Nº 2464 - Maio de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Paz Democrática, o Iraque e o Perigo de Guerra
Coronel
Luís Fernando Machado Barroso
Introdução
 
Em 06 de Novembro de 2003, no discurso de apresentação do National Endowment for Democracy, o Presidente dos EUA George W. Bush emitiu uma ambiciosa visão para a “estratégia avançada para a liberdade no Médio Oriente”. Alguns observadores atribuíram o discurso do Presidente ao desejo de redefinir a estratégia para o Iraque. De facto, a administração argumentou que retirar Saddam Hussein do poder no Iraque seria o primeiro passo na campanha de democratização do Médio Oriente.
 
Um objectivo claramente expresso no conceito estratégico norte-ameri­cano, National Security Strategy (NSS), é a promoção da democracia nas regiões onde é deficitária, como é o caso do Médio Oriente. Este objectivo parte da premissa da “paz democrática” e pretende promover valores para os quais as democracias e os mercados livres são elementos chave.
 
Porém, alguns proponentes da paz democrática argumentam que os Estados no processo de transição democrática - que ainda não consolidaram a democracia - são mais propensos à guerra.
 
É neste âmbito que pretendemos analisar a transição em curso no Iraque, forçada pela vitória militar da coligação liderada pelos EUA, tendo em conta o seu significado para os interesses norte-americanos na região e para os seus países vizinhos. Não pretendemos com este ensaio avaliar a estratégia norte-americana de democratização do Iraque.
 
O nosso objectivo é mostrar as circunstâncias que, à luz do ambiente no Médio Oriente, podem tornar o Iraque num claro exemplo de que uma transição democrática pode implicar conflitualidade na região.
 
O Iraque encontra-se rodeado de países com regimes autocráticos que podem ver num Iraque democrático, uma séria ameaça aos seus regimes. Os interesses norte-americanos na região estão focalizados na luta contra o terrorismo global, na importância geopolítica da região e na manutenção do apoio a Israel. A luta contra o terrorismo e a manutenção da influência norte-americana na região depende muito do apoio dos regimes autoritários. Por sua vez é a manutenção dos regimes autoritários e o apoio dos EUA que tem incentivado o crescente descontentamento das populações árabes contra os seus regimes e facilitado o recrutamento das organizações terroristas. Há uma clara ambiguidade que pode pôr em risco a estratégia norte-americana.
 
Diferendos étnicos, religiosos, problemas sociais e económicos, Estados multinacionais e rivalidades interestatais, entre outros factores, tornam o Médio Oriente como o paradigma da complexidade. Se a isso adicionarmos os interesses estratégicos norte-americanos na região e o modo como se relacionam com os Estados autocráticos, podemos ver no Iraque um claro exemplo de que uma transição democrática é propícia à conflitualidade.
 
 Apesar dos sucessos no Japão e Alemanha a seguir à Segunda Guerra Mundial e já nos anos 1990 na Europa de Leste e Haiti, a transição democrática no Iraque pode não ser um efeito directo da proposição da paz democrática.
 
As lógicas diádica, monádica, sistémica e interna no Iraque são muito difíceis de aplicar, deixando antever que a premissa da paz democrática terá mecanismos que a suporta mas que são difíceis de determinar e aplicar de forma generalizada. Em especial se o ambiente estratégico é complexo, como é o caso do Médio Oriente.
 
Por conseguinte, é difícil manter o entusiasmo da paz democrática, porque os revezes da transição são demasiado arriscados se não forem tidos em consideração mecanismos para amenizar os riscos.
 
 
1.  A Ideia da Paz Democrática
 
Em Julho de 1994, a Administração Clinton publicou o documento A National Security of Engagement and Enlargement, no qual articulava o objectivo de proteger, consolidar e alargar a comunidade de mercados livres e democráticos.1
 
Em 06 de Novembro de 2003, o discurso de apresentação do National Endowment for Democracy, o Presidente George W. Bush emitiu uma ambiciosa visão para a “estratégia avançada para a liberdade no Médio Oriente”. Alguns observadores atribuíram o discurso do Presidente ao desejo de redefinir a estratégia para o Iraque. De facto, a administração argumentou que retirar Saddam Hussein do poder no Iraque seria o primeiro passo na campanha de democratização do Médio Oriente.2
 
Na semana seguinte ao início da intervenção militar no Haiti, o assessor para a segurança nacional, Anthony Lake, reiterou que “promover a demo­cracia … serve os nossos interesses” porque as democracias “tendem a não abusar dos direitos dos seus cidadãos nem a ir à guerra entre elas”.3
 
A teoria da paz democrática alega que as democracias raramente entram em guerra, porque partilham as normas de “viver e deixar viver” e instituições internas do Estado que restringem o uso da força, e representa provavelmente a contribuição mais importante no debate das causas da guerra e da paz.4
 
Na sua essência, o argumento para a paz democrática é o de que “as democracias são menos propensas à violênciao que implica, numa contenda entre democracias, “a probabilidade de guerra é na realidade muito baixa.”6
 
A paz democrática parte de uma relação probabilística entre a democracia e a existência da paz. Assim, a paz democrática deve ter validade em quatro níveis diferentes: o primeiro implica que as democracias são frequentemente mais pacíficas dentro das suas fronteiras, ou seja, que fenómenos de guerras internas são pouco prováveis; o segundo, o monádico, implica que as democracias são mais pacíficas do que os outros regimes; o terceiro, diádico, implica que as democracias mantêm mais frequentemente a paz entre elas; e por último, o sistémico, ou seja, que quantas mais democracias houverem, mais pacífico será o mundo.
 
Em termos práticos a teoria da paz democrática oferece-nos uma justifi­cação intelectual para a crença de que a promoção da democracia no mundo contribui de forma significativa para a consecução do objectivo estratégico norte-americano e promoção da paz mundial.7
 
A proposição da paz democrática é talvez, hoje em dia, a tese mais amplamente aceitável no âmbito das relações internacionais. Apesar de haver uma minoria dissidente desta corrente existe o consenso de que a ausência de guerra entre Estados democráticos aparece como uma lei empírica nas relações internacionais. Apesar da ideia se reportar a Immanuel Kant (século XVIII) a sua importância académica tem tomado lugar a partir dos anos 1990.
 
