extremistas.
– Os israelitas professam a religião judaica e muitos deles são também radicais e extremistas.
– O extremismo religioso que existe em ambos os lados aumenta a animosidade, as tensões, a xenofobia face ao outro povo, os conflitos e a violência entre as duas comunidades.
– Os israelitas têm uma diáspora quase universal, rica, desenvolvida, uma muito arreigada cultura milenar e têm influência política em vários países, nomeadamente nos EUA.
– Grande parte dos países europeus tem um complexo de culpa devido às perseguições de que os judeus foram vítimas durante séculos e particularmente pelo “holocausto” que sucedeu durante a II Guerra Mundial.
– Os palestinianos têm uma diáspora com pouca expressão e sucesso, recebem um forte apoio do Irão que pretende aniquilar o Estado de Israel, e uma simpatia por parte dos povos muçulmanos da área, que, no entanto, não desejam receber palestinianos nos seus territórios.
– Os israelitas recebem um declarado apoio dos EUA e têm um desenvolvido, moderno e eficaz aparelho militar, dispondo até de armas nucleares.
– O grau de desenvolvimento dos palestinianos é moderado, recebem apoio religioso de Estados muçulmanos e um sustentado apoio militar do Irão, nomeadamente com sofisticadas organizações terroristas por ele alimentadas, treinadas, e equipadas, tendo por objectivo o aniquilamento de Israel.
– Os palestinianos sabem que a sua terra foi ocupada ao longo de séculos, do Império Romano ao Otomano, dominados por países europeus e hoje por judeus apoiados pelos EUA.
– As tentativas feitas pela ONU de controlar a situação não têm tido sucesso e mesmo as resoluções do Conselho de Segurança não têm sido acatadas por Israel.
– A ideia generalizada da existência de um Estado forte e democrático no Próximo Oriente – Israel, em litígio e oprimindo uma comunidade fraca – a palestiniana, causam uma simpatia pelos palestinianos em grande parte do mundo e nas gerações mais novas.
– Existem grupos violentos em vários países que se deslocam e se juntam a protestos que surgem com vista a aumentar as tensões ou até desencadear actos violentos.
– As redes sociais, o desconhecimento das origens das notícias e uma desinformação generalizada, orquestrada e com objectivos definidos dificultam ou impedem que se conheça com alguma confiança aquilo que se está a passar, particularmente nos ambientes de tensão, nos protestos, nas falhadas tentativas de paz e nas situações operacionais.
Ainda que em 1948 tenha havido alguma colaboração entre os dois povos na luta contra os ingleses, a discórdia, animosidade, intolerância e ódio têm sido uma constante ao longo dos anos. Para essa situação contribuem as diferenças culturais, religiosas e económicas que tornam uma existência compartilhada no mesmo espaço geográfico quase impossível. Além disso, ao longo destes quase oitenta anos têm sucedido várias guerras entre os Estados muçulmanos daquela área geográfica e Israel, tendo este último país saído vencedor e inclusivamente ocupado áreas que àqueles pertenciam. Estas ocupações e a expansão dos israelitas nos colonatos aumentam obviamente as tensões dando origem, por parte dos palestinianos, a protestos, agressões, e atentados; e por parte de Israel a julgamentos, acções policiais e militares musculadas, mortos, prisões e até à neutralização de certos líderes.
As acções desenvolvidas pelos apoios que ambos os povos recebem e a incapacidade da ONU em moderar os excessos e procurar pacificar as duas comunidades têm sido ignoradas e infrutíferas. Quando se começa a vislumbrar uma possibilidade de moderação, os extremistas que existem em ambos os lados (ala radical extremista israelita e grupos terroristas que existem ou apoiam a palestina) as “boas vontades” desaparecem.
Quando alguém ou algum Estado ou nação é agredido tem o direito de se defender, é pois legítima essa defesa. Estando em causa com essa agressão a sobrevivência do agredido, o direito à legítima defesa pode conduzir à eliminação do agressor. A regra da lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”, contrariamente ao aspecto bárbaro que muita gente nela vê, dada a ideia cristã de “oferecer a outra face”, é moderadora da violência porque estabelece o limite para a resposta.
