Nº 2475 - Abril de 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Ameaça Nuclear no Continente Americano
Major PilAv
Nuno Gonçalo Caseiro Miguel
Introdução
 
Com o advento das armas nucleares, a humanidade colocou-se na posse da sua possível autodestruição. Desta forma, no início deste conturbado séc. XXI, os perigos associados à proliferação nuclear continuam a assombrar as mentes da comunidade internacional.
 
Num mundo unipolar interessa perceber, antes de mais, quais as dinâmicas regionais que caracterizam o Continente a que pertence a super potência, na área do nuclear?
 
A problemática do nuclear inicia-se no final da Segunda Guerra Mundial (2GM), quando o mundo assistiu estarrecido, a 6 de Agosto de 1945, à detonação da primeira bomba atómica na cidade de Hiroshima. Denominada ironicamente de Little Boy, esta bomba foi responsável por um cenário de destruição dantesco: causou instantaneamente a morte a mais de 100 mil pessoas e, nos anos seguintes, a mais 160 mil (devido à “chuva negra” radioactiva); provocou temperaturas na ordem dos 5 000ºC e ventos superiores a 1 600 Km/H; deixou um rasto de destruição até 2 km de distância, devastando toda a vegetação e infra-estruturas da cidade.
 
Mais de sessenta anos após esse terrível acto de guerra, verificam-se grandes transformações no contexto geopolítico da distribuição do poder, e na própria dinâmica da sociedade global.
 
Em plena era da globalização há, no entanto, um aspecto que se mantém inalterado: o carácter (cada vez mais) destrutivo das armas nucleares. Se a Little Boy tinha uma potência destrutiva da ordem das 20 mil toneladas de TNT, as bombas atómicas dos nossos dias ultrapassam facilmente em 25 vezes essa potência.
 
É neste contexto que a questão colocada assume relevância.
 
Como se perceberá, há uma certa tendência para a proliferação nuclear no Continente Americano, a que não são alheios alguns factores tais como o aumento dos níveis de insegurança internacional, o crescimento na procura dos combustíveis fósseis e a falta de seriedade com que é encarada a questão do desarmamento nuclear.
 
Para demonstrar esta convicção, este diagnóstico (parcial) do nuclear começará por fazer a contextualização do problema, através de um resumo histórico; seguidamente, identificará a realidade que caracteriza actualmente o Continente Americano; posteriormente, fará uma análise prospectiva sobre a ameaça de proliferação no Continente; por último, consignará um espaço exclusivamente dedicado aos Sistemas de Defesa Anti-Míssil (SDAM), enquanto área do nuclear que mais tem desequilibrado a balança de poderes nos últimos tempos.
 
 
O nuclear: perspectiva histórica
 
A história do nuclear começa na década de 30, do século passado, quando Leo Szilard’s, um Austro-húngaro Doutorado em Física, se dedica ao estudo da energia produzida pela reacção em cadeia resultante da fissão nuclear. Esse projecto de pesquisa, que envolveu vários investigadores, foi designado por Projecto Manhattan1.
 
As consequências das pesquisas de Leo Szilard’s e seus pares foram cruelmente reveladas ao mundo, nos fatídicos dias de 6 e 9 de Agosto de 19452.
Nascia o nuclear!
 
A primeira era nuclear
 
Dos escombros da 2GM emergiu uma nova era, em que passou a vingar um sistema bipolar de distribuição de poder, denominada por Guerra-fria.
 
De um lado estavam os EUA, enquanto super potência com responsabilidades na esfera do mundo ocidental; do outro, surgia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), enquanto super potência que começava a aumentar a esfera da influência junto das suas fronteiras, avançando e consolidando posições na Europa Central e na Europa Oriental.
 
No campo da defesa militar conjunta os EUA deram corpo, juntamente com outros onze países3, a uma poderosa aliança militar denominada Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ao assinarem o Tratado do Atlântico Norte em Washington, a 4 de Abril de 1949. Paralelamente a URSS promoveu, a 14 de Maio de 1955, uma coligação de Estados que designou como Pacto de Varsóvia4, e que representava a sua resposta à ameaça da OTAN.
 
Da lógica belicista verificada durante a Guerra-fria nasce a corrida ao armamento nuclear, que ocorreu durante o final da década de cinquenta do século passado, por parte das duas superpotências.
 
