Nº 2512 - Maio de 2011
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Recordando o Início da Guerra do Ultramar 50 Anos Depois
Tenente-coronel
António Lopes Pires Nunes
Introdução
 
A todos saúdo e agradeço a vossa presença, que vem enriquecer esta iniciativa do Núcleo de Castelo Branco da Liga dos Combatentes.
 
Entendo ser muito importante a ideia de promover dois ciclos de conferências sobre o início da Guerra do Ultramar: o primeiro, que hoje se inicia, referente aos antecedentes das guerra e, o segundo, que terá lugar dentro de meses, próximo da data do início da subversão violenta, que, como é do conhecimento geral, ocorreu a 15 de Março de 1961, ou seja, quando forem passados 50 anos dessa ocorrência.
 
São pois os 50 anos do início da Guerra do Ultramar que a Liga comemora. Seja-me permitido agradecer em particular ao Presidente do Núcleo de Castelo Branco, Sr. Tenente-coronel Carlos Oliveira, a honra de me convidar para os dois ciclos para abordar temas que vivi e me são caros. Fiz parte do primeiro embarque de tropas para Angola, em 21 de Abril de 1961, ali estive sete anos, sempre em campanha, deixando lá muito de mim mesmo e dos homens que comandei, alguns dos quais regaram com sangue o chão angolano. Outros por lá ficaram dando, sem hesitação, o mais precioso de seu - a sua vida que não regatearam, confiando na perenidade da Pátria que os encarregou de a defender lá longe nessas paragens africanas, onde ficaram sepultados. E, sobretudo, confiaram que a sua entrega fosse honrada e respeitada até à eternidade, e hoje vemos que assim não é e o seu sagrado sacrifício ser constantemente atraiçoado.
 
A minha palestra de hoje “Recordando o início da Guerra do Ultramar 50 anos depois”, segundo o esquema que foi distribuído, é um pretexto para me debruçar sobre aspectos menos tratados ou talvez menos conhecidos mas que reputo de interesse para esclarecer os combatentes. Alguns deles poderão estar aqui presentes, e terão partido comigo sem saberem, tal como eunão sabia, ao que iam, norteados apenas pelo lema que todos aceitávamos
A Pátria não se discute”. Os oficiais da Escola do Exército levavam a divisa da Escola que os formou Dulce et Decorum est Pro Patria Moris (“Doce e honroso é morrer pela Pátria”) e cedo começaram a morrer. E, para saberem como, de súbito, disparámos os primeiros tiros de uma guerra que estávamos a iniciar, sem que disso tivéssemos consciência e que haveria de durar 13 anos.
 
Recordo ainda que falar do início da Guerra do Ultramar é falar exclusivamente de Angola pois a guerra da Guiné só se iniciou dois anos depois e a de Moçambique, em 1964.
 
 
Enquadramento Estratégico da Guerra em Angola
 
A Guerra do Ultramar iniciou-se em Angola, em 15 de Março de 1961, com um massacre generalizado no Norte, numa área quase três vezes a de Portugal Continental, através da prática do terrorismo puro, mas importa referir que, na segunda metade da década de 50 e mais intensamente na segunda metade de 1960, pairava já a ameaça de que algo estava para acontecer em Angola, embora ela fosse do desconhecimento geral. Mesmo os jovens cadetes da Academia Militar, como era o meu caso, nada sabiam e não lhes foram dadas as mínimas informações ou ministrados conhecimentos para enfrentar o que viesse a ocorrer. Tão pouco foram elucidados do futuro que os esperava e gozavam despreocupadamente as delícias da Lisboa dos anos 50, dançando nos salões de baile da capital sobre um barril de pólvora.
 
