Nº 2465/2466 - Junho/Julho de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Uma Visão Estratégica da “Arte da Guerra do Mar”
Almirante
António Manuel Fernandes da Silva Ribeiro
A “Arte da Guerra do Mar”1 foi publicada em Coimbra no ano de 1555 e revela com clareza o pioneirismo do padre Fernando Oliveira na conceptualização do emprego do poder naval ao serviço das finalidades políticas de Portugal nas relações internacionais. É composta por um prólogo e duas partes, contendo, cada uma delas, quinze capítulos, a generalidade dos quais possui um conteúdo eminentemente estratégico.
 
O tratado começa com um prólogo, onde Fernando de Oliveira, depois de justificar a razão que o levou a escrever sobre a guerra do mar, defende a importância do seu conteúdo, não só pelo facto de o comércio marítimo ser gerador de muito lucro, grandeza e poder, mas, também, pela necessidade de o país dispor de uma capacidade naval suficiente para defender, se necessário pelo uso da força, os seus interesses económicos. Também alude claramente à credibilidade e ao estatuto de poder do país, a que chama honra, decorrente da defesa eficaz dos interesses nacionais, através do emprego do poder naval.
 
«É matéria esta proveitosa e necessária, em especial para os homens desta terra que agora mais tratam pelo mar que outros, de onde adquirem muito proveito e honra, e também correm ventura de perderem tudo isso, se o não conservarem com esta guerra, com que seus contrários lho podem tirar. Dando-se a esta guerra tem ganhado os nossos portugueses muitas riquezas e prosperidade, e senhorio de terras e reinos, e tem ganhada honra em poucos tempos quanta não ganhou outra nação em muitos»2.
 
Logo de seguida, Fernando de Oliveira atribuiu ao seu tratado a primazia de abordar a guerra no mar, dizendo:
 
«Da qual nenhum autor, que eu saiba, escreveu antes de agora arte nem documentos, ou se alguém dela escreveu confesso que não veio a minha noticia sua escritura, somente de Vegécio coisa pouca»3.
 
Depois de várias considerações sobre as tarefas do sacerdote na guerra4, Fernando Oliveira refere-se, da seguinte forma, à oportunidade de sobre ela se escrever:
 
«… a guerra dos cristãos que temem a Deus não é má, antes é virtuosa, que se faz com desejo de paz sem cobiça nem crueldade, por castigo dos maus e desopressão dos bons. Pois escreverem da tal matéria, e ensinar meios por onde os bons saibam resistir aos maus, não mo estranharam os que entendem quanto isto releva nesta vida, e como não é disforme da dos céus, onde os bem aventurados tem, diz o salmista, espadas para castigar as nações das gentes pecadoras, em cujo sangue lavaram suas mãos»5.
 
Neste breve extracto do prólogo parece possível identificar, entre outros, três aspectos relevantes. O primeiro, relacionado com o objectivo da guerra, que considera ser a paz, susceptível de ser alcançada punindo os contrários, através da anulação ou redução das suas formas de coacção. O segundo, relativo à necessidade de se conhecerem os modelos de acção estratégica para resistir aos contrários. Por fim, Fernando Oliveira estabelece um paralelo entre a vida terrena e nos céus, para justificar que os justos têm o direito divino de usar a força para castigar os pecadores. Nesta justificação revela uma atitude que hoje qualificaríamos de prioritariamente estratégica, quando coloca a religião ao serviço da acção militar do Estado.
 
A primeira parte da “Arte da Guerra do Mar”, intitulada «intenção e apercebimento da guerra do mar», trata de princípios doutrinários da estratégia nacional e naval e de aspectos das estratégias genética e estrutural.
 
No primeiro capítulo da primeira parte, «que é necessário fazer guerra», é demonstrada a necessidade de organizar a defesa nacional. Fernando Oliveira começa por dizer que Platão nos relembra as leis de Creta que:
 
«mandavam governar os homens e estar apercebidos como se estivessem em continua guerra»6 e que a razão para tal preparação residia no facto de «todas as cidades e nações das gentes naturalmente têm entre si guerra e diferenças, posto que as não declarem sempre por alguns respeitos que lhes convém»7.
 
Desta forma clara e simples, explicita que cumpre ao governo dirigir a estratégia integral, que tem carácter permanente. Para além disso, ao afirmar que, entre cidades e nações pode haver guerra e diferenças, permite inferir que as relações disjuntivas entre actores do sistema político internacional, podem assumir formas e graus de intensidade diferentes. Por fim, ao referir-se à conveniência de os países não declararem as diferenças, chama a atenção, não só, para a importância do factor tempo na estratégia, mas, sobretudo, para a necessidade de estar atento às estratégias indirectas dos contrários, que custam a perceber e provocam efeitos nefastos.
 