Durante a Guerra-fria, período que configurou a primeira era nuclear, as duas superpotências detinham um número elevadíssimo de armas nucleares5, suficientes para destruir várias vezes a terra.
 
No entanto, e porque se tratavam de Estados, havia alguma previsibilidade nos seus comportamentos e nunca foi utilizado qualquer tipo de armamento nuclear nos diversos conflitos que opuseram indirectamente os EUA e a URSS.
 
Desta forma, a Guerra-fria foi um período caracterizado pelas políticas de dissuasão e de contenção, praticadas pelas duas esferas de influências, e que durou 44 anos, de 1945 até 1989. “Durante a Guerra Fria, e com o advento das armas nucleares, as superpotências confiaram mais no desencorajamento pela ameaça do que na oposição pela defesa após um ataque ter ocorrido.”6
 
No entanto, “(…) a chegada ao poder de Mikhail Gorbatchov, em Março de 1985, altera profundamente as coisas.
 
Gorbatchov sabe que tem de acabar a todo o custo com a corrida armamentista. Procura tranquilizar o Ocidente multiplicando iniciativas em matéria de desarmamento. Recorrendo a espectaculares feitos como o plano de eliminação geral de todas as armas nucleares até ao fim do século XX, lançado em Janeiro de 1996.
 
Em nome da perestroika e do novoie mychlenie (novo pensamento) a URSS alterará profundamente a sua política externa, decidindo-se mesmo a encaixar alguns recuos históricos.”7
 
A segunda era nuclear
 
O final da década de oitenta ficou então marcado pela perda progressiva de influência do comunismo, pela mão de Gorbatchov, que resultou numa série de acontecimentos notáveis, entre os quais se destaca a queda do muro de Berlim a 9 de Novembro de 19898.
 
É neste quadro que termina a Guerra-fria, e que passa a vingar o sistema unipolar em que os EUA, vencedores dessa guerra, se afirmam como a principal potência mundial.
 
A tendência natural, seguida em várias partes do mundo, foi uma aproximação mais ou menos caótica aos ideais defendidos pelas democracias liberais ocidentais, que estimulou um redesenhar do espaço geopolítico europeu e mundial. Nascia a era da globalização, que marca a presente geração.
 
Com o fim da ordem internacional da Guerra-fria ampliaram-se os desafios para a humanidade, na exacta proporção em que aumentaram as ameaças à paz e segurança internacional. Durante esse período o mundo era mais seguro e mais previsível mas, simultaneamente, mais preocupante; hoje em dia vive-se no extremo oposto, ou seja, as ameaças à paz e segurança internacional, apesar de serem menos preocupantes - uma vez que já não se vive na eminência da destruição mútua total (MAD9) - são bem mais imprevisíveis, gerando níveis de insegurança muito superiores.
 
Uma das principais preocupações dos líderes mundiais prende-se agora com a disseminação dos antigos arsenais nucleares soviéticos, que já não estão sob o controlo do executivo e que são um convite ao dinheiro fácil da corrupção.
 
A grande diferença entre esta era do nuclear e a que a precedeu é a seguinte: no passado, só as duas superpotências, e alguns Estados mais evoluídos tecnologicamente, é que detinham armas nucleares; hoje em dia, tanto Estados falhados, como actores não estatais, potencialmente imprevisíveis e irresponsáveis, poderão ter acesso à arma mais destruidora que existe. Desta forma, não é possível confiar nas valências da detenção e da contenção.
 
A actualidade
 
O Tratado de Não Proliferação10 (TNP) identifica cinco países que pertencem ao chamado clube do nuclear11, respectivamente a China, os EUA, a França, o Reino Unido e a Rússia, ou seja, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
 
Contudo, há mais países que já fizeram testes com armamento nuclear12, tais como a Índia (1974), o Paquistão (1998), Israel13 (1979) e, mais recentemente, a Coreia do Norte14 (2006). Por conseguinte, é assumido que todos detêm armas nucleares exceptuando a Coreia do Norte, cujas informações sobre essa matéria ainda são inconclusivas.
 
Em condições normais, quando um país pretende implementar o nuclear alega que tem intenções de desenvolver um programa para utilização da energia nuclear com fins pacíficos15.
 