Angola é envolvida em grande parte da fronteira pelo Congo ex-belga, e a Bélgica havia prometido a independência à colónia para meados dos anos 60; porém, imediatamente após a declaração dessa promessa, a agitação generalizou-se, tornando-se imparável, e essa independência teve que ser antecipada para 1 de Julho de 1960. A violenta convulsão que se seguiu era uma amostra do que poderia acontecer em Angola, mas os angolanos não acreditavam que aquilo se pudesse repetir na sua terra porque havia a consciência profundamente arreigada de que a realidade de Angola era outra. Estou convencido de que assim era, nessa segunda metade de 1960, e a História poderá comprová-lo, mas o problema nessa altura não residia já nas relações entre brancos e pretos, que era a apreciação que faziam. A força das independências africanas tornara-se já avassaladora e tinha fortes e inconfessáveis impulsos internacionais. Após a independência do Congo Belga, Angola ficou numa situação de debilidade estratégica de que poucos davam conta. Havia já um partido emancipalista angolano a lutar pela independência de Angola nos areópagos internacionais e inserido nas lutas pan-africanas, e os portugueses não sabiam. Tratava-se da UPA (União dos Povos de Angola) chefiada por Holden Roberto, Movimento e personalidade que ninguém conhecia, que fora criado em Accra, no Ghana, em 1958. Até à independência do Congo Belga não pôde instalar-se nesta colónia porque os belgas o não permitiam mas, a partir de então, fixou-se na fronteira de Angola, ao norte, frente a S. Salvador e iniciou imediatamente a agitação em território angolano subvertendo as populações e introduzindo armas, situação que as autoridades locais denunciavam mas a Metrópole ignorava. Ou seja, estava-se a gerar a olhos vistos uma guerra que seria de carácter subversivo e de guerrilha, dentro de Angola, e ninguém por cá sabia disso ou tomava medidas adequadas. Não se acreditava em nada de avassalador, esquecendo-se do carácter internacionalista da subversão e as características de uma guerra subversiva. Não se teve em atenção que o Congo Belga, que até aí constituía uma barreira de avanço da subversão para Angola, e tudo indica que as autoridades portuguesas continuavam assim a pensar, julgando que teriam muito tempo para preparar a defesa da Província, era agora uma rampa de lançamento da subversão. Este erro de apreciação que foi cometido pelo nosso governo retardou todas as hipóteses de uma defesa atempada, e possibilitou o massacre. O governo português parecia paralisado e as autoridades de Angola não escondiam a angústia, enquanto a UPA manobrava as populações fronteiriças à vontade, a partir do Congo ex-belga, onde ia montando as suas bases e depósitos de material.
 
Também, desde 1959, existia o MPLA, que se encontrava muito debilitado pela decapitação que a PIDE fizera nesse Movimento. Era um movimento ainda incipiente que também aproveitou a barafunda do Congo ex-belga, então chefiado pelo comunista Lumumba, para aí se instalar, passando depois para o comunista Congo ex-francês já independente, quando o Congo ex-belga se lhe tornou hostil. Toda esta movimentação foi tratada displicentemente pelo governo português.
 
 
Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar?
 
O título da palestra contém a expressão “Guerra do Ultramar” e não “Guerra Colonial”, esta muito do agrado de certos analistas que invocam sempre motivos ideológicos ou pretensamente ideológicos, que nenhum combatente deve aceitar. Chega a ser patético ouvir alguns comentadores falar com toda a desenvoltura da “Guerra Colonial Portuguesa” e, no mesmo discurso, aduzir comparações com a Guerra da Indochina, a Guerra da Argélia, a Guerra da Independência da Índia, a Guerra do Quénia ou a Guerra da Independência dos Estados Unidos, não dando conta que, pelas suas palavras, só a guerra do então Ultramar Português era uma “guerra colonial”. Em 1960/61, nem a ONU ousava tratar assim as nossas colónias e chamava-lhes “Territórios não Autónomos”. A designação “Guerra Colonial” tem a ver com “Colonialismo” e pertence à gramática marxista-leninista que só tardiamente começámos a ouvir, mesmo pela boca dos mais conhecidos políticos portugueses, combatentes do salazarismo. Diga-se mesmo que estes pouco falavam das colónias e se o faziam era como trampolim para tomar o poder em Lisboa, que a situação dos povos sob a nossa soberania aparentemente pouco lhes interessava. E resistiam mesmo à descolonização.
 
Num encontro secreto, realizado em 11 de Setembro de 1973, em Paris, entre Raimundo Narciso, ex-militante do PC e membro da Ala Militar e António Macedo (o 1º. Presidente do Partido Socialista), o primeiro diz-nos que António Macedo, levantou reservas à redacção da parte do comunicado final em que se defende a “independência total e completa das colónias”. (Rui de Azevedo Teixeira, in A Guerra de Angola, 1961/74).
 
O termo “colonialismo” é entendido pejorativamente como a exploração de um povo por outro povo ocupante e assume uma conotação muito negativa. A URSS praticou refinadamente o colonialismo, enquanto ocupou as repúblicas e outros países da URSS com um exército capaz de o suportar. Quanto a nós, sem um exército colonial, a mais pequena revolta localizada apanhava-nos sempre de surpresa. Um anti-salazarista, o Dr. Cunha Leal, escreveu em 1961, em plena efervescência do início dos Acontecimentos de Março de 1961, um famoso livro O colonialismo dos anti-colonialistas, esclarecendo este equívoco, mas este livro depressa desapareceu da circulação.
 
Em contraponto ao colonialismo existe o conceito de “colonização”, isto é, a transferência de cultura, de desenvolvimento económico e a sucessiva integração das populações tidas por indígenas por outros povos mais avançados com quem contactaram ou que se estabeleceram no território, que era a posição do governo português. Muitos ilustres historiadores, mesmo estrangeiros, explicam que era o nosso caso e não é por acaso que, só depois de resolver facilmente as independências das colónias francesas, inglesas ou holandesas a subversão internacional se virou para as colónias portuguesas, onde sabia ir encontrar dificuldades porque as populações estavam com Portugal. Direi mesmo que se consideravam portuguesas. Para isto concorreu, segundo um ilustre historiador, Roger Bastide, o facto de o Império Português, ao contrário de outros ter sido feito “pas avec l’epée mais avec le pénis”, ou seja “não com a espada mas com o pénis”, conseguindo os portugueses uma miscigenação exemplar. Mesmo a relação dos militares com os indígenas e as suas lavadeiras e amigas tinham um caracter de condescendência, não se conhecendo um único caso de violências sexuais graves, o que não sucedeu com outros colonos de outros países europeus.
 
A Guerra do Ultramar não tinha a ver com o colonialismo mas prendia-se antes com a conhecida teoria leninista de que para derrotar a América no contexto da Guerra Fria havia primeiro que dominar a Europa, que serviria de trampolim, e para dominar esta era preciso atacá-la nas suas colónias, que era o elo mais longínquo, logo o mais fraco.
 
Os que têm acesso fácil à Comunicação Social, e falam do colonialismo português, em geral gente de certos quadrantes político-partidários, peroram sobre coisas do Ultramar mas nunca lá foram e têm o desplante de atacar Salazar por este decidir sobre o Ultramar sem nunca lá ter ido, o que é verdade, mas cometem o mesmo erro. Não gostam das Forças Armadas a que se furtaram fugindo em regra, e às quais depreciativamente chamam “tropa” e afirmam que o governo português de então passou a designar as suas colónias de “Províncias Ultramarinas” quando a subversão activa estava à vista. Puro engano, que se generalizou e está arreigado no espírito de muita gente. Ao longo da História tivemos as duas designações, sobre as quais não vou teorizar, que tiveram a ver apenas com a melhor forma de defender esses territórios da cobiça alheia, desde a Corrida a África no final do séc. XIX até às mais insidiosas consequências da Guerra Fria.
 
A designação “Província Ultramarina”, perde-se no tempo. Em 1643, o rei D. João IV, criou o Conselho Ultramarino. Em 1736, foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, que mais tarde passou a denominar-se Ministério da Marinha e do Ultramar, designação que se manteve até 1910. Com o advento da República, foi criado o Ministério da Marinha e das Colónias, que em 1911 foi desdobrado em dois, passando a ser um o da Marinha e outro o das Colónias. Em 1951, o Ministério da Colónias passou a designar-se Ministério do Ultramar.
 
Eu próprio embarquei para o Ultramar em 1961, num navio da Companhia Colonial de Navegação. Não foi pois a ameaça de 1961 que fez usar o termo “PU” mas ela tivera génese em 1951, pela última vez, e não foi Salazar quem inventou o termo.
  
Claro que, dentro da nossa colonização, houve erros, abusos, injustiças e situações que se aproximavam do colonialismo, fossem Colónias ou Províncias Ultramarinas, mas elas não eram legais e foram sempre combatidas pelas autoridades. Angola teve a sorte de ter, durante o séc. XX, como Governadores-gerais figuras de enorme estatura que se opunham ferozmente a esses abusos, enfrentando com toda a força legal grandes concessões como a COTONANG (Malange) e a DIAMANG (Lunda), duas “companhias majestáticas”, as mais citadas quando nos pretendem atacar. Recordemos os nomes de Paiva Couceiro, Norton de Matos, Agapito de Sousa Carvalho, Dr. Silva Tavares, general Venâncio Deslandes, coronel Rebocho Vaz, coronel Silvino Silvério Marques e Engº. Santos e Castro que deixaram no seu conjunto uma obra gigantesca que foi sendo construída ao longo do séc. XX, com mais incidência a partir de 1961. Em 1974, quando a guerra de Angola estava ganha e as populações haviam optado claramente pelas autoridades portuguesas, o surto de desenvolvimento a todos os níveis em Angola era de tal ordem que por todo o lado se gritava a expressão “Ninguém segura Angola”. Foi exactamente nesta altura que traímos os angolanos da forma que todos conhecemos.
 
 
A Conferência de Bandung de 1955
 
Dissemos já que uma das causas próximas do início da Guerra em Angola foi a apressada independência do Congo Belga. Todavia, o problema é mais complexo e teremos que remontar a décadas anteriores, quando a partir da Grande Guerra de 1914/18 emergem os movimentos pan-africanos e, sobretudo, se tornam imparáveis a partir da Conferência de Bandung de 18 de Abril de 1955, que deu um forte e decisivo impulso a esse crescente pan-africanismo.
 
Na minha opinião as três grandes correntes filosóficas que dominaram o séc. XX foram a Doutrina Social da Igreja, dimanada de Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891; o Marxismo-Leninismo, iniciado na prática com a Revolução Russa de 1917 e o Pan-Africanismo, que lutou durante muitos anos pela dignidade do homem negro e, a partir de Bandung, passou a entender que essa dignidade tinha que passar pelas independências africanas e, lutando por elas, gerou o conceito “Os Ventos da História”. Sabemos como claudicou o marxismo-leninismo com a queda do Muro de Berlim e ainda vinga a Doutrina Social da Igreja, enquanto o Pan-Aficanismo atingiu o expoente máximo após a libertação de Nelson Mandela e o que se lhe seguiu.
 
A Conferência de Bandung ocorrida na Indonésia convocada pela Birmânia, Ceilão, União Indiana, Indonésia e Paquistão, foi uma verdadeira bomba atómica lançada sobre os países coloniais. Sentimos logo os seus efeitos pois um dos promotores da Conferência - a União Indiana começou a reivindicar a posse de Goa, Damão e Diu e iniciou uma incipiente guerra de guerrilha conhecida pela “guerra dos satiagrais”, pretensamente pacífica e atingiu o ponto mais dramático para nós com a invasão em força desses territórios em Dezembro de 1961.
 
O governo português nunca aceitou os chamados “Ventos da História”, tanto mais que N’Krumah do Ghana deturpou o conceito ao proferir “África para os Africanos negros”, e foi assistindo à independência das colónias inglesas, francesas excepto a Argélia, julgando ser possível levar a sua política com o seu ritmo enquanto ia ficando completamente isolado no contexto internacional. Com uma imprensa livre os portugueses teriam tido conhecimento de Bandung e, se tivéssemos actuado de outra forma entre 1955 e 1961, as auto-determinações dos territórios portugueses teriam ocorrido diferentemente, é minha convicção.
 
 
Os Ventos de Bandung Sopram sobre Angola
 
Nos anos que se seguiram à Conferência de Bandung, entre 1955 e 1960, a preocupação das autoridades civis e militares de Angola ia crescendo perante o avolumar de notícias de uma eventual entrada da subversão em Angola; todavia, as ameaças eram ainda longínquas porque se vivia a independência das colónias francesas, excepto a Argélia, e das colónias inglesas e a atenção ainda não estava virada para as colónias portuguesas, mas nos palcos internacionais ninguém tinha dúvida que chegaria a nossa vez.
 
Em 1959, o Governador-geral de Angola, general Sá Viana Rebelo tinha já plena consciência de que não deveríamos estar descansados mas ele próprio não tinha a noção do que estava para vir. Na inauguração da Carreira de Tiro Militar de Luanda proferiu um discurso que ficou conhecido pelo “Discurso da Carreira de Tiro”: “Não sou por natureza pessimista mas quero dizer desde já que não se poupem munições nesta carreira de tiro e que venham cá os civis a treinar pois os tiros que aqui se gastarem poderão evitar outros mais desagradáveis”. O discurso teve grande eco nas terras do interior sossegando as populações que ficavam a saber que havia quem as defendesse mas caiu muito mal em Lisboa, que queria continuar a ocultar a nuvem negra que já pairava sobre Angola e poucos ainda viam.
 
 
A Situação na Metrópole
 
Como já referimos, a avalanche que se aproximava de Angola era do desconhecimento geral, enquanto ocorriam visitas a Lisboa de vários Chefes de Estado. Por detrás do “glamour” da visita da Rainha de Inglaterra a Portugal, em 1957, dois anos após a Conferência de Bandung, teria havido concerteza contactos diplomáticos sobre o Ultramar Português. A visita do Imperador da milenária Etiópia, Hailé Selassié, o mais velho país independente de África, e de outros, deve inserir-se no mesmo contexto, mas essas visitas eram-nos apresentadas como luzes resplandecestes encantadas com Portugal, mas na realidade eram enganadoras e ofuscantes da realidade. O governo português e os oficiais-generais portugueses da cúpula do Estado, bem conhecedores dos perigos, pouco faziam pela defesa do Ultramar e viviam fascinados pela entrada de Portugal na então recente NATO. Argumentavam que a defesa do Ultramar passava pela NATO, pois se esta nos defendia na Europa não podia deixar-nos atacar no Ultramar, ignorando completamente o que era uma guerra subversiva, o que nos deixa hoje pasmados. Foi só em 1959, numa reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, onde o ministro da Defesa, general Botelho Moniz, expôs a situação nos termos referidos, que este ouviu de Salazar a resposta: “tudo será como os senhores dizem mas a verdade é que em relação à NATO o nosso esforço não conta e se o ataque do inimigo incidir sobre o sector português (estava a lembrar o desastre de La Lys) este poderá ficar sem exército e portanto sem a sua juventude”. O certo, porém, termina Salazar, “é que iremos ter uma guerra no Ultramar e essa será de guerrilhas, para a qual temos de estar preparados”.
 
Em 1959, portanto, Salazar declarou explicitamente que íamos ter uma guerra de guerrilhas.
 
Era a primeira vez que Salazar definia o seu conceito estratégico. Definiu- o de forma clara e bem, quanto a mim, mas continuou a nada fazer para o concretizar. Ainda assim, em 16 de Abril de 1960, o Ministro do Exército, Almeida Fernandes, criou o Centro de Operações Especiais de Lamego (CIOE) que formou algumas companhias de Caçadores Especiais, três das quais foram colocadas em Angola e se foram preparando com toda a calma algumas pistas de aviação. O Ministro do Exército, coronel Almeida Fernandes queria andar muito mais depressa mas Salazar travava-o com argumentos de orçamento ou de imagem, escreveu este ministro mais tarde.
 
Enquanto decorria esta inactividade na Metrópole, as nuvens sobre Angola tornaram-se muito negras e o Comandante da Região Militar de Angola, general Monteiro Libório, em desespero, já em 1961, com Angola em chamas, clama para Lisboa de forma duríssima: ”Devem ser preparadas rapidamente tropas e as Forças Armadas dotadas de meios para que possa cumprir a missão, o que evidentemente não estou a fazer. Estamos a caminhar para uma situação extremamente difícil que custará à Nação, em sangue e dinheiro, alguns milhares de vezes o que agora muito mais oportuna e economicamente teria que se gastar”. Esta e outras missivas para Lisboa valeram ao general a sua substituição pelo general Freire que viria a morrer no Desastre do Chitado - ele e mais 17 militares, muitos deles oficiais do Quartel-General.
 
Importa dizer que o Presidente da República, o general Craveiro Lopes via a situação com clareza e tinha a noção exacta do que nos esperava, o que lhe trouxe também a animosidade com Salazar que, em 1958, não o reconduziu e substituiu-o na Presidência pelo almirante Américo Tomás. Já fora da Presidência, Craveiro Lopes foi vexado e escutado nos seus telefonemas, vigiado pela PIDE, viu perseguida também uma senhora com quem convivia desde que ficara viúvo e para não ser mais vexado, ele, que era já marechal, foi para Angola, juntar-se ao batalhão do seu filho que estava no Norte em zona de combate e ali esteve algum tempo. Regressou à Metrópole e morreu pouco depois. Embora tivesse um funeral de Estado envergonhado, a sua família teve que o pagar para não se rebaixar a fazer um requerimento para o Estado o pagar, já que tinha direito a ele. Craveiro Lopes advogava o fim da censura como meio de a Nação saber o que o esperava e se encontrarem as soluções mais adequadas, sensatas e justas para a resolução do problema do Ultramar.
 
Foi um presidente com grande visão e muito pouco valorizado pelos portugueses, porque era um tanto discreto e desconhecia-se ou escondia-se o papel que pretendia desempenhar.
 
Em Março de 1961, a Libéria, com o estatuto de ser a primeira colónia africana a ser independente, apresentou na ONU uma moção condenando Portugal “por fazer perigar a paz mundial” em Angola. Os EUA tentaram convencer Salazar a anunciar a auto-determinação a prazo das nossas PU, que nos prestariam ajuda económica para as desenvolver rapidamente e ajudariam a obter o apoio de outros países.
 
Salazar rejeitou todos os argumentos dos EUA e ficou a saber que, sendo assim, este país votaria favoravelmente a moção da Libéria e avisou-nos que iríamos ter grandes problemas.
 
A aludida moção da Libéria foi concertada com a tentativa de acusar Portugal de praticar algo parecido com o que hoje se denomina de colonialismo.
 
A OIT (Organização Internacional do Trabalho), já dominada, tal como a ONU, pelos países chamados do 3º. Mundo, quase todos na órbita soviética, recebeu uma queixa do Ghana, acusando o governo português de não garantir eficazmente a observação de uma convenção sobre o trabalho forçado nos territórios de Angola, Moçambique e Guiné e fez nomear uma comissão de inspecção internacional constituída pela Suíça, Uruguai e Senegal. Esta comissão, reforçaria a infundada queixa da Libéria. Foi nomeada em 19 de Junho de 1961, já depois da guerra se iniciar, esteve em Angola de 3 a 10 de Dezembro; em Moçambique, de 10 a 16 desse mês, tendo percorrido mais de 870 km. e visitado livremente todos os territórios. Viu o que quis nos locais que entendeu.
 
Do minucioso relatório da Comissão, extrai-se que:
“A Comissão está plenamente convencida da boa fé com que as modificações da política, da legislação e da prática foram efectuadas e rejeita, como inteiramente desprovida, a alegação feita em apoio da queixa de que Portugal ratificara a convenção e apenas como disfarce para continuar as brutais políticas de trabalho. A Comissão declarou ainda estar impressionada com a política de emprego de certas empresas e absolvia inteiramente a Companhia de Caminho de Ferro de Benguela da acusação de praticar trabalho forçado. Aproveitou a oportunidade para escrever que, noutros caminhos-de-ferro e nos portos também nada vira de condenável e ficara mesmo muito impressionada com a liberdade de que gozavam todos os patrões, trabalhadores e funcionários, africanos ou metropolitanos.”
 
Este relatório foi uma vitória clara para Portugal mas, embora as queixas não tivessem fundamento, isso já pouco interessava no contexto internacional coevo e a verdade é que a sua posição foi-se tornando muito difícil e o apoio aos movimentos africanos empurravam Portugal para um isolamento quase total.
 
A partir de então ficámos sós e para usar a expressão de Salazar, “Orgulhosamente sós”.
 
As teses americanas encontravam eco em Portugal em alguns sectores, desiludidos com Salazar, nomeadamente a nível governamental. Certamente concertada com a iniciativa do Embaixador dos EUA, ocorreu a 11 de Abril de 1961 uma tentativa dos ministros da Defesa, general Botelho Moniz e do Exército, coronel Almeida Fernandes, com o apoio do ex-Presidente da República, general Craveiro Lopes, de forçar a demissão de Salazar. Começaram por lhe escrever uma carta sobre o sentimento do Exército em relação ao que se passava em Angola e, posteriormente, encontraram-se com o Presidente da República, almirante Américo Tomás, a quem exigiram a demissão do Presidente do Conselho, que se mostrava intransigente em matéria de política ultramarina.
 
Salazar demitiu aqueles dois ministros e fez uma remodelação ministerial, reservando para si a pasta da Defesa. Proferiu o conhecido “para Angola rapidamente e em força” e incrementou fortemente as mobilizações para Angola e também para Moçambique, sem qualquer contestação dos portugueses. Desta forma, vingava a sua tese de manter a integridade das então Províncias Ultramarinas Portuguesas e de enfrentar militarmente, onde fosse necessário, as ideias pan-africanistas, mesmo contra a opinião dos amigos tradicionais de Portugal.
 
Em 15 de Março de 1961, no dia em que a moção liberiana foi votada, iniciou-se um massacre generalizado no Norte de Angola, perpetrado pela UPA. Tudo estava combinado, os EUA sabiam-no e Salazar sabia-o. Começava o período das grandes dificuldades que os EUA profetizavam que Portugal iria enfrentar em África se não seguisse a sugestão do Presidente Kennedy e não alterasse a sua política africana.
 
Na III Conferência dos Povos Africanos, no Cairo, de 23 de Março de 1961 foi aprovado o “recurso à força para liquidar o imperialismo”, sendo referidos abertamente os territórios de Angola, Moçambique e Guiné, legitimando, de certa forma, os massacres que ocorriam em Angola.
 
 
Os Primeiros Meses de 1961, em Angola
 
Podemos dizer que a guerra em Angola se iniciou com os massacres de 15 de Março de 1961. Porém, esses acontecimentos foram precedidos por duas graves sublevações, a primeira das quais na Baixa do Cassange, a leste de Malange, iniciada em 11 de Janeiro de 1961, de motivação laboral, numa área de cultivo de algodão em regime de monocultura. A revolta foi gerada pela COTONANG e incentivada pelo PSA (Partido Solidário Africano), partido congolês com influência transfronteiriça, num Congo ex-belga em efervescência pela recente independência. A COTONANG era uma empresa belga que obtivera do Governo Português uma concessão e que, por isso, detinha o monopólio do cultivo do algodão. Durante anos exerceu sistematicamente exorbitâncias sobre as populações da área, alimentadas pela corrupção de alguns inspectores e de algumas autoridades administrativas que fechavam os olhos às denúncias desses excessos. Foi uma revolta genuína, facilmente induzida numa região onde a feitiçaria era uma prática corrente, e podemos dizer justa, sem interferência de qualquer movimento independentista. As FAP, fazendo fogo real pela primeira vez desde a Primeira Guerra Mundial, detiveram a revolta em cerca de 40 dias, findos os quais as populações, cientes de quem tinha a culpa, pediram oficialmente, através de uma Acta, que as forças portuguesas permanecessem na área a fim de não sofrerem represálias.
 
Ainda decorria essa sublevação quando, a 4 de Fevereiro, ocorreram as tentativas de assalto à Cadeia de S. Paulo de Luanda, à Esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP) e à Casa da Reclusão de Luanda com o fim de libertar presos políticos. Também nesses incidentes não houve influência de qualquer movimento, embora o MPLA se tenha apropriado indevidamente da data. Tratou-se de acção de vários pequenos grupos clandestinos que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) tinha identificado e desorganizado em 1959 e 1960. Entre eles estava o Movimento para a Independência Nacional de Angola (MINA), o Partido Unido para a Luta por Angola (PULA), o Movimento Independentista Africano (MIA), o Movimento Anti-Colonialista (MAC) e outros, orientados, segundo parece, pelo padre Manuel das Neves, figura muito conhecida em Luanda. Se o sacerdote estava ligado a algum movimento independentista seria à UPA e não ao MPLA, movimento então recente e em fase de organização.
 
A população de Luanda ficou seriamente abalada mas, comparando estes incidentes com o que se passara no Congo, recuperou rapidamente, não só porque desconhecia a existência de movimentos organizados, ligados à corrente pan-africanista, que se preparavam para iniciar a luta armada, mas porque pela cabeça de todos não passava outra ideia que não fosse a de que tudo estava em paz, desconhecendo que uma guerra subversiva se inicia com uma fase de segredo em que “se passam coisas sem alguém saber”. Vivia-se essa fase e a sublevação na Baixa do Cassange, aliás do conhecimento de poucos, bem como o 4 de Fevereiro não passaram de meros incidentes de alteração da ordem pública. O que acontecera no Congo no ano anterior não ia repetir-se em Angola, dizia-se com alguma arrogância e descabida exibição de valentia, mesmo nos matos. No entanto, não tardaria a que os angolanos sentissem na pele que as coisas não eram tão simples assim.
 
A 15 de Março, pouco mais de um mês depois dos acontecimentos de 4 de Fevereiro, com um massacre generalizado perpetrado pela UPA nos distritos de Cuanza Norte, Uíge e Zaire, começou verdadeiramente a Guerra independentista no Teatro de Operações de Angola. Foram, então, assassinadas muitas centenas de brancos e alguns milhares de pessoas de outras raças, sem discriminação de sexo e idade, as habitações e as estruturas económicas foram destruídas, as estradas e as pontes foram cortadas, o pânico e o caos instalaram-se por todo o lado. As populações aterrorizadas refugiaram-se nas matas, fugiram para os países vizinhos ou acolheram-se nalguns grupos de resistência que os sobreviventes haviam constituído em certas localidades de Carmona, Negage, Sanza Pombo, Santa Cruz, Quimbele e Mucaba, entre outras. Ali aguardavam a chegada de socorro, que tardava ou não chegava mesmo por falta de tropa em quantidade suficiente. A Metrópole continuava paralisada e, durante dois meses, os elementos da UPA tiveram tempo para levar a sua selvajaria a todo o Norte.
Nas Conferências de Março, abordaremos estes conflitos.
 
 
Conclusão
 
Em face do exposto poderemos concluir:
 
- Nos anos 50 até 1961, quando os “Ventos da História” começaram a soprar sobre África exigindo autodeterminações que conduzissem a independências, talvez fosse possível ao governo português delinear uma “solução portuguesa” de desenvolvimento acelerado e racional, dentro de um contexto português, desde que não de integração definitiva, solução artificial, que a ONU já repudiava; resolveu, porém, seguir exactamente essa política “do Minho a Timor” que não convencia nem os maiores defensores do regime, como Santos Costa que a considerava risível;
 
- Entre 1955 (Conferência de Bandung) e 1960, poderíamos, dentro da política definida, que não teria sido a mais acautelada, ao menos ter guarnecido militarmente o Ultramar para evitar surpresas, quando a subversão activa chegasse; não o fizemos e assim perdemos a iniciativa e não conseguimos evitar a hecatombe que se abateu sobre Angola em 15 de Março de 1961;
 
- Em 1955, acorremos às ameaças da União Indiana sobre o Índia Portuguesa e ignorámos as que pendiam sobre Angola e, todavia, as ameaças tinham a mesma origem (Bandung);
 
- Só em 1959, Salazar centrou a estratégia de defesa em África, quando afirmou num Conselho Superior de Defesa Nacional: “Iremos ter uma guerra em África e será de guerrilhas e, para isso, devemos estar preparados”; contudo, não a assumiu e as medidas militares foram adiadas: no Governo Geral de Angola, o general Sá Viana Rebelo foi substituído por um civil, natural de Cabo Verde, o juiz conselheiro Silva Tavares, provavelmente por uma questão de imagem externa e os apelos do Comandante-Chefe de Angola, general Libório, duros e lancinantes - “Devemos ter preparadas rapidamente tropas e as Forças Armadas dotadas de meios para que possam cumprir a missão, o que evidentemente não estou a fazer; se não o fizermos, pagaremos mil vezes mais caro e em sangue derramado esse descuido”, não só não foram atendidos como, em 1961, foi demitido sem honra nem glória e substituído pelo general Freire;
 
- A independência do Congo ex-belga, em meados de 60, não levou o governo a mudar de atitude (de barreira à subversão, o Congo passou a ser uma plataforma de lançamento da mesma) e nem os Massacres de 1961 o tiraram dessa letargia perigosa; a partir desta data, a população de Angola passou a criticar abertamente o Governo por essa paralisia;
 
- Entre 1959 e 1961 pouco se fez e o que fez foi pela mão do Ministro do Exército, Almeida Fernandes que reorganizou a Escola do Exército, criou o CIOE e enviou para Angola algumas (poucas) tropas especializadas, e por Kaúlza de Arriaga no âmbito da aeronáutica; curiosamente, Almeida Fernandes quis demitir Salazar por não concordar com a sua política e por mostrar uma perigosa e enervante inacção estratégica, que paralisava a sua acção ministerial;
 
- A frase de Salazar “Para Angola rapidamente e em força”, um mês depois de 15 de Março, proferida num clima emocional, depois de assumir as pastas da Defesa e do Exército é um equívoco; ela sugere que o Ministro da Defesa (Botelho Moniz) e o Ministro do Exército (Almeida Fernandes) nada fizeram pelo Ultramar e deixaram com o seu desleixo chegar-se ao “15 de Março” e que teve que os substituir; ora tudo se passou ao contrário, como dissemos, e o descuido fora dele. Desta forma, lança as culpas para os ministros demitidos, oculta a sua inacção senão mesmo desleixo e evita a responsabilidade pelo Massacre de 15 de Março;
 
- Com a demora inexplicável, o Governo português não só deixou ocorrer o Massacre, como a subversão passou da fase de terrorismo à guerrilha, em muito pouco tempo; demos todo o tempo à UPA. Em termos militares foi um erro gravíssimo e quando as tropas partiram para Angola em força já era tarde e só havia que esperar o agravamento da situação;
 
- Uma quadrícula de poucos batalhões no Norte, a partir de meados de 1960, teria evitado que o Massacre de 15 de Março assumisse as proporções que teve e a iniciativa ficava nas nossas mãos; não o fizemos, com as consequências conhecidas.
 
* Conferência proferida no Núcleo de Castelo Branco da Liga dos Combatentes, em 23 de Setembro de 2010.
**     Tenente-coronel de Artilharia. Licenciado em História. Sócio Efectivo da Revista Militar.
 
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