Para fazer face às acções contrárias, Fernando Oliveira considera impor­tante estar preparado, «porque a presteza, diz Vegécio, aproveita às vezes mais que a força nas coisas da guerra. E também diz ele, os inimigos de má mente acometem aquele reino ou cidade, que sabem estar prestes para se defender»8. Desta forma, enfatiza a necessidade de os países estarem preparados para a guerra, porque, assim, dissuadem eventuais contrários.
Em seguida refere:
 
«Para adquirir paz se faz a guerra, diz Santo Agostinho (…). A boa guerra faz boa paz. E assim a paz que agora logramos guerra passada no-la ganhou, mas a paz descuidada porventura deixará guerra a seus sucessores. Não descansem os amigos da paz na que agora gozam se a querem perpetuar, porque os contrários dela se virem mansa levá-la-ão nas unhas»9.
 
Neste parágrafo Fernando Oliveira considera que a boa paz, ou seja a segurança, se alcança com a guerra, mas que, mesmo com paz, é necessário cuidar da defesa, para que não se gerem desequilíbrios que estimulem os opositores a desferir ataques.
 
Sobre os armamentos afirma que são o garante da paz e que não favorecem a guerra. Conceito notável para a época, que certamente faria inveja aos estrategas da guerra-fria. Refere-se aos armamentos dizendo:
 
«E para isso favoreçam armas, as quais não são tão contrárias da paz como parecem, antes elas defendem na paz como os cães defendem as ovelhas, posto que pareçam contrários delas. (…) para a paz ser segura, cumpre defende-la com guerra. Porque os reinos, com as artes com que se ganham, com essas se sustentam, segundo diz Salústio»10.
 
Neste extracto Fernando Oliveira começa por ilustrar o conceito de corrida aos armamentos, como forma de manter o equilíbrio necessário à paz. Em seguida, procura chamar a atenção para o facto de a defesa militar ser essencial contra os propósitos agressivos de outras potências.
 
No segundo capítulo da primeira parte, «De quem pode fazer a guerra», é definido e justificado quem tem autoridade para declarar e conduzir supe­riormente a guerra. Começa por dizer:
 
«A guerra posto que justa, não se pode fazer, senão por mandado de Rei ou Príncipe, ou pessoa encarregada da governança e defesa de algum povo sem ter outro superior, porque a estes é cometida a defesa desse povo, e a guerra por defesa dele, ou conservação de sua justiça e da fé se deve fazer»11.
 
Neste parágrafo Fernando Oliveira considera que a defesa de um povo está a cargo do rei, príncipe, ou de quem governa, e que tem como objectivo, segundo diz Sto. Agostinho, garantir a sobrevivência desse povo, a justiça e a defesa da fé, isto é, os interesses nacionais vitais a prosseguir pelo Estado. Apresenta duas razões para a defesa de um povo ser da responsabilidade do rei, príncipe ou governo. Em primeiro lugar, afirma que eles não têm superiores hierárquicos e são os protectores da comunidade. Desta forma, estabelece um firme conceito de independência (superior hierárquico) e sobe­rania (exerce autoridade num espaço definido, a comunidade). Depois, refere que só eles podem recrutar o povo e lançar os impostos necessários para suportar a guerra.
 
No terceiro capítulo da primeira parte, «Que é necessário guerra no mar», é demonstrada a necessidade de defender os interesses nacionais no mar e de dispor, para esse efeito, de uma armada pronta. Fernando Oliveira refere que o comércio marítimo é uma actividade fundamental à vitalidade da economia das nações, que sempre necessitou de ser protegida:
 
«porque o mar é muito devasso, e os homens não podem escusar de negociar por eles suas fazendas, uns mercadeando, outros pescando, e outros como lhe vêm bem, e dali trazem mantimento e proveito para a terra, portanto cumpre que nele se ponha muito recado, porque com medo ou com severo castigo, seja retraída a ousadia dos corsários que por ele soltamente roubam, e cometem crimes grandes»12.
 
Neste parágrafo estão expressas duas missões fundamentais do poder naval: a dissuasão oceânica (medo) e a protecção das rotas marítimas (severo castigo).
Um pouco mais adiante refere-se ao emprego do poder naval na protecção das zonas litorais, porque «Não somente assaltam o mar os corsários, mas se os deixam ir avante, atrevem-se a sair em terra e inquieta-la13». Para que tal não aconteça, Fernando Oliveira considera necessário que as forças navais tenham bons níveis de desempenho nas suas missões, o que se atinge com «armadas no mar que guardem as nossas costas e paragens e nos assegurem dos sobressaltos que podem vir pelo mar, que são mais súbitos que os da terra14». Já nessa época se reconhecia que as armadas devem estar sempre prontas a combater, sem necessidade e possibilidade de mobilizar, como acontece com as forças terrestres. Para fazer face às ameaças que podem vir pelo mar e que põem em perigo a segurança nacional, considera que:
 
«Portanto estejamos providos de navios armados porque quando aventarem as nossas paragens sejam fustigados, e não desejem tornar a elas»15.
 