Acontece que, se por um lado os EUA e seus aliados se resignaram, com aparente benevolência, quando a Índia e o Paquistão se tornaram potências com armas nucleares, e inclusivamente apadrinharam o desenvolvimento da tecnologia nuclear para fins militares de Israel, por outro, mostram muita renitência em permitir que outros países desenvolvam tecnologia nuclear para fins pacíficos, um dos objectivos do TNP16 e uma das razões da existência da Agência Internacional de Energia Atómica (AEIA).
 
Nesta área, como noutras, parece imperar a lógica dos dois pesos e duas medidas associados à frieza da Realpolitik.
 
 
A realidade actual do Continente Americano
 
Como se deduz do que atrás ficou exposto, só há uma potência com armamento nuclear neste Continente, ou seja, os EUA.
Apesar disso, “durante os anos 70, a crise do petróleo levou muitos países a equiparem-se com instalações nucleares para produzir electricidade, receando-se que desviem esta tecnologia para fins militares (…).”17 Entre esses países encontravam-se a Argentina, o Brasil e o Chile.
 
Assim sendo, percebe-se que há outros países (para lá dos EUA) que, ao abrigo do TNP e de vários acordos internacionais, ambicionam dominar a tecnologia nuclear para fins não militares. Neste momento, os países que já utilizam esta tecnologia no Continente Americano são18: a Argentina, o Brasil, o Canadá, o Chile, os EUA, a Jamaica, e o México. A Venezuela encontra-se em fase de preparação para passar a integrar este grupo.
 
Relativamente ao armamento nuclear norte-americano, ele divide-se entre estratégico e táctico. De acordo com informações19 recolhidas referentes a dados de 2002, eram estes os quantitativos das armas nucleares dos EUA:
 
1.  Armas Estratégicas
 
  • Bombas 

 

 Arma Dta da 1ª Produção Potência (Kton) Número de cabeças
 B61-7 IHE Out-66 10 a 350 470
 B61-11 Nov-97 10 a 350 55
 B83/b83-1 Jun-83 Baixa até 1200 620
                            
         
  • Mísseis lançados por submarinos
 

 

 Arma  Data da 1ª Produção Potência (Kton) Número de cabeças
 W76/ Trident I C4 Jun-78          100  3 200
 W88/ Trident II D5     Set-88 475 400
                 
      
  • Mísseis balísticos intercontinentais

 

 Arma  Data da 1ª Produção Potência (Kton) Número de cabeças
 W62/ Minuteman III Mar-70  170615
W78/ Minuteman IIIAgo-79         335 920
 W87-o/ MX      Abr-86 300 550
                                    
                 
  • Mísseis de cruzeiro lançados por via aérea

 

 Arma  Data da 1ª Produção Potência (Kton) Número de cabeças
W80-1/ ALCM       Dez-81              5 a 150        1 400
 W80-1/ ACM      ?/90   5 a 150     400
                 
 
2.  Armas Tácticas
 

 

 Arma  Data da 1ª Produção Potência (Kton) Número de cabeças
 B61 IHE       Mar-75      0,3 a 170       1 290
 W80-0/SLCM      Dez-83       5 a 150         320
                 
 

Legenda: ACM - Advanced Cruise Missile; ALCM - Air-Launched Cruise Missile; SLCM - Sea-Launched Cruise Missile; IHE - Insensitive High Explosive.

 
 
É de notar que, quanto aos valores totais das armas estratégicas nucleares dos EUA, houve uma clara diminuição na quantidade de ogivas armazenadas, entre 1987 (Guerra-fria) e 1998 (Segunda era nuclear), nomeadamente de:
• Bombas - de 2 999 para 1 000;
• Mísseis lançados por submarinos - de 5 632 para 3 456;
• Mísseis balísticos intercontinentais - de 2 300 para 2 000;
• Mísseis de cruzeiro lançados por via aérea - de 2 754 para 800.
 
 
A ameaça de proliferação no Continente Americano
 
Segundo vários autores, há dois tipos de proliferação: a vertical e a horizontal. A primeira, diz respeito ao aumento de quantitativos de armas nucleares por parte de um Estado; a segunda tem a ver com o aumento do número de Estados que detém este tipo de armas. No âmbito deste ensaio, será dado ênfase ao problema da proliferação horizontal.
 
