Nº 2484 - Janeiro de 2009
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Guerra Helenística como História Social: A formação da tradição militar a partir das composições étnicas dos exércitos
Prof. Doutor
Henrique Modanez de Sant´Anna
A Construção da História Social do Período Helenístico, partindo de M. Rostovtzeff
 
Primeiramente, como reação à separação de tópicos relacionados na história helenística (a história política e militar e a história social), inicio o artigo com uma breve análise, adequada ao tamanho do texto em questão, da transformação ocorrida nos debates historiográficos durante dois momentos decisivos no estudo do helenismo (o pré-guerra e o pós-guerra, quando o conflito armado passa a ser visto como parte integrante das sociedades antigas e de suas instituições).
 
O ponto de partida para tal análise, seguindo o que foi proposto por M. Austin (1986: 450), é a monumental obra de M. Rostovtzeff, The Social and Economic History of the Hellenistic World, dada a perceptível ligação com Droysen, o primeiro a usar “helenismo” no sentido moderno e a encaminhar reflexões acerca da história da historiografia como campo teórico de inves­tigação. (BLANKE, 2006) Rostovtzeff foi tão facilmente criticado por historiadores posteriores e definitivamente abandonado sem a devida cautela pela geração de especialistas que abominaram sua ligação com o helenismo de Droysen (embora o último tenha seu valor reconhecido) e, consequentemente, com a proposta de uma sociedade helenística unificada por práticas comuns, a exemplo das “monarquias racionais”.
 
Entretanto, a contribuição de Rostovtzeff para a construção de uma história social do período helenístico é inegável, principalmente com relação à ênfase dada à economia global dos reinos helenísticos, e, especificamente no primeiro volume, às reformas dos sistemas sociais e econômicos do Egito ptolomaico. A historiografia russa em geral esteve fortemente marcada pela ideologia até meados de 1990, sem grande acesso a bibliografia produzida no ocidente e, por conta disso, distante dos debates realizados nos principais centros de pesquisa sobre o mundo clássico. Atualmente, existem alguns poucos estudos da colonização do Mar Negro (Vinogradov, Saprykin e Tokhtatschev)1 e, embora possa ser argumentado que Rostovtzeff tenha trabalhado como professor na Universidade de São Petersburgo, a maior parte de sua vida se passou nos Estados Unidos, como pesquisador respeitado na Universidade de Yale (desde 1925).
 
A compreensão de Rostovtzeff acerca das monarquias helenísticas em termos impessoais, pautados numa racionalidade ameaçada apenas pela guerra, embora pareça contrariar o aspecto pessoal dos reinados2, identifica-se com a maioria dos estudos modernos do mundo helenístico, como os escritos de Droysen nas décadas de 1830 e 1840.
 
O grande problema em entender as monarquias helenísticas a partir de sua racionalidade introjetada com base no cenário europeu moderno, além de contrariar anacronicamente as informações extraídas das fontes, é a incoerência com o fato de que no pensamento grego o “poder monárquico estava associado às grandes personalidades e aos grandes feitos” (AUSTIN, 1986: 457), atingidos somente por campanhas militares de proporções conside­ráveis. O exemplo mais claro talvez seja a discussão de Pirro com o filósofo Kineas, que ilustra, conforme sustenta A. Chaniotis (2005: 58), tanto a relevância da guerra na ideologia de um rei helenístico quanto seu impulso imperialista3.
 
De fato é com Droysen, como dito anteriormente, que temos a estruturação do termo helenismo no sentido historiográfico moderno, tornando impossível o entendimento do período situado entre a morte de Alexandre (323) e a batalha do Ácio (31 a.C.) a partir da idéia de decadência da “civilização grega”. Entretanto, diferentemente de Rostovtzeff, em Droysen existem dois signi­ficados que se atrelam nessa definição e que podem ser vistos como o conflito de sua tradição hegeliana com a organização da autonomia da pesquisa histórica. (CALDAS, SANT’ANNA, 2008)
 
A apresentação de Alexandre como figura que liga o paganismo ao cristianismo coloca Droysen na delicada posição entre gregos e judeus. Conforme explica Momigliano, seu esforço em evitar as heranças judaicas do cristia­nismo fez com que ele se aproximasse cada vez mais dos gregos e, portanto, pensasse Alexandre - não todos os macedônios - como responsável por conduzir a história ao seu devir. Embora Rostovtzeff estivesse claramente distante dos conflitos vivenciados por Droysen com relação à tradição hegeliana e à fundamentação de uma ciência social histórica, uma característica permaneceu latente: a percepção do período helenístico a partir de sua innovative distinctiveness (AUSTIN, 1986: 452).
 