Fernando Oliveira apresenta ainda como missões do poder naval: o apoio à política externa e às alianças; a recolha de informações estratégicas; o controlo do mar a partir de pontos fixos estrategicamente localizados, de onde, com a mobilidade que lhe é característica, pode acorrer a qualquer ponto.
 
No quarto capítulo da primeira parte, «Qual é guerra justa», é demonstrado quando é justo fazer a guerra. Fernando Oliveira considera que, para fazer a guerra, é necessário haver uma causa justa e seguir determinados compor­tamentos, caso contrário «Deus permitirá que pela guerra que injustamente fazemos a outros, nos sucedam à nação guerras de onde não cuidamos». Invoca Sto. Agostinho, quando afirma que guerra justa:
 
«é aquela que castiga as sem justiças que alguma gente fez e não quer emendar. Ou a que defende o bando dos que injustamente o querem ofender… [ou a] que castiga as ofensas de Deus contra aqueles que dele blasfemam, ou deixam sua fé, … ou impede[m] a pregação dela, e perseguem as pessoas …»16.
 
Destas razões, e em reforço do referido no segundo capitulo desta parte, é evidente que os interesses nacionais vitais de Portugal nesta época se centravam na sobrevivência do povo, na justiça e na defesa da fé. Fernando Oliveira considera, no entanto, com um espírito de grande tolerância e fraternidade para a época, que não se pode fazer guerra contra os infiéis que nunca foram cristãos17, porque querem ter paz, não tomaram terras, nem prejudicaram a cristandade. Defende que, para os converter, nada melhor do que exemplos de paz e de justiça. Neste contexto e, em seguida, efectua várias considerações sobre a escravatura, condenando-a e rebatendo os argumentos usados por aqueles que a defendem.
 
O quinto capítulo da primeira parte, «Da tenção e modo de guerra», apresenta os princípios a seguir na guerra justa. Para isso, apoia-se na doutrina da Igreja Católica e tece interessantes considerações sobre os procedimentos éticos e legais a observar na condução da guerra. Começa por dizer que não basta que a guerra seja justa. Considera que tem de ser lícita e que, para isso, os procedimentos devem ser justos e os objectivos a atingir devem ser correctos e bons. Refere, com toda a clareza, que a guerra só deve ser feita com o objectivo de repor a justiça, conservar a paz e defender os bons, castigando os maus. Salienta, também, que há «interesses, que nem por nós mesmos nem por outrem podemos fazer guerra com tal intenção18». Em seguida, afirma que, antes de iniciar a guerra, se deve negociar, dando oportunidade à diplomacia, de forma a atingir a paz por meios pacíficos. Se a guerra ocorrer: «O nobre e de grandes ânimos, não quer mais que a vitoria»19. Defende, assim, que a guerra não deve visar a destruição contrária, mas, antes, o domínio do inimigo ou a desintegração das suas forças.
 
O sexto capítulo da primeira parte, «Do ofício de Almirante», apresenta um conjunto de conceitos relativos à organização e direcção superior da Armada. Afirma que em França, na Flandres, em Inglaterra e noutras partes, o almirante superintendia «inteiramente nas coisas do mar como príncipe dele»20. Em Portugal a situação era diferente desde que, no reinado de D. Afonso V, Álvaro Vaz de Almada exerceu, durante algum tempo, o cargo de Capitão-mór do mar. Com efeito, nessa época as funções do almirante foram repartidas pelo armador-mor, pelo provedor dos armazéns e pelo vedor da fazenda21 o que, na opinião de Fernando Oliveira, só trouxe perturbação, em virtude de nada se fazer melhor e a despesa ser maior. Mostra, assim, os inconvenientes da descentralização na direcção superior das empresas marítimas, quando refere que, pelo facto de não haver «um só entendimento unido»22, se verificavam atrasos e confusões muito perigosas na guerra e no mar.
 
O sétimo capítulo da primeira parte, «Das taracenas e seus provimentos», trata dos aspectos da cadeia logística do material necessário à construção dos navios. Revela um grande entendimento dos problemas logísticos das armadas e do papel das bases no apoio às operações navais, surpreendentemente avançado para a época.
 