A AIEA acredita que há cerca de trinta países com capacidade, alguns com vontade, para desenvolver armamento nuclear num curto período de tempo.
 
Uma das razões apontadas por esta agência, como justificação para esta realidade, prende-se com a diminuição da segurança internacional característica deste início de séc. XXI.
 
Mas a razão principal, que motiva os países a aderirem ao nuclear, tem a ver com o facto dos países com armamento nuclear não demonstrarem vontade em desmantelar por completo os seus arsenais20.
 
Se o objectivo apregoado pelos mais altos responsáveis políticos dos EUA e Rússia, entre outros, é ter um mundo livre de armamento nuclear, e aproveitar apenas os benefícios energéticos facultados pelo nuclear, então os cinco países do clube nuclear21, juntamente com os outros três que também detêm este tipo de armas, devem dar o exemplo.
 
Isto implica que estes oito países (assim como a Coreia do Norte) devem fornecer informações exactas sobre o que realmente possuem a nível nuclear22 e adoptar medidas reais no sentido do desarmamento.
 
Uma característica da globalização, a chamada era da informação, tem a ver com a dificuldade em restringir o acesso à tecnologia nuclear.
 
Se ao grupo dos oito países, que detêm actualmente armamento nuclear, se juntarem outros trinta, ou mais, todos os esforços de não proliferação cairão por terra.
 
Quantos mais países dominarem a tecnologia, maior será a tendência para que outros países também a queiram dominar. Esta realidade está directa­mente relacionada com a dificuldade acrescida de evitar a fuga de informações. Por outro lado, se países pequenos conseguirem ter a bomba atómica, os seus vizinhos não terão outra alternativa que não seja seguir-lhes o exemplo. Como é natural, quanto maior o número de países com armamento nuclear, maior é a probabilidade dele poder vir a ser utilizado, e menores as hipóteses de sobrevivência da humanidade no decurso dessa utilização.
 
Por outro lado, o aumento da procura de combustíveis fósseis, nomeadamente por países como a China e a Índia, vai conduzir a uma alteração dos nossos hábitos energéticos. A diminuição progressiva das quantidades existentes na terra destes recursos naturais, em paralelo com o aumento dos seus preços no mercado global, implicará que os responsáveis políticos de países sem esses recursos se virem para a alternativa do nuclear. Parece inevitável que a energia nuclear volte a ganhar popularidade!
 
Apesar de não ser possível prever com rigor quantos Estados Americanos irão ter armas nucleares durante as próximas décadas, é natural assumir que esse número irá aumentar.
 
Neste contexto pode afirmar-se que, de acordo com informações actualmente disponíveis, e tendo em conta que as ameaças são função das possibilidades de um actor e das suas intenções, é provável que, num futuro próximo, os seguintes países queiram vir a utilizar o nuclear para fins militares:
 
1.  Argentina - porque apesar de utilizar a energia nuclear para fins pacíficos, tem receio de se atrasar nessa corrida face ao seu vizinho brasileiro;
 
2.  Brasil - uma vez que não só utiliza este tipo de energia para fins energéticos, como também já iniciou um programa de enriquecimento de Urânio. O Brasil, que já tem assistido às reuniões do G8, vem demonstrando vontade de assumir um maior protagonismo regional, e é um dos candidatos mais fortes à posição de novo membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas;
 
3.  Venezuela - que apesar de ainda não dominar esta área do conheci­mento, pretende alterar essa condição. Esta opinião é reforçada pelo facto da Venezuela ter excelentes relações com o Irão, país que provavelmente já se encontra a desenvolver a tecnologia necessária para construir armas nucleares.
 
Por último, desenquadrado propositadamente do cenário prospectivo anteriormente traçado, dedica-se uma palavra de atenção às outras potências deste Continente que já utilizam o nuclear para fins pacíficos.
 
Quanto ao Chile, Jamaica e México não há indícios que demonstrem que estes Estados pretendam, para já, vir a utilizar o nuclear para fins militares.
 
Relativamente ao Canadá, face à sua condição de país com um dos mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), com sólidas instituições democráticas e que confia na protecção nuclear facultada pelo seu vizinho Norte-americano, não parece verosímil que este país venha novamente a utilizar o nuclear para fins militares.
 