Kant é invocado como justificação filosófica para a paz democrática, o qual apresenta como racional, três factores que podem promover a paz entre repúblicas8: opinião pública, espírito comercial e união pacífica.
 
A opinião pública constitui uma poderosa força contra a beligerância. Se o consentimento dos cidadãos for requerido para decidir se a guerra deve ser declarada, o seu conhecimento das calamidades acarreta de imediato a cautela de tal decisão ou apoio. O espírito comercial contribui para a paz porque as democracias são mais desenvolvidas economicamente e activas no co­mércio internacional. Por conseguinte, quanto maior for a interdependência comercial entre os países menor é a probabilidade de guerra por causa dos prejuízos que acarreta. Por último, a criação de uma união pacífica entre democracias restringe a guerra entre elas. A partilha dos valores e instituições comuns entre democracias estabelecem o fundamento político para uma liga de paz, a qual, ao longo do tempo, normas de reciprocidade e expectativas em procedimentos não violentos, regulam as relações internacionais. É a base para a paz perpétua.9
 
O primeiro argumento dos proponentes da paz democrática é o facto de que os Estados democráticos não entram em guerra entre eles, apesar de alguns académicos terem modificado esse argumento para a proposição de que “as democracias são menos propensas para entrar em guerra entre elas10.
 
Contudo, é necessário ter em atenção que os proponentes desta teoria referem que é baseada na probabilidade e não é determinística. Isto quer dizer que a guerra é improvável entre democracias mas não é impossível.11
 
A explicação para a paz democrática baseia-se fundamentalmente numa ou na combinação das seguintes proposições: as instituições democráticas colocam constrangimentos na liderança política para combater outras democracias; as normas partilhadas pelos Estados democráticos fazem ver as democracias como pacíficas e não ameaçadoras; as democracias tendem a incentivar a interdependência económica, o que reduz a probabilidade de guerra.12
 
O propósito da paz democrática encoraja a esperança de uma nova era nas relações internacionais. Para Huntington13, as democracias constituem, pela primeira vez na história, a maioria dos Estados no sistema internacional. Por conseguinte, as normas que governam as suas relações têm mais oportunidades que outrora de ser a norma dominadora das relações internacionais. As explicações normativas para a teoria da paz democrática expressam o facto de que as democracias externalizam as suas normas políticas domésticas de tolerância e compromisso com outras democracias. Os conflitos entre democracias são resolvidos através do compromisso em vez de o serem através da eliminação dos adversários. Esta generalização não escapou à atenção das lideranças políticas, em especial à norte-americana, a qual tem assumido que a democracia pode tornar-se no melhor antídoto para a guerra.
 
Porém, se os interesses das democracias estão em causa, a premissa de que aquelas mais dificilmente entram em guerra, directa ou indirectamente, pode não se verificar. Democracias liberais do século XIX conquistaram países não europeus a fim de criar zonas tampão contra outros impérios ou como forma de antecipar possíveis acções belicosas. A Grã-Bretanha conquistou o Afeganistão (1838) a fim de garantir uma zona tampão para conter a Rússia e a França invadiu a Tunísia (1881) com receio de uma eventual ocupação por parte da Itália. As guerras de pacificação nos impérios coloniais são também outro exemplo. Durante a Guerra-Fria as acções dos EUA na tentativa de conter o comunismo apoiaram um golpe de estado no Irão (1953) que destituiu Mossadeq. No Chile (1973) apoiaram o golpe contra Salvador Allende, colocando no poder Pinochet.14
 
Alguns proponentes da paz democrática argumentam que os Estados que se encontram em processo de democratização e que ainda não consolidaram a democracia, são mais propensos à guerra. Na realidade, a democratização pode ser um período tortuoso e há uma tendência evidente para afirmar que esses Estados estão mais inclinados para entrar em guerra do que Estados que não experimentaram mudanças de regime.
 
 
2.  Democratização e o perigo da Guerra
 
A teoria da paz democrática, sendo probabilística, assume como provavelmente verdade que se houver mais democracias consolidadas e estáveis, o perigo de guerra é menor e serve melhor os ideais do ocidente - característica sistémica da paz democrática.
 
Contudo, as democracias não nascem nem se transformam de um dia para o outro, passam por períodos conturbados, no qual o controlo da política externa é parcial, a relação entre os grupos políticos de massas e a elite autoritária é volátil e o processo democrático sofre revezes.
 
Dada a conotação positiva com o significado de democracia, cada país tende a clamar o seu país como um modelo democrático, levando a admitir que os outros países, em especial os seus competidores no sistema internacional, são menos democráticos ou têm regimes democráticos diferentes.15 Tal orgulho gera ressentimento, o qual, a longo prazo pode gerar violência. Em particular, a experiência, a aplicação e o debate em torno da validade da proposição da paz democrática está intimamente ligada na compatibilidade das definições e expectativas da democracia, bem como da sua cabal compreensão e da apreciação das vulnerabilidades geradas pela transição de um regime autocrático para um demo­crático.16
 
 O processo de transição democrática, ou democratização, tem várias interpretações. Para David Potter et. al., “a democratização é a transformação: de um governo menos responsável para outro mais responsável; de um sistema pouco competitivo eleitoralmente para outro mais competitivo e livre; de um sistema severamente restritivo para direitos civis para outro que melhor os proteja; de inexistentes ou poucas associações autónomas para outras mais autónomas e numerosas.”17
 
Para Linz e Stepan “Uma transição democrática está completa quando foi atingido um acordo acerca dos procedimentos para produzir um governo eleito; quando um governo assume o poder como resultado directo de voto popular livre; quando um governo de facto tem a autoridade para gerar novas políticas; e quando um poder legislativo, executivo e judicial gerado pela nova democracia não tem de partilhar os seus poderes com outros órgão de jure.”18
 
Para Mansfield e Snyder19, a transição democrática é o período que medeia entre a mudança de uma autocracia para uma anocracia20 ou democracia, ou de uma anocracia para uma democracia. O autor designa esse período temporal como “período de democratização.”21
 