Além disso, Rostovtzeff parece não ter avaliado as conseqüências da concepção de guerra que ele próprio forjou. Noutras palavras, a guerra foi vista como elemento irracional, externo à lógica social helenística, algo que atrofiava o desenvolvimento econômico, ainda que tenha sido definida como “um método de resoluções políticas, mas sobretudo de enriquecimento pela conquista” (ROSTOVTZEFF, 1964: 195).
 
Os historiadores que sucederam Rostovtzeff rejeitaram, em primeiro plano, a artificialidade da unidade do mundo helenístico, salientando as particula­ridades de cada momento e monarquia (selêucida, egípcia, ou ainda as “monarquias menores”, como Pérgamo, Galátia e Bitínia), assim como os precedentes clássicos dessa história. Em segundo plano, a guerra passou a ser encarada como um dos traços mais marcantes da cultura grega tardia, tendo a ênfase sido deslocada para as questões militares técnicas e que permitiam a explicação da guerra como algo integrante do período. Não foi sem razão que P. Lévêque entendeu, em 1968, a guerra grega como fenômeno social primordial, mais ainda na época helenística do que no período clássico.
 
Esse seria, então, o momento “pós-guerra” da historiografia concernente ao período helenístico, ou seja, aquele que, diferentemente do anterior, primou pela inserção dos conflitos armados no rol dos temas privilegiados de investigação do mundo helenístico. Exatamente daqui o mapeamento da tradição militar helenística será insinuado, tendo sua ênfase na multi-etnização dos exércitos gregos como predecessor das reformas militares que deram os traços principais dos exércitos helenísticos, da morte de Alexandre (323) a Pirro, rei do Epiro (272 a.C.).
 
 
A Tradição Militar Helenística e as Composições Étnicas dos Exércitos
 
Em uma de suas passagens bastante conhecidas, da qual podemos destacar o trecho “ninguém pereceu em batalha por um coice de cavalo”, Xenofonte (Helênica, II, 2,18-19) ilustra o enraizamento cívico da função militar entre os gregos antigos, quando constrói a imagem do hoplita frente ao arqueiro e cavaleiro persas, tema muito recorrente para aqueles que lidam com as relações entre a masculinidade e a guerra. No entanto, Xenofonte, na condição de militar que comandou a expedição dos 10 000 mercenários em fuga após a tentativa fracassada de usurpação de Ciro, irmão mais novo do rei persa, situa-se também, e talvez mais justamente, no início do processo de multi-etnização dos exércitos gregos, esquematizado basicamente pela introdução da cavalaria e das tropas levemente armadas. O exemplo mais claro disso é sua obra Hiparco, sobre os deveres e funções do comandante de cavalaria, algo que dificilmente seria produzido cerca de 80 anos antes, momento de inquestionável superioridade tática e social (de acordo com os padrões de póleis como Esparta, por exemplo) das falanges de soldados-cidadãos. Tal afirmação não pode, devo ressaltar, excluir a existência de forças montadas no universo políada.
 
A falange de hoplitas não representou, como mostrou Adcock (1957: 15), toda a história da guerra grega durante o período clássico. Além do fato de os atenienses terem um destacamento de cavalaria composto por cidadãos, podemos acrescentar ainda o caso registrado na Helênica de Xenofonte (III-4-15), mesmo que ele esteja situado entre os sécs.V e IV a.C., quando os espartanos tiveram que realizar incursões na Ásia Menor. Seu comandante, o rei, foi as duras penas recrutar tropas montadas que auxiliassem seu exército no enfrentamento da cavalaria persa e assegurassem a marcha em terreno aberto.
 
Essa primeira fase da guerra grega, referente ao contexto de Xenofonte, corresponde ao momento no qual minha pesquisa inicia, especificamente no que respeita à formação da tradição militar helenística. Noutras palavras, a guerra helenística, de acordo com o percurso explicativo adotado por John Warry (2006), no seu belíssimo e profissionalmente elaborado livro introdutório sobre a guerra no mundo clássico, deve ser explicada a partir das transfor­mações decisivas e que foram engendradas ao longo de significativas - embora temporalmente curtas - revoluções militares.
 