 
Sistemas de Defesa Anti-Míssil (SDAM)
 
Outra variável importante quando se fala na problemática do nuclear, diz respeito à implementação de SDAM, com capacidade para destruir mísseis balísticos que transportem ogivas nucleares. Esta é, historicamente, uma área importante a considerar quando se aborda a questão do nuclear.
 
Mais uma vez, no Continente Americano (e, neste caso, em todo o mundo), só os EUA é que falam esta linguagem.
 
Resumo histórico
 
A história dos SDAM começou em plena Guerra-fria, quando a corrida ao nuclear conhecia o seu pico. Assim sendo, a lógica destes sistemas surgiu no contexto do mundo bipolar. Contudo, em plena era da globalização, conti­nuam a ser os mesmos actores (EUA e Rússia, enquanto herdeira da URSS) os mais interessados nesta matéria.
 
No início da década de 60 do séc. XX, o Secretário da Defesa dos EUA, Robert McNamara, rejeitou um primeiro projecto de defesa anti-míssil, uma vez que ele iria pôr em causa o conceito estratégico existente da destruição mútua assegurada.
 
Os dois argumentos utilizados por McNamara, para inviabilizar a implementação desse projecto, foram os seguintes: em primeiro lugar, o facto de uma das duas potências possuir um SDAM, iria estimular a outra parte a enveredar por uma nova corrida ao armamento, para atenuar as diferenças; em segundo lugar, e numa situação de crise, a potência que não tivesse esse sistema de defesa iria provavelmente atacar em primeiro lugar. A dissuasão assente na destruição mútua preservava, de acordo com esta lógica, a estabilidade na corrida ao armamento e a estabilidade em situação de crise.
 
É neste contexto que as duas superpotências assinam, em 1972, e após o ciclo de negociações conhecido como Strategic Arms Limitation Talks (SALT I), o Tratado Anti-Mísseis Balísticos (ABM), que limitava os SDAM de ambas as partes.
 
É de salientar o facto de este Tratado estar na base de vários acordos internacionais de controlo de armamento subsequentes, nomeadamente do Tratado INF23 (Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty) e dos START I e II24 (Strategic Arms Reduction Treaty). Graças ao Tratado ABM, foi possível atingir um equilíbrio na balança de poderes, entre as duas superpotências, crucial para impedir o despontar de uma Guerra Quente.
 
O novo paradigma
 
A chegada de Ronald Reagan à presidência dos EUA, em 1981, ditou, no entanto, uma mudança de paradigma.
 
Essa transformação na área da defesa militar originou o eclodir de um ambicioso projecto de implementação de um SDAM, intitulado Strategic Defense Initiative (SDI), mais conhecido por “Guerra das Estrelas”. Muitos dos apoiantes de Reagan consideraram que essa política do Presidente, embora se tenha revelado inconsequente, conduziu ao colapso da URSS e ao fim da Guerra-fria.
 
No período que decorreu durante as duas administrações Norte-Americanas que sucederam a Ronald Reagan, ou seja, as que foram presididas por George H. W. Bush (1989-1993) e Bill Clinton (1993-2001), foram dados alguns passos no sentido de reaproximar a Rússia, enquanto legítima herdeira do legado da URSS, ao Ocidente. De facto, e apesar desses Presidentes se terem mantido fiéis à doutrina de Reagan, relativamente à importância dos SDAM, nunca comprometeram o Tratado ABM.
 
Contudo, este cenário de cooperação estratégica e de aproximação entre os EUA e a Rússia parece ter sofrido uma contrariedade, quando a actual administração Norte Americana, presidida por George W. Bush, entrou em funções, a 20 de Janeiro de 2001.
 
Com base em relatórios de intelligence que apontavam para o perigo de alguns actores estatais, como a Coreia do Norte e o Irão, poderem vir a representar uma ameaça para os EUA - na medida em que iriam ter, num curto espaço de tempo, capacidade para atacar o país com mísseis - e sob o escudo dos terríveis atentados do 11 de Setembro de 2001, que revelaram que os inimigos dos EUA eram capazes de tudo para atacar esse país, Bush entendeu elevar a doutrina Reagan dos SDAM a novos patamares.
 