Face ao objecto do nosso trabalho, devemos fazer a clara distinção entre democratização e liberalização. No âmbito não democrático, a liberalização engloba um misto de mudança social e política, como por exemplo uma diminuição da censura, libertação de presos políticos, o re-acolhimento de exilados e a tolerância à oposição política.22
 
A democratização engloba a liberalização, mas tem muito mais alcance e representa um conceito político específico. A democratização requer uma contestação aberta pelo direito de chegar ao governo, o que implica eleições livres, cujo resultado determina quem vai governar.23
 
De acordo com Larry Diamond, liberdade de expressão, de associação, de imprensa, uma justiça e legislatura independentes, aparelhos militar e policial apartidários e constitucionais, protecção de direitos civis e humanos, são factores que moldam a democracia liberal.24
 
Para Michael C. Hudson, a democratização significa qualquer reforma que melhora a liberdade individual desejada por cada cidadão. Também a diminuição da censura na imprensa, a permissão de associação, empreendimento de programas de privatização económica, podem ser classificados como liberalização.25
 
Democratização é o amplo e sistemático processo de substituir, reformar ou criar governos democráticos. O processo de democratização é separado em duas fases distintas: a transição democrática e a consolidação democrática. A transição democrática é a fase de transformação de cultura e instituições governamentais de acordo com o modelo democrático. A consolidação democrática compreende as medidas duradoiras que auxiliam a sobrevivência da democracia. A consolidação corresponde à operacionalidade constante do governo democrático.26
 
A liberalização política difere significativamente da democratização porque tem pouca relação como o aumento da capacidade da população participar directamente no governo. Em vez disso, expande o espaço de participação pública.
 
Como já apresentámos anteriormente, durante o processo de transição democrática os países são mais propensos à guerra. Os tempos mais recentes mostram dois exemplos em que o processo de democratização apresentou uma oportunidade para o nacionalismo e para a guerra. Os exemplos dos conflitos abertos Sérvia-Croácia e Arménia-Azerbeijão são exemplos de envolvimento beligerante quando iniciaram os seus processos democráticos.27
 
Então porque é que a democratização pode causar a guerra? Que mecanismos estão presentes na relação entre possibilidade de guerra e o processo de democratização?
 
Mansfield e Snyder apresentam os casos de quatro grandes potências dos séculos XIX e XX, Grã-Bretanha (semi-Victoriana), França (Napoleão III), Alemanha (Bismark e Guilherme) e Japão (Taisho), como casos em que o processo de democratização gerou entrada do país em guerra, embora a definição de democratização seja demasiado vaga. Para esses autores, as elites ameaçadas pelo colapso do regime autocrático, muitas das quais com interesses paro­quiais na guerra e império, utilizaram apelos nacionalistas como forma de mobilizarem massas em seu apoio. Nessas circunstâncias, a probabilidade de guerra aumenta devido aos interesses de grupos de elite, da eficácia da sua propaganda e incentivo aos líderes mais fracos a recorrer a estratégias prestigiantes nas relações internacionais, na tentativa de credibilizar a sua autoridade.28
 
Se bem que a democratização favorece a probabilidade desse país entrar em guerra, o reverso também se aplica. São exemplos a Alemanha Nazi e o Japão dos anos 30. De facto, a mudança de regime pode fazer ressaltar as patologias que podem incrementar a possibilidade de guerra, incluindo o impasse político, a ameaça às elites e o estabelecimento de objectivos de curto prazo.29
 
Mais adiante, Mansfield e Snyder apresentam os métodos que essas potências utilizaram para sair do impasse político criado com o processo de democratização e que geraram negligência nas suas relações externas: o logrolling, incoerência e estratégias de prestígio. O primeiro, logrolling, consiste em garantir às elites que ascenderam ao poder, a satisfação dos seus interesses. Por conseguinte, se dentro das elites existem grupos favoráveis à expansão e à guerra, então a guerra é provável. Exemplos de logrolling na Alemanha do Kaiser Guilherme são evidentes. A marinha e a indústria pesada insistiram no desenvolvimento de uma frota para afastar a Grã-Bretanha, a imposição de tarifas nos cereais que incentivaram a discórdia com os russos e a implementação do famoso Plano Schlieffen por parte da elite prussiana. O segundo, a incoerência, é o resultado de no início da transição haver um elevado número de grupos de interesses, que se traduzem muitas vezes em contradições dentro de coligações governativas. Se aplicarmos este método nas relações externas, os responsáveis empenham-se em políticas contradi­tórias que provocam adversários em todos os quadrantes. Por último, as estratégias de prestígio têm por finalidade procurar vitórias no exterior para prestígio interno.30
 
O processo de democratização pode ser caracterizado pela instabilidade devido ao aparecimento de grupos políticos com interesses conflituais, a elites ameaçadas que mobilizam massas sob o signo do nacionalismo e porque a autoridade do Estado é fraca e instável, o Estado pode tomar contornos de Estado falhado.
 
Um Estado falhado é totalmente incapaz de se manter como membro da comunidade internacional e apresenta problemas internos sérios que ameaçam a sua coerência ou desafios enormes na sua ordem política.31
 
O problema com os Estados falhados é que eles persistem como foco de instabilidade para os países vizinhos, para a estabilidade regional e paz internacional. Isto quer dizer que os problemas do Estado falhado não se limitam às suas fronteiras. Adicionalmente a estas ameaças à estabilidade e segurança, um Estado falhado ou vias de o ser, é o terreno propício para subversões internas ou externas. Um actor transnacional, ou um quasi-Estado, pode actuar de forma mais ou menos livre dentro das suas fronteiras ou próximo, para promover a sua agenda. Estas actividades podem levar à desestabilização de toda a região, e por esta razão, um assunto interno torna-se de imediato um problema regional e até mundial.
 