O caso mais claro dessa transição é, sem dúvida, a batalha de Leuctra, situada entre o surgimento do peltasta (um dos elementos típicos da guerra no início do séc.IV a.C.) e a reforma militar de Filipe, elaborada a partir de princípios já disponíveis em Leuctra. O estudo dos peltastas a partir de seu papel nas inovações militares do séc.IV é relevante na medida em que tem sido amplamente defendido que a reforma de Ifícrates, cuja marca principal é a atribuição de um escudo menor e arredondado () e uma longa lança ao peltasta, inspirou em grande parte a reforma da falange macedônica. Por outro lado, como desenvolver uma reconstrução satisfatória dessas relações diante do simples fato de os gregos empregarem o termo, como nota John Lendon, para designar não apenas a infantaria leve que porta a pelte, mas também toda a infantaria levemente armada (com pelte ou sem ela), além de, posteriormente, qualquer soldado armado com um escudo arredondado menor que a aspis () do hoplita?
 
A escolha do surgimento do peltasta como etapa precedente à batalha de Leuctra segue, então, um caráter mais figurativo (dizendo respeito ao cenário de profusão de tropas com habilidades táticas distintas daquelas típicas dos hoplitas) do que propriamente centrado numa análise da guerra no início do séc. IV a partir do peltasta.
 
Portanto, penso ser interessante situar a batalha de Leuctra após a introdução da cavalaria e das tropas levemente armadas, justamente porque o que indicou seu caráter inovador não foram as tropas empregadas, anteriores à destruição da falange espartana por Epaminondas, mas a forma como foram empregadas.
 
Talvez o destacamento tebano mais importante na batalha de Leuctra tenha sido, aliás, o Bando/Batalhão Sagrado, um corpo de cidadãos criado por Gorgidas e treinado por Pelópidas. Interessante notar a convivência de valores tipicamente clássicos e posteriores à Guerra do Peloponeso, como, por exemplo, os valores militares, presentes tanto na formação de corpos de elite citadinos como em destacamentos mercenários, ocupados com a defesa do que lhes era incumbido por acordo profissional (deve ser lembrado que os mercenários eram tidos como apolíticos, já que representavam o oposto do soldado-cidadão). Um caso bastante interessante, ainda com relação ao papel que desempenhou o Bando Sagrado na batalha de Leuctra, é a crítica feita por Xenofonte com relação aos valores que regiam a organização do corpo de elite tebano, qual seja, a disposição dos soldados a partir de pares amorosos. Contrariando a idéia de que um parceiro encontraria no outro a inspiração necessária para lutar arduamente e evitar sua própria desgraça no campo de batalha, Xenofonte afirmou que qualquer tipo de “amizade baseada em algo mais que a admiração de idéias e caráter apenas corrompe, senão amplia, a moral combativa de um homem”. (WARRY, 2006: 64)
 
Basicamente, ao dispor a tropa de elite tebana (o Bando Sagrado ou ) na ala esquerda, contrariando o que normalmente ocorria (isto é, os melhores soldados à direita da formação), Epaminondas pôde densificar a ala de seu exército que entraria em choque com os espartanos situados na ala direita. Além disso, tendo vencido a cavalaria espartana, ofereceu reforço à sua ala esquerda com ataques de envolvimento desferidos pelas tropas montadas, assegurando que a ala direita de seu exército evitasse o combate direto a todo custo, graças a sua formação mais recuada, tida no contexto de organização geral como “formação oblíqua”. Com isso, antes que Cleombrotus pudesse reforçar o local onde os tebanos rompiam com a coesão da linha de frente espartana, o golpe final já havia sido desferido.
 
Esse é, então, o primeiro ponto que apresento na minha comunicação, isto é, a crescente multi-etnização dos exércitos gregos como componente da profissionalização dos exércitos e como etapa que antecede a integração tática ocorrida na primeira metade do séc. IV a.C. (conforme ilustrado em Leuctra), cuja maior expressão foi, sem dúvida, o exército reformado de Filipe da Macedônia e de seu filho, Alexandre, o Grande.
 
A transição dos exércitos multi-étnicos aos taticamente integrados (aqueles cujas tropas apresentam relação de interdependência vital à execução de uma manobra geral comum, como no caso do envolvimento de tipo macedônico) interessa-me por dois motivos, sendo ambos referentes à constituição da tradição militar helenística e a sua posterior introdução na guerra cartaginesa.
 