O capítulo oitavo da primeira parte, «Da Madeira para as naus», trata da qualidade da madeira a usar na construção dos navios.
 
O capítulo nono da primeira parte, «De quando se cortará a madeira», indica os períodos mais apropriados ao corte das árvores, por forma a que a sua duração seja a maior possível.
 
O capítulo décimo da primeira parte, «Dos armazéns e seu provimento», inicia a abordagem à organização logística das armadas, tratando do tipo de armamento necessário aos navios. Apesar de considerar a artilharia uma arma prejudicial para a humanidade, Fernando Oliveira justifica o seu uso «porque é necessário rebater nossos inimigos da feição que eles nos combatem e não lhes dar armas de vantagem nem diferentes se for possível...»23. Ainda sobre a necessidade de empregar armas adequadas ao combate com os inimigos, refere:
 
«Assim, segundo com quem pelejamos havemos de usar as armas, e ser destros nelas com eles, porque por nenhum modo nos furtem a porrada»24.
 
Este princípio de adequar as armas ao tipo de conflito e ao inimigo é de uma clareza e perenidade extraordinárias, porque nos revela uma caracte­rística fundamental do poder - a inconvertibilidade - isto é, a impossibilidade de transformar a um padrão comum as forças que o consubstanciam, permitindo, não só, a sua mensuração, mas, em especial, a sua troca ou compensação. Com efeito, de que servem na actualidade as sofisticadas e potentes armas nucleares contra o terrorismo?
 
O capítulo décimo primeiro da primeira parte, «Das victualhas», trata do abastecimento dos navios, dando o maior ênfase aos mantimentos. Na parte final, servindo-se de ensinamentos de Vegécio, Fernando Oliveira refere as ferramentas, os engenhos e as máquinas necessárias a bordo.
 
O capítulo décimo segundo da primeira parte, «Dos homens do mar», aborda o recrutamento e a instrução do pessoal de bordo. Começa por estabelecer a diferença entre o soldado e o marinheiro, apoiando-se na «de mais arte e... muito uso»25 que devem ter os marinheiros nos assuntos de bordo. Diz Fernando Oliveira que os soldados se fazem depressa, mas que os marinheiros, por necessitarem de perícia, agilidade e desembaraço, tinham de ser «criados de meninos entre as cordas e aparelhos»26, por forma que sejam «velhos no saber..., mancebos nas forças, e moços na ligeireza»27.
 
O capítulo décimo terceiro da primeira parte, «Dos capitães do mar e do seu poder», aborda com grande lucidez as questões relacionadas com o exercício do comando, nos aspectos relativos à autoridade, à competência e à função coordenadora. Fernando Oliveira refere-se, da seguinte forma, aos princípios da unidade de comando e de acção, e à hierarquia dos comandantes:
 
«… O exército dos Gregos enquanto teve uma só cabeça e rei conquistou e venceu o mundo, mas tanto que o dito rei faleceu e sucederam divisões, tudo logo se começou a desbaratar, indo de mal a pior até se acabarem uns aos outros de destruir28. Muitas vezes fazem mais os poucos concordantes que os muitos diferentes29, e para serem concordes é necessário que tenham cabeça a gente da guerra30, como fica dito e uma que mande sobre todos sem embargo que também haverá alguns outros inferiores que por partes governarão reduzidos porém todos ao arbítrio único do principal31…»32.
 
Sobre as qualidades humanas e militares, e os conhecimentos que consubstanciam a competência necessária ao exercício da autoridade conferida ao chefe militar, refere Fernando Oliveira que:
 
«(…) convêm que seja entre os outros como a cabeça entre os membros, e assim como em dignidade os precede a todos também os deve preceder em prudência, esforço e muitas qualidades.(…) Deve ser esperto no entender, acautelado no fazer, magnânimo em sofrer, animoso para acometer, destro e constante no combater. Deve ser bem instruído e habituado ao exercício das armas, e avisado nos ardis e manhas da guerra»33.
 
Analisando com cuidado o texto de todo o capítulo, verifica-se que Fernando Oliveira enumera a maioria dos parâmetros que actualmente se usam nas avaliações de mérito dos marinheiros militares. Por isso, conclui-se que, apesar dos mais de 450 anos que nos separam, durante os quais ocorreram profundas mudanças sociais e tecnológicas, os marinheiros continuam a ter de possuir um conjunto de qualidades intelectuais, de carácter, sociais e morais, militares, de chefia, técnico-profissionais e de desempenho, imutáveis nos seus princípios fundamentais.
 