Um outro aspecto muito importante nos Estados falhados relaciona-se com a questão dos direitos humanos, constantemente violados nesse ambiente. O sofrimento das populações refugiadas, especialmente crianças, como aconteceu na Somália e Bósnia vem de imediato à recordação. As populações a sofrerem do caos e da anarquia de um governo em colapso, ou o autoritarismo brutal de um regime autocrático a tentar manter de forma desesperada a lei e ordem, como o foram os casos do Ruanda e do Haiti, são dignos da atenção da comunidade internacional democrática.
 
Desde o final da Guerra-Fria, os Estados falhados tornaram-se provavelmente o problema mais importante da ordem internacional.32 Os Estados falhados violam os direitos humanos, provocam desastres humanitários, provocam ondas maciças de emigração e refugiados e atacam países vizinhos. Desde o 11 de Setembro, tornou-se igualmente claro que abrigam terroristas internacionais que podem causar danos significativos nos interesses do ocidente. Os ataques de 11 de Setembro realçaram um tipo diferente de problema. O Afeganistão era tão fraco que pôde ser controlado por um agente não estatal, a Al-Qaeda, e servir de base para as suas operações terroristas.33
 
Se excluirmos o Iraque, os ataques terroristas que tiveram lugar em 2002 e 2003 em Mombaça (Quénia), em Bali (Indonésia), e em Riade (Arábia Saudita), puseram em relevo o facto da Al-Qaeda continuar a aproveitar as oportunidades concedidas por Estados com má governação.34
 
 
3.  Os EUA e a Democratização do Médio Oriente: Tensões para a Paz Democrática
 
Um dos princípios mais importantes da política externa norte-americana é o encorajamento e apoio à democratização no mundo. No centro deste argumento está o NSS. A ligação entre um mundo mais seguro e a existência de mais países com sistemas políticos democráticos está na crença de que os Estados democráticos são menos propensos para a guerra.
 
A democratização, um dos principais pilares da NSS dos EUA, alcançou importância primordial durante a administração Clinton nos anos 90 do século XX. Mais recentemente, o Presidente Bush e a sua administração também tornaram claro que a promoção da democracia e o comércio livre fazem parte dos seus interesses nacionais.
 
O objectivo norte-americano baseado na paz democrática levou a inter­venções militares e acções diplomáticas e económicas norte-americanas na era Bill Clinton na Somália, Haiti, Bósnia e Kosovo. As duas estratégias, embora de partidos diferentes, pretendem o mesmo objectivo.
 
Já o NSS emitido pela administração Bush em Setembro de 2002 re-enfatizava o empenho dos EUA no alargamento de Estados democráticos e livres no esforço de consolidação da paz e segurança no mundo. O NSS vai de encontro aos perigos dos Estados falhados e à esperança de democracia, desenvolvimento, mercados livres em qualquer parte do mundo.35
 
Quer Clinton quer Bush são aderentes à paz democrática. Contudo, existem algumas diferenças entre as duas políticas. Por um lado, a política de Clinton era baseada na doutrina idealista das relações internacionais e a de Bush, por outro lado, é baseada na realista.
 
O realismo tem sido a teoria dominante das relações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial e preconiza a perspectiva de que a luta, o conflito e a competição são atributos do sistema internacional e como tal, são inevitáveis. A abordagem realista assume que o sistema internacional é anárquico porque não há nenhuma autoridade acima do Estado capaz de regular as suas relações. Por conseguinte, os Estados devem regular as suas relações de acordo com os seus interesses e não de acordo com regras estabelecidas por uma entidade reguladora ou superior e são os próprios Estados que são os actores principais do sistema internacional. Para que o Estado se desenvolva e sobreviva deve focalizar-se na segurança como seu interesse mais importante. Sem segurança os outros objectivos do Estado não são possíveis de alcançar. A procura constante do Estado pelo poder no sistema internacional produz uma constante competição e conflitualidade.36
 
Por outro lado, Clinton, de acordo com A National Security of Engagement and Enlargement, parece ter-se baseado no idealismo, também conhecido por construtivismo, que rejeita a visão realista do sistema internacional. Para o idealista é a identidade do Estado que molda os seus interesses e a sua identidade é o resultado do empreendimento social. Por exemplo, se um Estado se vê como o “polícia global”, então deve agir como tal. O aspecto chave para um idealista é o facto de que a reacção de um Estado afecta o modo como outro se comporta.37
 
O idealismo tem algumas influências do liberalismo, uma corrente baseada na obra de Immanuel Kant, “A Paz Perpétua” (1795), para a qual a estabilidade do sistema internacional é baseada no conceito de paz democrática. As normas do sistema judicial internacional combinadas com a percepção do sucesso económico e social dos Estados liberais, ditam a não existência de conflito, especialmente entre Estados democráticos liberais.38
 
Dadas estas definições, a política externa para os realistas focaliza-se na preservação da paz através da dissuasão militar e nos acordos entre Estados para manter a balança de poder. Para o idealista, a política externa utiliza os seus instrumentos de acordo com valores altruístas, como por exemplo o empenhamento do instrumento militar para garantir liberdade e democracia aos povos.
 
A expansão da democracia na Europa, América Latina e Ásia nos últimos trinta anos trouxe a debate a procura de justificação de factores internos e externos que facilitam a reforma política. Neste contexto, o mundo Islâmico e o Médio Oriente, à excepção de Israel, podem ser encarados como uma aberração, porque os regimes que imperam no Médio Oriente são os autoritários.
 