O primeiro deles diz respeito ao fato de que os exércitos helenísticos são, como produto da implosão de sessões do exército de Alexandre, multi-étnicos e integrados. Vale lembrar que, após a morte de Alexandre, os desentendimentos entre os sucessores foi constante e, eu diria até progressivos, mas modificados por variações no equilíbrio do poder. Em 323, por exemplo, Craterus foi nomeado prostátes () do rei, algo como guardião e primeiro ministro, enquanto Perdicas foi tido como chiliarca, comandante e grande vizir do império, cargo inferior ao de Craterus, de acordo com Rostovtzeff (1964: 4). Após a Guerra Lamiana, entretanto, onde Craterus e Antípatro desempenharam papel crucial, Perdicas forçou cada vez mais sua autoridade como Sucessor legítimo, o que acarretou na primeira grande coligação dos diádocos após a morte de Alexandre. Com a morte de Craterus por Eumenes e de Perdicas no Egito (mesmo antes de combater Ptolomeu), Antípatro, feito (administrador com poderes plenos), deslocou o poder mais para oeste, na tentativa de evitar a ascensão de Antígono, o caolho, que não parecia muito disposto a compartilhar poderes com Cassandro, o atual chiliarca. Em seguida, tendo o controle de uma espécie de satrapia geral da Ásia, Antígono derrotou Eumenes e deslocou, uma vez mais, o quadro político helenístico. Por último, observamos, não como um acordo vitorioso de paz, mas como tendência geral de um império cada vez mais fragmentado, a constituição de centros políticos independentes (ptolomaico, selêucida e antigônida).
 
No clássico Recherches sur les armées hellénistiques, Launey (Apud Lévêque, 1999: 343) percebe com razão a progressiva subtração do elemento grego nas forças armadas helenísticas (veja, por exemplo, a inserção definitiva de semitas na defesa do Egito ptolomaico, a partir do acesso aos ginásios - elemento fundamental da vida cotidiana grega e tão caro aos mercenários - como meio de partilhar a cultura helênica). No entanto, afirmo, a disposição geral das tropas e a execução de algumas manobras permaneceram, ao menos até a batalha de Ipso (301), bem semelhantes aquelas do tempo de Alexandre.
 
Como nota John Warry (2006: 96), encontramos ainda o ataque oblíquo, a cavalaria pesada desferindo o golpe principal, a cavalaria leve protegendo a pesada, e as tropas levemente armadas precedendo o ataque frontal por meio de escaramuças. A grande inovação helenística está, no entanto, no emprego dos elefantes de guerra e no impacto que essa prática gerou sobre o papel da infantaria pesadamente armada, que passou a ocupar, na maior parte das vezes, posição de tropa de segurança ou suporte ao ataque dos elefantes. Esses animais foram empregados, por exemplo, por Perdicas em sua invasão do Egito, em 321 a.C., e por Antígono e Eumenes na Ásia Menor, em 317 e 316 a.C. (GLOVER, 1948: 2). Além disso, Antígono e Demétrio, seu filho, continuaram a empregar elefantes mesmo na batalha de Ipso, em 301 a.C., quando Seleucus já dispunha dos seus quatrocentos elefantes, adquiridos no acordo que havia estabelecido com o rei indiano Chandragupta dois anos antes.
 
O segundo motivo, ainda com relação aos exércitos taticamente integrados, desdobra-se do primeiro e tem a ver com o fato de que é com Pirro que a guerra helenística é apresentada aos romanos, aos gregos do sul da Península Itálica e aos cartagineses, ilustrando, a despeito das dificuldades do terreno peninsular para o emprego das manobras helenísticas, o núcleo de aplicação tática desta tradição militar, implicada, por exemplo, no uso dos elefantes - mesmo aproximadamente vintes anos após a batalha de Ipso - como primeira tropa de choque e no espaço necessário às manobras de cavalaria.
 