O capítulo décimo quarto da primeira parte, «De como devem ser escolhidos, e assentados os soldados», analisa de forma extensa os aspectos relativos ao recrutamento, selecção e treino dos soldados. Sobre a nobreza e necessidade da profissão de soldado, que alguns criticavam e discutiam, diz:
 
«Saibam esses contrários dos soldados, que se eles têm honra e fazenda soldados lhas ganharam. (…) Foi sempre e é honesto, proveitoso e necessário no mundo o estado dos soldados, pelas dissensões que nele há, e foi sempre estimado dos príncipes, porque eles são alicerce e fortaleza do ceptro e justiça»34.
 
Desta forma Fernando Oliveira afirma que a segurança é essencial ao progresso (honra e fazenda). Em seguida, considera que as forças militares são um dos factores do poder nacional (alicerce e fortaleza do poder e da justiça), necessário para resolver polémicas (dissensões) entre contrários.
 
O capítulo décimo quinto da primeira parte, «Do exercício dos soldados», ocupa-se das armas empregues e da necessidade de manter activos os soldados.
 
A segunda parte da “Arte da Guerra do Mar”, intitulada «das frotas armadas, e das batalhas marítimas, e seus ardis», trata de assuntos de natureza náutica, das operações e da táctica.
 
O capítulo primeiro da segunda parte, «Dos navios para as armadas», aborda os aspectos relativos à organização das armadas, à classificação dos tipos de navios e ao papel das informações no planeamento da acção estratégica. Refere que compete aos capitães cuidar da preparação da frota composta por «navios conformes ao mar, e guerra em especial, quantidade, e número»35. Distingue claramente a necessidade de uma frota possuir navios com características operacionais ajustadas à missão que lhes é atribuída, e efectua várias considerações sobre a adequabilidade dos navios existentes para as diferentes missões que o país necessita. Sobre as informações salienta a necessidade de os capitães disporem de «aviso das frotas dos contrários... porque não faltem do necessário, nem excedam fazendo despesas demasiadas quando se podem escusar»36. Desta forma clara evidencia a importância das informações para se adequar os meios próprios à ameaça presente e futura.
 
O capítulo segundo da segunda parte, «Do número da gente para os navios», cuida das lotações e apresenta as regras para constituição das guarnições, em função da tonelagem e tipo de navio.
 
No capítulo terceiro da segunda parte, «Da esquipação dos mantimentos, munições e enxerceas», podem distinguir-se três partes distintas, onde Fernando Oliveira aborda o abastecimento, o armamento e o aprestamento dos navios. Ao enumerar sistematicamente um conjunto de materiais, instru­mentos e equipamentos necessários à operação do navio e à vida de bordo, Fernando Oliveira dá corpo a uma clara tentativa para definir aquilo a que hoje se chama a tabela de armamento de um navio. Este facto parece muito interessante, tanto mais que, logo a seguir, associa os materiais embarcados a responsáveis (oficiais e mestres), a paióis e funções para «que quando for necessário achem tudo prestes e desembaraçado...»37. Apresenta, assim, o que poderá ser a génese do conceito de organização dos serviços técnicos de bordo.
 
O capítulo quarto da segunda parte, «Do tempo de navegar as armadas, e mudança dos tempos», trata da meteorologia e da segurança das navegações.
 
O capítulo quinto da segunda parte, «Dos sinais das tempestades, e variação dos temporais», continua a incidir na meteorologia náutica.
 
O capítulo sexto da segunda parte, «Dos ventos e suas regiões, e nomes», apresenta as noções essenciais à compreensão, classificação e identificação dos tipos de ventos.
 
O capítulo sétimo da segunda parte, «De alguns avisos necessários para navegar», apresenta regras para condução da navegação.
 
O capítulo oitavo da segunda parte, «Das marés, correntes e aguagens do mar», explica a natureza destes fenómenos.
 
Nos capítulos quarto a oitavo desta segunda parte, Fernando Oliveira apresenta um conjunto de informações relativas ao factor de decisão estratégica meio, que considera dever ser bem entendido por quem manda, porque «em tudo há de suprir a seus tempos»38. É curioso notar que, quando trata dos aspectos náuticos, da meteorologia, das marés e das correntes, não procura, como D. João de Castro, seu contemporâneo, apresentar justificações científicas. Refere, antes, com bastante clareza, as noções essenciais à compreensão dos fenómenos, tendo em vista as operações navais.
 
O capítulo nono da segunda parte, «De como as armadas faram vela», começa por apresentar um conjunto de procedimentos de cerimonial marí­timo a observar pelas forças navais portuguesas, alguns dos quais ainda são válidos na actualidade. Ao tratar da navegação em tempo de guerra, refere que o chefe deve procurar:
 
«ter aviso de onde e como navegam os contrários… que força trazem. E assim para haver notícia dos inimigos como para se ocultar deles»39.
 