Durante a Guerra-Fria, os EUA relacionaram-se com a maioria dos Estados árabes do Médio Oriente com o objectivo premente da contenção da expansão soviética na região. Apesar do fim da ameaça soviética, os objectivos de aceder aos recursos energéticos; de impedir que qualquer potência regional ponha em perigo os interesses norte-americanos; de conter as potências de segunda linha, Europa, China e Rússia de garantirem uma presença firme na região; da manutenção do apoio incondicional a Israel; a não proliferação, o radicalismo islâmico e a luta global contra o terrorismo sobrepuseram-se nas suas relações externas com os Estados do Médio Oriente. Foi dada pouca importância à questão da falta de democracia na região.39
 
De facto, a promoção da democracia é um aspecto a que Washington tem dado importância no Médio Oriente, forçado pelos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, assumindo que a segurança norte-americana depende da eliminação das condições que favorecem o extremismo islâmico. Washington atribui a proliferação do extremismo islâmico à persistência dos regimes autoritários no Médio Oriente, porque esses regimes não são capazes de responder às necessidades básicas dos seus cidadãos. Este facto releva os aspectos relacionados com a promoção da democracia na região para um nível crítico e fundamental.40 Dada a determinação da Administração Bush em promover a democracia na região, é necessário ter em consideração que a transição dos regimes autoritários pode não se fazer de acordo com os interesses norte-americanos.41
 
A visão norte-americana de que um Médio Oriente democrático pressupõe que as democracias emergentes continuarão a estabelecer relações privile­giadas com os EUA, pode ser o factor central na promoção da democracia na região. Porém, como os islamitas são a grande força política na região e oposição aos regimes autoritários apoiados pelos EUA, são aqueles que estão em melhores condições para tirar mais proveito da democratização. Por conseguinte, eleições vencidas por extremistas podem levar a democratização ao totalitarismo e ao anti-americanismo. A Argélia foi o exemplo paradigmático do que pode acontecer se os islamitas ganham as eleições.42
 
Porém, os EUA na sua luta global contra o terrorismo, apoia e têm tido como aliados, entre outros, o Egipto, Jordânia, Marrocos e Arábia Saudita, países que não têm em consideração as opiniões dos seus cidadãos no que respeita às suas relações com os EUA. E nesses países a credibilidade dos EUA é alarmantemente baixa.43
 
A estratégia de democratização no Médio Oriente teve duas iniciativas. A primeira, a iniciativa “US-Middle East Partnership Initiative (MEPI)”, visava promover reformas políticas, económicas, sociais, os direitos das mulheres e apoio à sociedade civil.44 O MEPI surge como a resposta ao facto da Administração Bush ter concluído, após o 11 de Setembro, que o apoio norte-americano aos regimes não democráticos do Médio Oriente contribuiu para o terrorismo e não para a desejada estabilidade.45
 
A segunda, a iniciativa “Greater Middle East Initiative (GMEI)” apresentada numa reunião dos G-8, apresentava a ideia de que o Médio Oriente é uma fonte de recrutamento para organizações terroristas e geradora de instabili­dade. Por sua vez, o G-8 apresentou a iniciativa “Broader Middle East and North Africa Initiative (BMENAI)” que realça a necessidade do estabeleci­mento de um entendimento justo, compreensivo e duradoiro para o conflito israelo-palestiniano e da sua articulação com apoio às reformas por parte do G-8.46
 
 Estes planos tiveram alguns efeitos47, em especial no Egipto e Arábia Saudita, mas aos olhos de alguns reformadores nada mudou e afirmando que os EUA não estão seriamente empenhados numa reforma genuína.48
 
Desde o fim da Guerra-Fria, os EUA têm focalizado a sua política externa na promoção da democracia. Os recursos alocados para esse objectivo, são um sinal da importância da democratização. Em 2003 atribuiu 650 milhões de dólares para apoiar eleições em vários locais do mundo, os direitos humanos, participação activa da sociedade civil, media independentes.49
 
Além da questão política, é necessário prestar atenção à complexidade inerente da região, em especial os aspectos religiosos, étnicos, sectários e tribais. Os exemplos da democratização da Europa de Leste (ex-Jugoslávia e Cáucaso) mostram o surgimento e encorajamento de nacionalismos e outros radicalismos e consequente conflitualidade.50
 
Numa previsível transição democrática na região, as actuais minorias étnico-religiosas no poder estariam à mercê das maiorias, o que poderá implicar um aumento de violência e até desabar em guerras civis.
 
No Iraque, a minoria sunita dominou durante décadas as comunidades curdas e xiita. As eleições de 2005 levaram ao poder os curdos e xiitas e há um receio lógico na comunidade sunita com os ajustes de contas. As condenações à morte de Saddam e de dois dos seus correligionários vem agravar esses receios, já justificados com os acontecimentos diários em Bagdad. Os xiitas iraquianos estão agora em condições de liderar a comunidade xiita, em especial a árabe.51
 
O ressurgimento do Iraque como centro religioso, como local de peregrinação e de pensamento xiita e de poder político pode inspirar as comuni­dades xiitas noutros governos. A população xiita na Arábia Saudita, governada pela família real, sunita, tem sido severamente discriminada. No Koweit, a família real, também sunita, governa uma maioria xiita.52
 
A questão palestiniana na Jordânia pode ser outra fonte de tensão. Dois terços dos palestinianos são de origem jordana, mas são discriminados pela família no poder, da tribo dos Hashmitas, que controla o aparelho de estado jordano. Na Jordânia existem também cerca de uma dezena de campos de refugiados palestinianos. No parlamento jordano uma facção moderada de islamitas tem representação e estão preocupados com as questões sociais internas.
 
Por um lado está a realidade dos interesses norte-americanos, por outro está o idealismo da promoção da democracia no Médio Oriente. Se a esta ambiguidade acrescentarmos a complexidade do ambiente estratégico na região e o agravamento da insegurança interna no Iraque, podemos estar perante um exemplo claro de que a lógica da paz democrática pode estar em causa.
 
 
4.  A Transição Democrática no Iraque e a Possibilidade de Guerra
 
O caso iraquiano representa o método de transição democrática através de uma imposição por derrota militar. Foi uma acção da política externa norte-americana que obrigou à mudança de regime.
 