Estes desenvolvimentos motivaram o anunciar da retirada Norte-Americana do Tratado ABM, a 13 de Dezembro de 2001. Bush entendeu ser uma prioridade nacional combater a vulnerabilidade do seu país face à ameaça dos mísseis balísticos e, para tal, admitiu a hipótese de abordar esse assunto de uma forma não convencional, tal como os seus inimigos certamente o fariam.
 
Características do SDAM Norte-Americano
 
Para os decisores políticos da administração Bush, é necessário garantir a protecção integral do território dos EUA contra a ameaça de eventuais lançamentos de mísseis balísticos provenientes do Nordeste da Ásia (numa primeira fase), ou do Médio Oriente (numa segunda fase), através da promoção de um SDAM que reúna valências de sistemas existentes, como o National Missile Defense (NMD) e o Theater Missile Defense (TMD).
 
Os componentes necessários para a implementação deste sistema deverão ser os seguintes:
 
• Ground Based Interceptor (GBI) - esta componente é a arma do SDAM, ou seja, trata-se da plataforma de lançamento dos mísseis inertes, e respectivos mísseis, que farão a intercepção do míssil balístico inimigo;
 
• Ground Based Radar (GBR), Upgraded Early Warning Radar (UEWR) e X-Band Radar (XBR) - a componente dos radares terrestres do SDAM é a responsável pela detecção (modo radar de search) e seguimento (modo radar de track) dos mísseis balísticos inimigos, dentro da atmosfera. O princípio de funcionamento dos radares baseia-se na exploração do espectro electromagnético: o radar emite um sinal para o espaço que, ao embater num alvo (como é o caso dos mísseis) é reflectido novamente para o radar que emitiu o sinal, permitindo desta forma a localização desse alvo. Todos os alvos têm uma assinatura radar própria, função da sua radar cross section, possibilitando desta forma a identificação do alvo captado;
 
• Defense Support Program (DSP) or Space-Based Infrared System (SBIRS) Geosynchronous and High Elliptical Earth Orbit (GEO), e SBIRS Low Earth Orbit (LEO) - Estes sistemas integram-se no princípio anterior­mente explicado, isto é, no contexto da guerra electrónica, mas fora da atmosfera. No espaço será feito o seguimento e a iluminação (modo illuminator) do míssil balístico inimigo, para que os mísseis de intercepção possam atingir o alvo;
 
• Communication Link - O sucesso do SDAM passa, obrigatoriamente, por um bom sistema de comunicações, que possibilite a troca de informações entre os diversos componentes do sistema (este conceito é normalmente designado por sistema data link);
 
• Battle Management, Command, Control and Communications (BMC3) - Este é o núcleo do SDAM, ou seja, o centro nevrálgico das operações. No centro BMC3 recolhe-se a informação disponível, por meio do sistema data link, e reenviam-se parcelas de informação recolhida por um elemento, para um outro que delas necessite. Paralelamente, é feito o processamento e análise de toda a informação recolhida. Com base neste cruzamento de dados, o processo de decisão fica simplificado, tornando-se possível dar as ordens adequadas para a gestão eficaz de todo o sistema e para o sucesso no cumprimento da missão.
 
Este sistema deverá ter a capacidade de destruição dos mísseis durante a primeira e a segunda fase do lançamento, ou seja, durante a fase inicial de propulsão (boost) e a fase intermédia de voo (mid-course). Apesar disso, a preferência será dada à intercepção do míssil na sua fase inicial do lança­mento, por várias razões: é mais fácil detectar a ameaça por parte dos radares de search, de fazer o guiamento por parte dos radares de track e de conduzir à intercepção por parte dos illuminators; o interceptor destrói a totalidade do míssil, incluindo engodos (decoys), sub munições e ogivas; e é possível defender uma enorme variedade de potenciais alvos.
 
Para tal, os EUA necessitarão de, no mínimo, quatro diferentes infra-estruturas: duas dessas infra-estruturas deverão ser implementadas internamente, nos Estados do Alasca e do Maine; as outras duas deverão ser instaladas fora dos EUA, concretamente na Ásia e na Europa.
 
Acontece que, aparentemente, e tal como McNamara temia, as iniciativas deste tipo só servem para destabilizar ainda mais o frágil equilíbrio existente entra os EUA, a Rússia e, hoje em dia, o resto do mundo. Ao tornar obsoletos os mísseis intercontinentais Russos, arrasando o conceito estratégico de destruição mútua assegurada, os SDAM geram novas dinâmicas de corrida ao armamento e de proliferação global do nuclear.
 