O apelo das cidades gregas do sul da península itálica não foi algo inédito no tempo de Pirro, sendo prática comum pelo menos desde a metade do séc. IV a.C. O primeiro caso foi a expedição comandada pelo rei espartano Archidamus III, no contexto dos embates entre gregos e macedônios. O segundo caso ocorreu com Alexandre, tio do filho Filipe II. Assim como Archidamus, foi morto em batalha travada próxima ao golfo tarentino. O terceiro e último caso antes de Pirro está relacionado à intervenção de Cleônimo, comandante mercenário espartano que também atendeu aos apelos de Tarento. Desse modo, pode-se deduzir que existe um padrão no auxílio solicitado pelos tarentinos, isto é, são eles direcionados aos espartanos ou aos gregos do Épiro, especialmente após a união do pai de Pirro com uma mulher da nobreza tessália.
 
Após a derrota sofrida por Demétrio Poliorcetes ao enfrentar uma coligação de Pirro e Lisímaco, a divisão do poder na Macedônia entre os dois generais vitoriosos ficou prejudicada e Pirro foi forçado a ceder. Diante disso e do apelo feito por Tarento e pelas demais cidades gregas da Península Itálica para que liderasse seus exércitos contra os romanos, Pirro reuniu um exército de aproximadamente 20 elefantes, 3 000 cavaleiros, 2 000 arqueiros, 500 fundeiros, 20 000 soldados de infantaria e partiu para a guerra.
 
É conhecido o relato de Plutarco sobre o desastre natural que abriu a campanha e, vale dizer, que comprometeu todo o seu desenvolvimento logístico. As embarcações que transportavam o exército foram separadas drasticamente por uma tempestade, ora deslocando parte da frota para a Sicília, ora arrastando-a para a Líbia. Assim, Pirro teve de esperar pela reunião de suas tropas e abrir mão de qualquer posicionamento estratégico vantajoso, em relação ao avanço romano para o sul. Quando conseguiu reunir uma força capaz de enfrentar os romanos, Pirro marchou e travou em Heracléia a batalha que deu à história militar um termo derivado do seu nome.
 
Na condição de um comandante helenístico, as manobras por ele executadas foram as típicas dos exércitos dos Sucessores, exceto pela falha da cavalaria, que deveria obrigatoriamente vencer as forças montadas inimigas enquanto a infantaria avançava. Aqui, Pirro deu à infantaria, a partir de sua derrota na ala direita, uma função invertida. Assumindo a postura ofensiva, a falange foi capaz de manter sua coesão devido ao sucesso em bater a cavalaria inimiga com o emprego dos elefantes, estranhamente posicionados - não fosse o seu baixo número - nas alas, como suporte à cavalaria.
 
Após sua “vitória pírrica”, o rei do Épiro combateu os romanos na batalha de Ásculo, em 279, durante o retorno para Tarento, mais ao sul, quando outra vez os elefantes desempenharam papel decisivo. Pirro, então, decidiu partir para a Sicília, abandonando o conflito em favor dos tarentinos em prol de uma possibilidade mais interessante e, se vitoriosa, mais apropriada aos seus anseios como conquistador de Cartago.
 
Sem dúvida, Pirro deixou para a Sicília uma herança de guerra contra os romanos, ao conduzir a atenção dos inimigos (em conformidade com o já consolidado avanço romano ao sul da península) para sua tentativa de sucessão de Agátocles, em Siracusa, mas também revelou aos cartagineses um padrão de guerra conhecido, ao menos na prática militar, somente pelos povos situados a leste do Adriático, por onde Alexandre deixou as marcas de sua Anábasis. A partir desta constatação, chegamos a seguinte questão: como se deu a interação da cultura militar cartaginesa e helenística, já que meu principal interesse é a reforma militar do exército cartaginês, ocorrida nos padrões táticos dos Sucessores?
 
Deve-se notar que o emprego de grande número de mercenários por parte dos cartagineses, amplamente documentado, por exemplo, em Plutarco, normalmente induz a um erro de generalização no que se refere às tropas cartaginesas. Embora os mercenários compusessem boa parte do exército cartaginês, os cidadãos não estavam todos ocupados com os remos das embarcações. Antes disso, como nos relata o biógrafo grego em sua Vida de Timoleão, aproximadamente 10 000 soldados de infantaria, bem organizados e armados com seus escudos brancos, marcharam a passo curto/lentamente contra os gregos na Sicília.
 