A legítima defesa dos palestinianos face à opressão dos israelitas é feita de forma pouco clara e moderada por Estados muçulmanos sunitas da área geográfica, mas principalmente pela violência contra as forças policiais e militares israelitas e atentados contra a população. Israel responde a estas acções com enorme violência contra as pessoas que entende serem responsáveis e destroem infraestruturas. Esta situação tem vindo a verificar-se ao longo dos anos sem que se vislumbre alguma solução pacífica.
O acto terrorista praticado pelo Hamas em 7 de Outubro de 2023 causou centenas de mortos, dezenas de reféns e actos de selvajaria incríveis, sendo perfeitamente legítima a defesa de Israel. Mas essa defesa tem condicionamentos. O primeiro condicionamento é que um Estado civilizado, apesar da opressão que tem praticado contra os palestinianos, não pode responder à barbárie com idêntica barbaridade, pois tornar-se-á também um Estado terrorista. A segunda condicionante, e esta decorre da ideia da Lei de Talião, é que a resposta não pode ser superior ao crime cometido. O olho vazado não dá direito a vazar os dois olhos. Esta lembrança tem interesse porque já por diversas vezes o crime cometido por um terrorista é punido com a eliminação da sua família.
Fala-se muitas vezes da desproporcionalidade da resposta mas deve também notar-se que é muito difícil estabelecer qualquer proporcionalidade. Lembramos alguns casos. É evidente que não pode haver qualquer apoio ou alheamento para a acção devastadora e trágica em vidas humanas que os israelitas têm levado a cabo na área de Gaza. Deve porém fazer notar-se alguns aspectos. O primeiro é o de que o Hamas tem igualmente lançado milhares de mísseis sobre cidades israelitas sem se preocupar pelas vítimas que pode causar e apenas não tem tido grande sucesso porque Israel tem um “escudo protector”, algo que o Hamas não tem. Em segundo lugar um grupo terrorista que se mistura e protege na população de Gaza é também ele causador das baixas civis que se registam. Se é criminoso que Israel cause baixas civis é igualmente criminoso que o Hamas não se importe com a população. Em terceiro lugar, ainda que não tenha uma base segura para o poder afirmar, creio que as baixas civis que o Hamas diz terem sido causadas na população civil é certamente muito inferior aos números que são apresentados. Quando eles difundiram que tinha havido quinhentos mortos no ataque a um hospital ao saber-se que o míssil afinal era do Hamas os mortos passaram de quinhentos para cinquenta. Este caso e o facto de não haver uma informação independente leva-me a pensar que, em vez de cerca de trinta e cinto mil mortos, talvez tenha havido um décimo, três mil e quinhentos mortos civis, aos quais se deverão somar centenas de mortos de membros do Hamas. É claro que basta uma só baixa civil para que isso seja já lamentável e criminoso, mas a inflação dos números tira toda a credibilidade à informação recebida por parte do Hamas.
– É impossível dois povos pretenderem ter dois Estados ocupando ambos o mesmo espaço geográfico, do Jordão ao Mediterrâneo.
– Porque cada um dos povos é agredido com violência pelo outro, ambos têm direito à “legítima defesa” e, porque não param as agressões, a guerra entre eles parece não ter fim.
– Quando estudamos a história universal estranhamos que tenha havido uma “Guerra dos Cem Anos”, mas este conflito, com a barbaridade das acções, o terrorismo, os abusos do poder, as mortes, as destruições, criaram ódios que poderão perdurar ao longo de várias gerações. Esta guerra poderá a vir a ser a “Guerra dos Mil Anos”.
– Estes dois povos só conviveram naquele espaço geográfico quando havia impérios que os subjugavam.
– Se a derrota definitiva de um povo é o aniquilamento da sua cultura não se vislumbra uma vitória de qualquer dos lados, o que significa a continuação da guerra.
– A ONU com as suas actuais atribuições e com um poder limitado é incapaz de fazer parar esta guerra entre Israel e os palestinianos.
– Não se vislumbra o aparecimento de um império ou de uma Organização Internacional que consiga, dominando as partes em conflito, obter a paz.
– Para obter a paz entre as duas nações seria necessário que sucedesse uma alteração significativa na política do Irão e a presença de dois “Nélson Mandela”, um em cada um dos lados.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.