 
Conclusão
 
Num futuro próximo, as armas nucleares vão continuar a ser o principal motor de destruição possuído pelos seres humanos.
 
Assim, é extraordinariamente importante continuar os esforços diplomá­ticos, por parte de toda a comunidade internacional em conjunto, para evitar a proliferação nuclear. Se, por um lado, a proliferação vertical não parece, para já, constituir um motivo de preocupação, o mesmo já não se pode dizer quanto à proliferação horizontal. É imperioso impedir que o clube do nuclear aumente!
 
A humanidade não está certamente disposta a assistir às terríveis consequências que as Little Boy dos tempos modernos poderiam causar.
 
Em plena era da globalização, segunda era do nuclear, é essencial manter um esforço contínuo de monitorização das intenções de determinados actores. Tem de se promover uma fiscalização cada vez mais apertada e atenta, do único organismo com competências internacionais legítimas na matéria do nuclear, ou seja, a AIEA. É crucial promover uma rede de Intelligence eficaz, para se poder aspirar a viver num mundo que não esteja à beira do abismo. Há que saber antes de actuar!
 
E perante a tentativa de violação por parte de um Estado, ou de um actor não estatal, das normas e do direito internacional, a comunidade internacional deverá agir com firmeza. Se é certo que o uso do nuclear para fins pacíficos é normalmente aceite25 e até promovido pela AIEA, o mesmo não se passa com o uso do nuclear para fins militares. E claro que, depois de estar dado o primeiro passo, torna-se mais fácil dar o segundo.
 
Por outro lado, e de forma a persuadir os outros Estados, deve-se reiniciar um esforço real para o desarmamento nuclear. De que outro modo se poderá impedir os Estados de procurem este armamento, se só para uma minoria é que é legítima a sua detenção?
 
Neste ensaio deu-se uma panorâmica histórica geral sobre o nuclear, enfatizando a realidade actual do Continente Americano, e fazendo uma análise prospectiva da ameaça da proliferação horizontal nesse Continente. Por último, fez-se uma abordagem a um dos temas na área do nuclear que mais celeuma e divergências tem levantado na comunidade internacional, ou seja, a implementação de SDAM.
 
É convicção do autor deste ensaio que, para minorar a corrida armamentista e atenuar os conflitos existentes nesta matéria, não há pois outra solução que não seja o desarmamento total.
 
 
Bibliografia
 
ENSAIOS
BAYLIS, John, & SMITH, Mark, “The Control of Weapons of Mass destruction” in AAVV, Strategy in the contemporary world, New York, Oxford University Press, 2002 (Second Edition, 2007), Edited by John Baylis et al., pp. 228-252.
HADLEY, Stephen, “A Call to Deploy” in The Washington Quarterly, Washington, The Center for Strategic and International Studies and the Massachusetts Institute of Technology, Summer 2000, pp. 95-108.
LINDSAY, James, & O’Hanlon, Michael, “Missile Defence after the ABM Treaty” in The Washington Quarterly, Washington, The Center for Strategic and International Studies and the Massachusetts Institute of Technology, Summer 2002, pp. 163-176.
NACHT, Michael, “The Politics: How Did We Get There?” in The Washington Quarterly, Washington, The Center for Strategic and International Studies and the Massachusetts Institute of Technology, Summer 2000, pp. 87-94.
SLOCOMBE, Walter, “The Administration’s Approach” in The Washington Quarterly, Washington, The Center for Strategic and International Studies and the Massachusetts Institute of Technology, Summer 2000, pp. 79-85.
WALTON, C. Dale, & GRAY, Colin S., “The Second Nuclear Age: Nuclear Weapons in the Twenty-first Century” in AAVV, Strategy in the contemporary world, New York, Oxford University Press, 2002 (Second Edition, 2007), Edited by John Baylis et al., pp. 209-227.
 
LIVROS
BONIFACE, Pascal, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003.
NYE JR., Joseph, Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Tradução portuguesa de Tiago Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002.
PEREIRA, Carlos Santos, Os Novos Muros da Europa, Lisboa, Edições Cotovia, 2001.
 