O civismo voltado para a atividade militar, no entanto, não foi em Cartago tão exercitado quanto nas póleis, ainda que haja em Políbio uma famosa comparação entre as instituições, quando o mesmo se esforça por demonstrar a superioridade da constituição romana frente à cartaginesa. Entre os principais contingentes recrutados para o exército cartaginês, formado basica­mente por mercenários e cidades aliadas do norte da África, estavam os cavaleiros númidas, com altíssimo nível de especialização na guerra montada (aterrorizando muitas vezes a cavalaria romana, por exemplo), os líbios (responsáveis pelo fornecimento de carros de guerra, importantes no combate à cavalaria, como ilustrado na batalha de Crimisus) e os povos baleáricos (especializados nas escaramuças, tendo função tática semelhante àquela desempenhada pelos fundeiros ródios).
 
Além de todas essas composições étnicas, com funções táticas bastante diversas e que possibilitaram a reforma do exército no direcionamento da integração tática da guerra helenística, gostaria de destacar o emprego dos elefantes pelos cartagineses, já que eles talvez sejam o grande exemplo da alteração drástica no padrão geral das táticas cartaginesas. Noutras palavras, as divergências no emprego desses animais como armas de guerra pelos indianos e pelos cartagineses vão além da maneira como eles eram equipados, com uma caixa-torre como assento no primeiro caso e sem ela no segundo, e servem para ilustrar que a disposição de todos eles à frente das tropas de infantaria, cumprindo função semelhante a que foi dada por Pirro, assegurou aos cartagineses, ao menos nesse aspecto, uma reforma com direcionamento tático helenístico.
 
A partir desta constatação, após ter estabelecido o percurso da guerra grega, das inovações do séc. IV a.C. à constituição da tradição militar helenística, passando mesmo pela invasão pírrica e pela modificação das táticas cartaginesas ao longo da guerra realizada na Sicília, restaria analisar detalhadamente, em trabalhos que ainda estão por vir, obviamente não neste artigo, como a tra-dição militar helenística foi configurada em Cartago de acordo com as etnias africanas que compuseram o exército pós Xantipo, até o fim da Guerra Mercenária, em 237.
 
 
Bibliografia
 
Fontes
Políbio. The Histories. Cambridge: Harvard University Press, 2005.
Plutarco. Pyrrhus. Cambridge: Harvard University Press, 1920.
Xenofonte. Anábasis. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
Xenofonte. Hellenica. Cambridge: Harvard University Press, 1960.
 
 
Bibliografia Geral
 
ADCOCK, F. E. The Greek and Macedonian art of war. Berkeley: University of California Press, 1957.
AUSTIN, M. M. Hellenistic Kings, War and the Economy. The Classical Quarterly. Cambridge, v.36, n.2, pp. 450 466, 1986.
BLANKE, Horst. Para uma nova história da historiografia. São Paulo: Con­texto, 2006. pp. 27 64.
CALDAS, Pedro. “Fixar a onda de luz”: o problema da transição das épocas históricas no conceito de helenismo em Johann Gustav Droysen. História da Historiografia. Ouro Preto, v.1, n.1, pp. 88 101, 2008.
GLOVER, R. F. The tactical handling of the elephant. Greece and Rome. Cambridge, v.17, n.49, pp. 1 11, 1948.
LÉVÊQUE, Pierre. La guerre à l’époque hellénistique. In: VERNANT, J.P. Problèmes de la guerre em Grèce ancienne. Paris: Éditions de l’École dês Hautes Études em Sciences Sociales, 1999. pp. 341 390.
Rostovtzeff, Michael Ivanovich. The Social and Economic History of the Hellenistic World (I). Oxford: Oxford University Press, 1964.
WARRY, John. Warfare in the Classical World. Oklahoma University Press, 2006.
 
 
* Doutorando em História na Universidade de Brasília (UnB), pesquisador associado do Projeto de Estudos Judaico Helenísticos (PEJ UnB) e Bolsista de Doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
 
 
 1 Agradeço as orientações do Professor Angelos Chaniotis, fundamentais para esta questão.
 2 Ver o caso de Demétrio Poliorcetes, que reinava sem exercício de poder direto sobre um território.
 3 Antes mesmo, para argumentar que no pensamento grego a monarquia sempre esteve associada, ao menos desde Hesíodo, às conquistas militares e, por conseqüência, aos grandes feitos, temos na Teogonia a vitória de Zeus e outros deuses sobre Cronos e os titãs como etapa precedente a sua coroação como basileus (AUSTIN, 1986: 457).
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2009-05-21
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by COM Armando Dias Correia