A intervenção militar directa não é um método exclusivo. Os EUA, por exemplo, utilizaram noutros locais e datas a subversão como forma de apoiar de forma decisiva a transição de regime vigente, na perseguição dos seus interesses. De facto, uma potência hegemónica pode desempenhar um papel importante na subversão de um regime, como foram os casos do auxílio à transição democrática nas Filipinas (1987), ou à transição para um regime não democrático no Chile (1973), pelos EUA.53 Influências não determinantes da política externa podem também assumir um papel importante no apoio à transição, como foram, e são, os casos do papel da União Europeia e da OTAN perante as jovens democracias de Leste.54
 
Além da influência da política externa, outro factor que pode influenciar a mudança de regime é o fenómeno que os alemães denominam de Zeitgeist ou “espírito do tempos”55. Este factor parte do princípio da interligação do Estado numa comunidade, cuja ideologia pode determinar transições ou retrocessos na mudança de regimes. Se a tendência na região é a democracia, então é mais fácil a transição para esse regime. O contrário também pode ser válido.56
 
Porém, apesar da política externa poder e do “espírito dos tempos” terem uma influência decisiva na transição democrática, a consolidação democrática é determinada, em última instância, por factores de ordem interna.57
 
Os factores de ordem interna no Iraque, como os socioeconómicos que os académicos utilizam para avaliar a probabilidade de sucesso da democracia, são razoavelmente favoráveis para a transição. Dados de 2003 indicam que o PIB per capita, a literacia, o ratio de literacia homem/mulher e o índice de urbanização são comparáveis a outros Estados que conseguiram progressos significativos na transição da autocracia para a democracia, como foram os casos do Bangladesh, Bolívia e Quénia.58
 
A importância do sucesso da transição democrática no Iraque é funda­mental para o projecto político dos EUA na região. O derrube de Saddam e do seu regime é o passo que inspirará a democracia no Médio Oriente.59 Porém, nestes casos, é muito difícil distinguir se as forças estrangeiras no Iraque são forças de ocupação ou são forças de libertação, mesmo que as suas intenções sejam a manutenção firme do caminho democrático. Isto quer dizer que qualquer governo, enquanto as forças militares estrangeiras se mantiverem no Iraque, sofrerá sempre do problema da legitimidade.60
 
A situação do Iraque, como exemplo de transição democrática imposta por derrota militar, deve ser comparada com as situações decorrentes da Segunda Guerra Mundial, Japão e Alemanha. Estes dois países iniciaram os seus processos de transição e consolidação democrática impulsionados pela ocupação norte-americana e de outras potências do Ocidente.61
 
No Iraque, as condições iniciais na transição são substancialmente dife­rentes das do Japão e Alemanha. Estes estiveram sob regimes ditatoriais durante 12 e 15 anos respectivamente, o Iraque esteve pelo menos durante 40 anos; a Alemanha e o Japão eram religiosa e etnicamente homogéneos, o Iraque não é;62 as elites do Japão, Alemanha e EUA tinham como inimigo comum a URSS; no Iraque, como nos outros países árabes e muçulmanos, o inimigo é Israel, um aliado fundamental dos EUA na região; as fronteiras do Japão eram relativamente seguras e as da Alemanha poderiam até ser ameaçadas pela nova ordem mundial, mas as fronteiras do Iraque são permeáveis a Estados com interesses no país. Acima de tudo, uma democracia no Iraque é uma ameaça para todos os Estados vizinhos, alguns dos quais são aliados dos EUA. O que limita de certa forma o uso da força.63
 
Para além daqueles exemplos, ainda no âmbito de influências da política externa dos EUA e do ocidente na promoção da democracia, salientamos os esforços nos últimos quinze anos para estabelecer democracias a seguir a intervenções militares de grande envergadura, sugerindo que o mesmo é possível para o Iraque. Em 1996, após a assinatura dos acordos de Dayton, a OTAN e as Nações Unidas criaram um programa de reconstrução da Bósnia. Apesar da Bósnia, em 1998, ser uma semi-democracia, o Departamento de Estado dos EUA afirmou com jactância que o PNB na Bósnia quase duplicou, o desemprego estava a diminuir, os serviços básicos no país estavam a ser restabelecidos, media independentes começavam a prosperar e foram levadas a cabo eleições gerais.64
 
O modelo da Bósnia foi refinado e aplicado no Kosovo em 1999 após a cessação das hostilidades, e funcionou melhor porque foram aplicadas as lições aprendidas na Bósnia. O mesmo se pode aplicar a Timor, onde uma democracia vai dando sinais de querer desenvolver-se apesar de alguns contratempos.
 
O Panamá apresenta-se também como outro exemplo interessante do esforço norte-americano em promover a democracia. Tal como o Iraque, o Panamá, antes de 1989, nunca tinha experimentado uma verdadeira democracia. Após a invasão norte-americana em 1989, os EUA instituíram a Operation Promote Liberty para reconstruir económica e politicamente o Panamá. Apesar de alguns contratempos, a democratização vai seguindo um caminho mais ou menos firme, apesar de só terem passado cerca de quinze anos.65
 
Mas a situação do Iraque é única. O objectivo da administração Bush baseia-se no efeito catalítico que a criação de uma democracia exemplar na região terá: a presença de uma democracia na região, no coração do mundo árabe poderá compelir outros Estados a reformar-se ou a serem substituídos. A deposição de Saddam e sua substituição por uma democracia pode ser o primeiro passo para a reconstrução da região e para acabar com a fonte de recrutamento do terrorismo islâmico.66
 
Mas o problema da intervenção não se limita ao Iraque, porque a democratização irá certamente moldar o actual status quo na região. O potencial da Al-Qaeda vem principalmente da Arábia Saudita, Egipto, Marrocos e de outros árabes não iraquianos. Se o objectivo norte-americano for a eliminação do terrorismo a partir da sua fonte, só pode ser levado a cabo por via de reformas políticas noutros países. O exemplo de um Iraque democrático pode induzir a essas mudanças de forma espontânea, mas também pode não as causar. E neste caso pode levar a nova intervenção militar noutro Estado da região.67
 
Se a democratização falha, o resultado pode ser uma perigosa instabili­dade, provando que os Estados em transição democrática são mais propensos à guerra. Se um Iraque democrático pode catalizar reformas políticas, um Iraque falhado pode também ser a causa da promoção do caos na região.68
 
O actual processo de democratização no Iraque não é necessariamente fácil e pode exacerbar tensões interna e externamente. As mudanças democráticas alteram a estrutura de poder prevalecente há décadas, ameaçando as elites anteriormente estabelecidas, as quais pretendem a todo o custo proteger os seus interesses. Neste caso, podem apelar às diferenças étnicas e religiosas para mobilizar apoios e criar um clima de desordem que desencoraja qualquer mudança a favor da manutenção do status quo.69
 