Reconhece, desta forma clara, a importância dos serviços de informações e das missões de reconhecimento, tanto para fins de exploração, isto é, para obter informações sobre o inimigo, como para fins de cobertura, ou seja, para vedar ao inimigo informações sobre as forças próprias. Em seguida, refere-se à legalidade do emprego de ardis, ciladas ou estratagemas na guerra. Justifica-os dizendo que são necessários para atingir os objectivos da guerra, que reafirma como sendo: conservar a paz; garantir a segurança e a vitória, porque só esta permite observar a justiça e a paz. Continua o seu raciocínio, apresentando uma justificação para a necessidade de se conceberem, o que hoje se chamam modelos de acção estratégica:
 
«Na arte do disputar todos os preceitos que ensinam arguir são lícitos, posto que pareçam ser importunos e que ensinam enganar, porque sem eles será essa arte manca e imperfeita e não saberemos desfazer os empecilhos daqueles que com ela nos querem convencer»40.
 
Diz que é arriscado fazer guerra sem usar cautelas, dissimulações, astúcias, manhas e ciladas, porque podem os inimigos levar a melhor e vencer. Em seguida, sintetiza um vasto conjunto de ideias, afirmando que:
 
«Na arte do disputar [estratégia] se deve tentar defender, combater e desbaratar [objectivos] os inimigos por todas as maneiras [modos], com acções [modo directo] e astúcia [modo indirecto], preparando [planos de fortalecimento] e fazendo [planos de operações] tudo o que para isso for necessário [modelos de acção estratégica]»41.
 
Desta forma singela Fernando Oliveira apresenta a sua definição de estratégia militar.
 
No capítulo décimo da segunda parte, «Das batalhas do mar/ e alguns ardis necessários nelas», é apresentado um conjunto de recomendações que os comandantes dos navios devem ter em consideração antes de iniciar os combates. Refere que se devem evitar a todo o custo as batalhas decisivas, porque nelas se joga, numa só acção, o destino das partes:
 
«Os bons capitães fazem a guerra por manha mais que por força, fazendo saltos ocultos, ou dando combates particulares/ nos quais afadigam/ cansam, e desfazem os contrários, e lhe dão em que cuidar, e fazem que não tenham lugar para fulminar contra nós o mesmo, porque em se guardar não fazem pouco quando sabem que tem contra si adversário solicito»42.
 
Defende a execução dessas acções tirando partido da surpresa, dividindo, desgastando e batendo parcelarmente as forças inimigas, retirando-lhe a iniciativa e protegendo as forças próprias. Tudo isto porque:
 
«Os reencontros particulares se bem sucedem aproveitam muito/ e se mal, não trazem tanto dano»43.
 
Em seguida, formula várias considerações sobre a guerra, concluindo que se deve esperar pelo tempo e lugar oportuno para combater. Isto é, devem ter-se em consideração os factores de decisão estratégica tempo e meio.44 Afirma, também, que nem todos os objectivos se conseguem alcançar pelo uso da força, mas sim por um correcto emprego de ardis45, que permitem alcançar a vitória. Entre vários exemplos que apresenta, refere-se à tomada da cidade de Safim46, dizendo que:
 
«As quais coisas se por força se houveram de fazer não bastavam as de Portugal, e onde faltam as forças é necessário que supra o saber, o qual vemos fazer melhores coisas com pouca gente do que faz muita força sem ele. Por saber e astúcia senhoriam os nossos poucos muitas terras e reinos de nações barbaras…»47.
 
Neste parágrafo Fernando Oliveira refere que a acção estratégica requer força, saber e astúcia. As forças englobam os meios materiais e os meios morais. O saber e a astúcia relacionam-se com a qualidade, adequação e coerência da estratégia nacional. Mais adiante, sobre o factor de decisão estratégica tempo, afirma que não se devem perder as boas ocasiões para combater e que «É tempo para dar batalha»48, quando há:
• Oportunidade;
• Vantagem;
• Mais homens;
• Melhor armamento;
• Melhor treino;
• Melhores navios para o mar;
• Melhor posição geográfica.
 
Sobre o factor de decisão estratégica meio, considera que, para navios à vela, é necessário mar aberto e profundo, ocupar barlavento e que o vento seja fresco49. Para navios a remo não se tornam necessários grandes espaços e o vento deve ser fraco.
No capítulo décimo primeiro da segunda parte, «Do lugar para pelejar», desenvolve mais as suas ideias sobre o factor de decisão estratégica meio, e afirma:
 
«No mar assim como na terra há lugares... que dão e tiram oportunidade e favor aos navios no tempo do combater»50.
 