INTERNET
http://www.nrdc.org/nuclear (acedido a 18 de Fevereiro de 2008)
http://www.twq.com/info/archives.cfm#w-a (acedido a 18 de Fevereiro de 2008)
http://www.nuclearfiles.org/ (acedido a 19 de Fevereiro de 2008)
http://www.iaea.org/ (acedido a 19 de Fevereiro de 2008)
http://www.questia.com/Index.jsp (acedido a 19 de Fevereiro de 2008)
http://www.carnegieendowment.org/ (acedido a 19 de Fevereiro de 2008)
http://www.basicint.org/ (acedido a 20 de Fevereiro de 2008)
http://www.acronym.org.uk (acedido a 20 de Fevereiro de 2008)
http://www.world-nuclear.org/info/inf61.htm (acedido a 21 de Fevereiro de 2008)
 
____________
 
*      Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais: Segurança e Defesa, na Universidade Católica Portuguesa. Actualmente colocado na BA Nº 6.
 
____________
 
 1 Este projecto foi promovido pelos Estados Unidos da América (EUA), em conjunto com o Canadá e a Grã-Bretanha.
 2 Em que as cidades Japonesas de Hiroxima e Nagasáqui foram arrasadas.
 3 Os doze Estados fundadores da OTAN foram a Bélgica, o Canadá, a Dinamarca, os EUA, a França, a Holanda, a Islândia, a Itália, o Luxemburgo, a Noruega, Portugal e o Reino Unido.
 4 Inicialmente formado pela Albânia, a Bulgária, a Checoslováquia, a Hungria, a Polónia, a República Democrática Alemã, a Roménia, e, naturalmente, a URSS.
 5 Então, tal como agora, a quantidade de ogivas nucleares detidas por cada uma dessas potências ultrapassava em muito a soma de todas as ogivas nucleares dos outros Estados nucleares.
 6 Joseph Nye Jr., Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Trad. portuguesa de Tiago Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 136.
 7 Carlos Santos Pereira, Os Novos Muros da Europa, Lisboa, Edições Cotovia, 2001, p. 55.
 8 Seguido da reunificação das duas Alemanhas a 3 de Outubro de 1990, da dissolução do Pacto de Varsóvia a 25 de Fevereiro de 1991 e que culmina com a dissolução da União Soviética em Dezembro desse ano.
 9 MAD - Mutual Assured Destruction.
10 Que entrou em vigor em 1970 e tem por objectivos prevenir a proliferação de armas nucleares, promover o uso pacífico da energia nuclear e atingir o desmantelamento total dos arsenais militares nucleares.
11 Grupo de países que reconhecidamente detêm armas nucleares, ao abrigo do TNP.
12 Exclui-se deste registo a África do Sul e o Canadá que, apesar de terem conduzido com sucesso testes com armamento nuclear, abandonaram os respectivos projectos.
13 Israel recusa-se a dar qualquer tipo de informação à comunidade internacional sobre esta matéria.
14 Apesar desse teste, ainda não é assumido que a Coreia do Norte tenha armas nucleares, contrariamente ao que acontece com a Índia, o Paquistão e Israel.
15 Há vários países que utilizam o nuclear apenas para fins pacíficos, pelo que não têm armas nucleares.
16 Acrescente-se que a Índia, o Paquistão e Israel nunca ratificaram o TNP, alegando que este tratado só servia os interesses das potências que tinham armas nucleares em detrimento das que não tinham e que nas suas bases não existia nenhuma justificação ética credível para a obediência a essa cláusula.
17 Pascal Boniface, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003, p. 44.
18 Fonte, http://www.world-nuclear.org/info/inf61.htm
19 Fonte, http://www.nrdc.org/nuclear
20 Apesar dos quantitativos de armas nucleares terem diminuído bastante tanto nos EUA, como na Rússia, desde a Guerra-fria até à actualidade.
21 Sobretudo os EUA e a Rússia.
22 Algo que sobretudo a Índia, Israel e Paquistão dificilmente farão.
23 Que visou banir os mísseis nucleares de curto e médio alcance.
24 De redução das ogivas nucleares.
25 Mas sempre com reservas.
Gerar artigo em pdf
2008-09-21
423-0
5288
8
REVISTA MILITAR @ 2024
by CMG Armando Dias Correia