Porque as eleições produzem claros vencedores e vencidos, aquelas podem tornar-se focos de conflito. Quando as oportunidades económicas e sociais se baseiam no Estado, as eleições podem levar à violência e fraude à medida que os competidores recorrem a medidas para aceder ao poder e controlar os recursos.70
 
As eleições de Dezembro de 2005 determinaram um parlamento Iraquiano onde xiitas e curdos representam dois terços. Tendo em conta que estes grupos foram perseguidos e oprimidos pelo regime sunita de Saddam Hussein, não é de excluir a possibilidade de ajustes de contas, embora não de forma institucional. Para além dos ataques às forças de segurança iraquianas e estrangeiras, os bárbaros ataques envolvendo sunitas, xiitas e curdos domina o dia-a-dia de violência no Iraque. A insegurança é total e com insegurança é muito difícil promover os direitos dos cidadãos, apelar à participação da sociedade civil e promover o desenvolvimento.
 
Apesar de Saddam ter sido um presidente autocrático e belicoso, atacando o Irão em 1980, o Koweit em 1990 e ter puxado a diplomacia dos EUA até aos limites, um Iraque em processo de transição pode não ser menos belicoso e negligente. Num futuro próximo, as elites (seculares, moderadas, de esquerda, ambas xiitas e sunitas) em competitividade pela popularidade, podem agitar o nacionalismo contra os seus vizinhos. O Iraque está localizado num ambiente complexo. Os xiitas iraquianos já manifestaram críticas aos sunitas jordanos, aos sunitas iranianos e aos curdos turcos.
 
 As relações externas do governo Iraquiano podem ser moldadas pelos apoios aos xiitas nos Estados autocráticos da região e aos curdos na Turquia. Não são de excluir apoios a essas comunidades para acções subversivas nos respectivos países. Também são prováveis as acções no âmbito da política externa no reforço ao prestígio interno e externo.
 
Recentemente, o primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, avisou que o país poderá rever as suas relações com as nações que criticaram a execução do ex-Presidente Saddam Hussein, questão que classificou como um assunto interno. Alertou que o governo iraquiano pode ter de reconsiderar as suas relações com qualquer país que não respeite a vontade do povo iraquiano. Nuri al-Maliki não se referiu a qualquer país, mas a sua acusação surge poucos dias depois do Presidente egípcio, Hosni Mubarak, ter juntado a sua voz ao coro de críticas de países árabes sunitas que lamentam as imagens do enforcamento e que descreveu como sendo “nojentas e bárbaras”. Maliki prosseguiu defendendo que a execução do tirano não foi uma decisão política como os inimigos do povo iraquiano estão a tentar mostrar. O enforcamento de Saddam gerou uma vaga de protestos entre os sunitas iraquianos, que marcharam em várias cidades em protesto contra a execução.71 É uma clara mensagem para fora e dentro do Iraque, numa tentativa de afirmar o poder real como primeiro-ministro e a afirmação da independência do poder judicial.
 
A possibilidade de uma guerra civil, fluxo de refugiados em massa e novos focos de conflitualidade inter-estatal são o pior resultado que se pode esperar para a região. Acima de tudo, se a democracia falhar, o fracasso pode ser associado ao desinteresse dos EUA pelo mundo islâmico e árabe.72
 
No caso do Iraque desabar num Estado falhado, e sem a presença das forças de coligação lideradas pelos EUA, é previsível a intervenção dos seus países vizinhos. Dada a porosidade das suas fronteiras não é de excluir, no caso do Irão, como potência que regularmente no século XX disputou com o Iraque a hegemonia no Golfo Pérsico, uma intervenção militar directa ou indirecta. No caso dos países governados pelas monarquias sunitas, também não são de excluir intervenções directas ou indirectas em apoio à minoria sunita iraquiana.
 
 
5.  Conclusões
 
O papel dos EUA no mundo, por ser a potência hegemónica, é funda­mental no equilíbrio do sistema internacional. Por conseguinte, enquanto a promoção da democracia continuar a ser um claro objectivo da estratégia norte-americana, o modo como o persegue é determinante para o sucesso. E pode não haver lugar a ambiguidades estratégicas, porque estas determinam a credibilidade do esforço. As anteriores administrações de Bill Clinton apelaram à teoria da paz democrática e aparentam ter dado forma aos processos de democratização na Europa de Leste e no Haiti. A actual administração, contudo, foi mais além na fé da ideia da paz democrática, acreditando que um pacífico, estável, próspero e democrático Médio Oriente, a partir do exemplo iraquiano, sirva os interesses norte-americanos.
 
Para além da baixa probabilidade de ocorrência de guerra entre demo­cracias, ou seja, a lógica diádica, a paz democrática parece ter alguns defeitos. Esses defeitos são tanto mais visíveis quanto mais importantes forem os interesses das democracias ou durante os períodos de transição turbulentos. O caso do Iraque dá-nos um excelente balão de ensaio para a aplicação da proposição da paz democrática.
 
Estando localizado numa região dominada pela autocracia e com tensões latentes devido á complexidade do ambiente estratégico, o Iraque deve ser entendido como um exemplo brilhante de como uma transição, neste caso imposta, pode implicar um aumento da conflitualidade interna e externa na região. E, acima de tudo, há-de servir para provar que a teoria da paz democrática não dita que um país transite de um regime autoritário para uma democracia por vontade da política externa dos EUA.
 
As elites sunitas, no governo durante décadas, são agora ameaçadas pela maioria xiita e curda perseguidas e descriminadas pelo regime de Saddam. Os regimes autoritários, de domínio sunita vêm agora a vitória dos xiitas, por intermédio de eleições democráticas, como uma série ameaça aos seus regimes. A existência de um governo democrático pode ser um catalizador para mudanças na região, desde que fique provado que a operação militar e a transição valeram a pena, ou seja, que impliquem desenvolvimento e segurança às populações de todos os quadrantes étnicos e religiosos.
 
No Iraque, os factores que podem determinar se a transição pode gerar conflitualidade são os constantes na literatura de referência. Ameaça às elites anteriormente no poder, incorporação na política do Estado dos interesses das novas elites, promoção de estratégias de prestígio e estar centralizado no turbilhão dos interesses de países com poder. Mas os ventos da história irão determinar a transição.
 
Se a paz e a segurança são na realidade consequência da democracia partilhada, então a democratização internacional deve continuar a ser o coração da estratégia norte-americana e das estratégias dos países democráticos em qualquer parte do mundo.
 
De acordo com o que expusemos, é difícil manter o entusiasmo pelo facto de que promovendo a democracia se promove a paz. Os revezes da democratização são também tão arriscados como a democratização em si. Por conseguinte a comunidade internacional necessita não tanto de uma estratégia para promoção da democracia mas sim de um processo de gestão que minimize os riscos e facilite transições suaves.
 
A longo prazo, o alargamento da comunidade democrática favorece a provável proposição da paz democrática, se bem que a curto prazo é necessário fazer muito para mitigar os perigos de uma transição violenta.
 
 
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*      Major de Infantaria. Professor de Táctica na Área de Ensino Específico do Exército no IESM.
 
_____________
 
 1 Dorff, p.17-31.
 2 Brunberg, p.33.
 3 Mansfield & Snyder, p.1.
 4 Rosato, 2003, p.585.
 5 Rosato, 2005, p.467.
 6 Idem, p467.
 7 Rosato, 2003, p.585.
 8 Nas suas análises, Kant não diferenciava republicanismo, liberalismo e populismo. Segundo Wade Huntley, Kant via o republicanismo, definido como a corrente política para o respeito pelas liberdades básicas do cidadão, como a base para a paz interestatal. Para mais pormenor ver Chan, p.107.
 9 Chan, pp.120-121.
10 Lake, p.32; Ver também Steve Chan.
11 Rosato, 2003.
12 Szayna et. al., p.148; Rosato, 2005.
13 Samuel P. Huntington.
14 Rosato, 2003, pp. 588-590.
15 Idem, p. 32.
16 Neste ponto ver Rummel.
17 Citado por Schnabel, pp. 5-6.
18 Linz & Stepan, p. 1.
19 Mansfield & Snyder, p. 4.
20 Para Mansfield & Snyder, uma anocracia é um sistema político em que instituições autocráticas e democráticas estão misturadas, ou então num sistema em que pouco poder está concentrado nas mãos de autoridades públicas.
21 “To be democratizing”, no original.
22 Linz & Stepan, p. 1.
23 Ibidem.
24 Citado por Zambelis, p. 90.
25 Citado por Zambelis, p. 90.
26 Linz & Stepan, pp. 1-6.
27 Mansfield & Snyder, p. 1.
28 Idem, pp. 11-12.
29 Idem, pp. 22-23.
30 Mansfield & Snyder, pp. 19-22.
31 Helman & Ratner, p. 89.
32 Crocker, pp. 32-45.
33 Fukuyama, p. 102.
34 Idem, pp. 104-105.
35 Parry & Moran, p.6.
36 Stolberg, p.11.
37 Idem, p.12.
38 Doyle, p.1157.
39 Zambelis, p.87.
40 Ver as referências feitas por G. Bush acerca da importância da democracia no Médio Oriente em Fevereiro de 2004, http://www.whitehouse.gov/news/releases/2004/02/20040204-4.html.
41 Zambelis, p.87; Windsor, p.48.
42 Windsor, p. 48; Zambelis, p.94.
43 Ver Arab American Institute & Zogby International, “Impressions of America 2004: How Arabs View America, How Arabs Learn about America,”http://www.aaiusa.org/PDF/Impressions_of_America04.pdf.
44 Zambelis, p. 91.
45 Craner, p3; ver também Windsor, p. 52.
46 Chris Zambelis, pp. 91-92.
47 Ver Craner, pp. 3-4.
48 Idem, Op. Cit, p.93; Ver Fukuyama, p. 103. A natureza autoritária do poder na região é vista pelas populações como o resultado do apoio dos EUA por motivos ocultos.
49 C.f. Windsor, p. 50.
50 Zambelis, Op. Cit., pp. 97-98.
51 Ver Vali Nasr, p. 27.
52 Ibidem.
53 Cf. Linz & Stepan, p. 74.
54 Ibidem; Actores internacionais podem ter um papel fundamental no encorajamento à mudança política, como está reflectido no que foi designado por Huntington, a terceira vaga de democratização na Europa Central e América Latina.
55 “Spirit of the times” no original. Significa o mesmo que “ventos da história”.
56 Linz & Stepan, pp. 74-76.
57 Idem, p. 73.
58 Barro, “Determinants of Democracy”, Journal of Political Economy, citado por Byman & Pollack, pp. 124-126.
59 Brunberg, pp. 33-34.
60 Arato, pp. 7-8.
61 Idem, p. 9.
62 O Iraque é composto principalmente de três grupos substancialmente diferentes: xiitas, curdos e sunitas, implantados em áreas substancialmente distintas no território. E quanto mais população do território do Estado for composta de sociedades pluriculturais, linguísticas e religiosas, mais difícil é a implementação da democracia; ver Linz & Stepan, pp. 29-30.
63 Idem, pp. 9-11.
64 Para mais detalhe consultar National Democratic Institute for International Affairs, Europe: Central and Eastern: Bosnia-Herzegovina, www.ndi.org/worldwide/cee/bosnia/bosnia_pf.asp (acedido em 6 Janeiro de 2007); Bureau of European and Canadian Affairs, US Department of State, “Summary of US Government Policy on Bosnia”, July 16, 1998, www.state.gov/www/regions/eur/fs_980716_bosquanda.html (acedido em acedido em 6 Janeiro de 2007).
65 C.f Byman & Pollack, p. 126.
66 Biddle, p. 23.
67 Ibidem.
68 Idem, p.24.
69 Windsor, p.48.
70 Idem, p.48.
71 “Governo Iraquiano Ameaça Críticos da Execução de Saddam Hussein”, Público, 6 de Janeiro de 2007.
72 Byman & Pollack, pp. 134-135.
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Luís Fernando Machado Barroso

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