O capítulo décimo segundo da segunda parte, «De como se perderam os navios que foram com el rei de Belez», relata um triste episódio ocorrido com uma pequena armada de 5 navios, enviada para transportar e repor nos seus antigos domínios o rei de Velez, em Marrocos, Mulei Buharon. Neste texto, Fernando Oliveira condena o comportamento das guarnições dos navios portugueses, que organizadas ao acaso e sem preparação e espírito militar, debandaram com o inimigo à vista, sem oporem grande resistência. É um capítulo que reflecte as dificuldades que havia em recrutar pessoal qualificado para as missões, e de onde ressalta a necessidade de os marinheiros, para além da prática náutica, possuírem treino militar, disciplina, coesão e espírito de corpo.
 
O capítulo décimo terceiro da segunda parte, «Das ordenanças da guerra do mar», trata da importância de manter a formatura durante o combate, por forma a garantir a concentração táctica necessária ao apoio mútuo das diferentes unidades. Em seguida, discute as vantagens de diferentes forma­turas, conforme a situação táctica. Como nesse tempo havia uma grande dificuldade em transmitir as ordens do navio-chefe aos restantes, Fernando Oliveira confere grande importância à regra de seguir e imitar a capitânia.
 
No capítulo décimo quarto da segunda parte, «Dalgumas regras gerais da guerra», são apresentadas regras para «quem se deste meu trabalho quiser aproveitar, (…) de (…) pronto possam lembrar...»51. Em primeiro lugar, refere 6 regras relativas à instrução dos militares. Em seguida, enuncia 21 regras relativas à estratégia militar:
• «Quando a nossa gente desconfiar, não acometamos batalha e se poucos desconfiarem esses não vão connosco porque os tais ou amotinarão ou desordenarão os outros;
• Poucas vezes demos batalhas públicas, nas quais tem mais parte ocasião que a valentia nem saber;
• Os sobressaltos supitos aterram os inimigos e os encontros providos não abalam;
• Constranger os inimigos por fome ou necessidade, é de menos perigo e perda que pelejar com armas;
• Quem senão provê de mantimentos, e coisas, necessárias, será vencido sem ferro;
• Mais vale a ordenança que a multidão;
• O lugar muitas vezes vale mais que a força;
• O capitão prudente sempre está apercebido, o destro não deixa perder a boa ocasião quando se lhe oferece;
• O conselho sem segredo de ventura vem a efeito;
• Quando encobrimos nossas coisas, tanto façamos por saber as dos contrários;
• Quem entende o seu e o dos contrários está perto da vitória;
• O que aproveita a nós dana os contrários, e o que aproveita para eles prejudica a nós;
• Não façamos o que fazem nossos contrários, nem vamos por onde eles vão, porque não sabemos o que cuidam, e todos os seus caminhos nos são suspeitos;
• Se entendermos seus conselhos/desfaçamos-lhos/ao menos evitando-os;
• Nem em tempo nem em lugar, nem noutra alguma coisa consintamos com eles;
• Quando quiserem não queiramos, e quando não quiserem então façamos;
• Se entenderem nossas intenções não façamos o que determinávamos;
• Tanto dissimulemos, que nos tenham por mentirosos;
• Quem diz verdade a seu inimigo, dá-lhe aviso contra si mesmo;
• Quem poupa seu inimigo, acrescenta em seu trabalho;
• Seguir o alcance desordenadamente é caminho de perder vitória.
 
Termina este capítulo apresentando 11 regras relativas a assuntos náuticos.
 
No capítulo décimo quinto da segunda parte, «Da conclusão da obra», Fernando Oliveira refere que os assuntos tratados no texto têm a maior importância, e que lhe parece, pelos factos conhecidos, que, no futuro, ainda terão mais valor. Chama a atenção para a ameaça que constitui o aumento de poder dos Turcos52. Refere que, para fazer face a essa ameaça:
 
«cumpre aperceber para eles/ e prover nossas taracenas e armazéns, e exercitar os homens nas armas, para as tais batalhas convêm ter frotas prestes, e conhecer os tempos da navegação, andar alerta, e pelejar animosa e legitimamente…»53.
 
Nesta frase Fernando Oliveira identifica os factores que julga necessário ter em conta na preparação e emprego de uma marinha militar: abastecimentos, estaleiros, armazéns, exercícios, prontidão, saber, informações, moral e legitimidade. É uma última recomendação de um homem que, revelando conhecer toda a problemática inerente às estratégias operacional, genética e estrutural necessárias para dotar o poder naval com as capacidades suficientes para a execução das suas missões, se adiantou profundamente ao seu tempo, e produziu uma obra de enorme valor, que continua a ser o único tratado português sobre estratégia naval!
 
Apesar de decorridos mais de quatro séculos e meio sobre a data da sua publicação, a “Arte da Guerra do Mar” continua a ser uma obra magistral do pensamento estratégico português, essencial para quem se interessa pela estratégia como ciência de acção. Com efeito, Fernando Oliveira, homem perspicaz, de uma erudição e coragem invulgares, ao tratar, com grande esclarecimento e numa perspectiva global e integrada, os mais diferentes aspectos inerentes à organização, edificação e emprego do poder naval, lançou, em meados do século XVI, as bases da moderna estratégia naval.
 
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*      Chefe da Divisão de Planeamento do Estado-Maior da Armada. Membro do Grupo de Estudos e Reflexão Estratégica da Marinha. Professor Auxiliar Convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas da Universidade Técnica de Lisboa. Membro Efectivo da Academia de Marinha, da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, do Centro de Estudos do Mar, da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Centro Português de Geopolítica. Sócio Efectivo e Vogal da Direcção da Revista Militar.
 
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 1 Oliveira, Fernando, A Arte da Guerra do Mar, Coimbra, 1555.
 2 Ob. cit., págs. 5 e 6.
 3 Ibid, Ibidem. Relativamente a Flávio Renato Vegécio, convirá recordar que este tratadista romano do século IV se distinguiu no tempo do imperador Teodósio I, com a publicação de uma obra original e valiosa, intitulada “Epitoma rei militares, institutiorum rei militairis libre quinque”, cuja fama era grande na época de Fernando Oliveira. Muito lida e copiada na Idade Média, a obra de Vegécio influenciou os exércitos do Ocidente, que a partir da segunda metade do século XIII adoptaram os seus conceitos.
 4 Ibid, pág. 7. Considera Fernando Oliveira que deveriam ser o apoio moral, religioso e disciplinar às tropas.
 5 Ob. cit., pág. 7. Refere claramente que o objectivo da guerra é atingir a paz e restaurar a segurança dos bons.
 6 Ob. cit., pág. 8.
 7 Ibid, Ibidem.
 8 Ibid, pág. 11.
 9 Ob. cit., pág. 12.
10 Ibid, Ibidem.
11 Ibid, pág. 15.
12 Ibid, pág. 19.
13 Ob, cit., pág. 19.
14 Ibid, Ibidem.
15 Ibid, pág. 20.
16 Ibid, Ibidem.
17 Judeus, mouros e gentios.
18 Ibid, pág. 28.
19 Ibid, Ibidem.
20 Ibid, Ibidem.
21 Ao armador-mor competia construir e armar os navios; ao provedor dos armazéns competia aprestar e abastecer os navios; ao vedor da fazenda competia disponibilizar os recursos financeiros necessários à viagem.
22 Ob. cit., pág. 30.
23 Ob. cit., pág. 41.
24 Ibid, Ibidem.
25 Ibid, pág. 47.
26 Ibid, Ibidem.
27 Ibid, Ibidem.
28 Refere-se aqui ao princípio da unidade de comando.
29 Refere-se agora ao princípio da unidade de acção.
30 Sejam comandados por militares.
31 Refere-se agora ao princípio da hierarquia.
32 Ob. cit., pág. 49 e 50. Este conceito apoia-se na obra de Justino, historiador romano do século II que escreveu a “Historiae Philippicae” em 44 livros, que contém a crónica do império da Macedónia desde a sua origem. Narra com elegância e vivacidade as campanhas de Alexandre Magno, e constituiu um dos clássicos da antiguidade.
33 Ob. cit., pág. 50.
34 Ibid, pág. 55.
35 Ibid, pág. 67.
36 Ibid, pág. 68.
37 Ob. cit., pág. 80.
38 Ibid, Ibidem.
39 Ob. cit., pág. 109.
40 Ob. cit., pág. 112.
41 Ibid, Ibidem.
42 Ob. cit., pág. 115.
43 Ob. cit., pág. 116.
44 Ibid, pág. 117.
45 Aqui são entendidos ardis como as modalidades de acção próprias da estratégia indirecta.
46 Cidade Marroquina da costa atlântica situada a Sul do Cabo Cantim, ocupada pelos portugueses entre 1508 e 1541.
47 Ob. cit., pág. 117.
48 Ob. cit., pág. 118.
49 Velocidade actualmente considerada entre 17 a 21 nós.
50 Ob. cit., pág. 121.
51 Ibid, pág. 133.
52 Haviam de ser derrotados quinze anos depois na batalha de Lepanto.
53 Ob. cit., págs. 135 e 136.
 
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2007-09-24
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia