Nº 2512 - Maio de 2011
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

Cartas de Cabul

 
 
 
Cartas de Cabul, da autoria do Tenente-coronel Nuno Lemos Pires, é uma colectânea de Cartas que são como que relatos e reflexões de impressões, rotinas e sentimentos, neste caso vividos num país distante que a quase todos nós, enquanto cidadãos, pouco ou nada diz a não ser que é um local de violência, que inclusive a Portugueses já custou vidas, para além de muitos anónimos perigos, mas onde ouvimos dizer que ali se joga uma “cartada” importante para a segurança internacional. Sendo assim, importante é, de certeza, saber o que ali se faz e como o faz o nosso pessoal, os nossos soldados.
 
Para quem não seja militar, as Cartas de Lemos Pires podem ser uma descoberta do que é sê-lo nos dias de hoje. É que continua a ter-se uma ideia (errada) de que só é questão militar “destruir” ou “impedir que se destrua” quando, em sociedades como a nossa, a Portuguesa, o instrumento militar é uma forma de assegurar ou criar a existência de um ambiente seguro, para que outros actores, outros agentes, actuem para permitir o desenvolvimento, o progresso, a satisfação de necessidades básicas, a criação de um modo de vida, que sendo o próprio e escolhido por cada um de acordo com as suas raízes, tenha a dignidade humana como valor soberano e inquestionável.
 
Uma das fases deste processo em zonas de conflito, e de que o Afeganistão actual é um exemplo, é a de “mentoring”, de assessorar, a criação de um Exército, uma força regular, nativa, própria, ligada à terra e às gentes dessa terra. Quase sempre essa fase é a consequência de um período de maior agressividade e violência bélica onde o objectivo é garantir um conjunto de condições mínimo para que seja possível a sua execução.
Nesse longínquo Afeganistão, Portugal participou e participa responsavelmente. Primeiro durante mais de três anos com uma Força de Reacção Rápida, pronta para actuar, sem quaisquer limitações, onde o Comandante NATO do TO considerasse necessário. Fizemo-lo bem! Ultimamente, apoiando a criação de Unidades Regulares Afegãs. Fazemo-lo em vários níveis, sendo um deles, e tão só, assessorando a Cabul Capital Division, a unidade operacional afegã mais importante e a responsável pela segurança da capital Cabul e das regiões limítrofes. É aí que se desenrola o registo do Tenente-coronel Lemos Pires.
 
E o seu livro de Cartas é, de uma forma emotiva, extremamente humana, de leitura fácil, um exemplo didáctico de como essa assessoria se deve fazer. Lemos Pires falou, conversou, aconselhou, ouviu, ajudou a tomar decisões a homens, líderes naturais e que fazem a guerra há mais de 30 anos! Os resultados … bons, parecem ser bons, mas para isso há efectivamente que ler as suas Cartas.
 
É notória, do princípio ao fim, a forma como, e usando as palavras do Senhor General António Barrento, no prefácio que fez ao livro, “se expõe”, pois escreve e descreve sentimentos: os que nutre pela família, os que manifesta quando se deixa emocionar pelos meninos e meninas que vão à escola (saberá quem nunca teve a oportunidade de ter visto o que é essa alegria e o que isso significa de coragem para fazerem o percurso de suas casas para a escola e com um sorriso aberto e esperançoso?) e o modo como vive intensamente o desbravar de burocracias e barreiras para conseguir um remédio, um agasalho ou comida … para que os seus assessorados possam aparecer junto das suas gentes como agentes de segurança, apoio e de confiança. Essa “exposição” é talvez um dos grandes exemplos do que é ser-se hoje militar e comandante.
 
Da mesma forma que é necessário saber planear e conduzir uma operação de grande exigência, gerindo o emprego de sofisticados vectores de destruição, é necessário compreender que o importante não reside apenas na eficácia possível de atingir com esses sistemas de armas mas também na formação do Homem que os utiliza. Se essa formação for boa a violência será só a suficiente para garantir o cumprimento da missão. E esta é uma mensagem clara nas Cartas!
 
Outro aspecto que transparece nas Cartas e sem o explicitar, o que parece de acordo com a intenção de actuação, é a forma cuidada e discreta como transmitiu os seus pareceres e conselhos ao general que assessorava, sem se evidenciar, deixando o protagonismo a quem de facto se pretende que o tenha. E repare-se que a diferença no procedimento é claramente entendida quando o seu interlocutor lhe confessa que “a última vez que tinha tentado levar um mentor a uma determinada população esta tinha «corrido» com ele”, o que não aconteceu ao Tenente-coronel Lemos Pires. Como fazer para que assim seja é o que a narrativa, de uma forma despretensiosa, como se de uma conversa de amigos se tratasse, consegue fazê-lo.
 
Daí que a acuidade subtil, mas assertiva, do Prof. Doutor Marques Guedes proponha que a forma como estas missões são desempenhadas e, principalmente, preparadas, deva ser de um conhecimento mais alargado, particularmente a entidades com responsabilidades de decisão noutras áreas em que também se movimenta a grande estratégia. Há pouco tempo atrás, a propósito de uma conferência sobre a NATO no Pós-Lisboa, na nossa Assembleia da República, dizia o actual SACEUR, Almirante James Stavridis, duma forma pedagógica para os assistentes e por cada vez que fazia uma referência à necessidade de fazer convergir os efeitos de todos os meios utilizados para exercer o poder, que não só o militar, “This is compreehensive approach.” Lemos Pires, no final de cada uma das Cartas publicadas poderia também pôr, para que todos soubessem, “This is compreehensive approach.”
 
Considero no livro duas etapas importantes. Uma em que vê, anota, medita, compara com a história, uma das especialidades do autor, mas em que parece não se sentir ainda suficientemente informado para opinar. A partir de determinada altura o discurso parece ser outro. Diria que se encerrou um período e começa outro. Digo eu que o conhecimento da situação e das pessoas com quem lida eram maiores, que a confiança se tinha estabelecido e então começam a aparecer os conceitos a que nesta nova tipologia de conflitos é preciso apostar na segurança das populações, criar condições para o desenvolvimento social e económico, serem as forças afegãs que têm de garantir a segurança, superar as dificuldades de conduzir uma acção de contra-subversão, conduzida por uma coligação e de 43 nações, partilhar a informação, criar sistemas de informações, integrar acções das forças regulares com milícias locais, interagir com as ONG, organizações internacionais, etc.. Então, já temos o “expert” de condução de operações militares, ao nível operacional, a falar com o Chefe de Estado-Maior da Única Divisão Operacional do Exército Afegão e a transmitir-lhe todo o saber de experiência feito.
 
No livro de Cartas e nas sábias anotações, do Prof. Doutor Marques Guedes, há uma outra perspectiva que não pode deixar de se realçar: a obra pode ter uma função didáctica importante para análise em situações idênticas. E isso também tem a ver com comportamentos de outros actores:
 
- A desilusão que é, quando se está longe, vermos a nossa televisão internacional. Que provincianismo!
 
- Onde estamos nós afinal? - É legitimo que perguntem os camaradas espalhados por vários cantos do mundo, em missões com risco e na defesa dos interesses de Portugal.
 
- E também é legítima a pergunta - será que o nosso povo não precisa de saber o que se passa no mundo?
 
- A forma organizada, séria, como determinados responsáveis políticos se dirigem aos soldados dos seus países (e refiro-me à carta onde relata a visita do Presidente Obama ao Afeganistão e como a eles se dirigiu). Diz que parece uma ordem de operações; a mensagem é clara como nas missões militares: “preocupamo-nos convosco, com as vossas famílias; vocês estão a servir o País” e o sentimento como é expressa essa relação “our man and women in uniform”.
 
- O papel da imprensa e a diferença quando ela é feita de forma verdadeira, descomprometida, com qualidade.
 
O Tenente-coronel Lemos Pires fez muito bem em não esquecer nos seus escritos que todo este trabalho e todo o ambiente que permitiu o discernimento e a tranquilidade de espírito necessários para passar a escrito estas experiências é fruto, também, de um trabalho de equipa e da orientação firme e competente do Comandante da sua Operational Mentor and Liasion Team, o Coronel de Infantaria Pára-quedista José Manuel Lopes dos Santos Correia. E isso fica-lhe muito bem, pois é um facto que serviram de forma brilhante o Exército e o País!
 
Foi um gosto e uma honra para mim ter feito a apresentação das Cartas de Cabul e faço votos para que muitos as leiam porque com elas muito aprenderão.
 
Tenente-general Mário de Oliveira Cardoso
Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército
 
Nota da Redacção: A Revista Militar agradece a recensão da obra, ao Tenente-general Mário de Oliveira Cardoso, e o volume que foi ofertado para a Biblioteca, à Editora Tribuna da História.
 
 

As Invasões Napoleónicas - Desde a Ida da Família Real para o Brasil às Linhas de Torres

 
 
 
As Invasões Napoleónicas - Desde a Ida da Família Real para o Brasil às Linhas de Torres, do Coronel José Custódio Madaleno Geraldo, é uma obra sobre as Invasões Francesas, realizada a partir da dissertação do autor no mestrado em História Militar, organizado pela Academia Militar e pela Universidade dos Açores.
 
O título e o subtítulo da publicação são, por si próprios, elucidativos do conteúdo e do período histórico a tratar. No entanto, concomitantemente, o título põe uma questão interessante, que não sei se o Autor quis levantar quando o escolheu e que é a de considerar a Guerra das Laranjas nelas incluídas. O Autor não fala neste conflito, podendo dizer que o não faz porque o período em causa está definido pelo subtítulo, mas julgo importante termos em consideração que por trás da Guerra das Laranjas está, sem sombra de dúvida, Napoleão, apesar do ataque se ter efectuado com forças espanholas às ordens de Godoy.
 
Está hoje na ordem do dia nos meios académicos a discussão da tese do Prof. Doutor António Pedro Vicente de que a Primeira Invasão Francesa foi a Guerra das Laranjas, o que alguns põem em causa por esta ter sido feita por espanhóis e outros por ela não ter as mesmas causas das ocorridas posteriormente. Tal discussão não tem sentido ao substituir-se «Invasões Francesas» por «Invasões Napoleónicas», pois é indubitável a superintendência napoleónica na Guerra das Laranjas.
 
O livro está organizado em cinco capítulos: no primeiro são tratadas as relações diplomáticas anteriores às Invasões, com algumas incursões «poéticas» à demência de D. Maria I ou ao casamento atribulado de D. João e D. Carlota Joaquina, bem como a transferência da Capital para o Rio de Janeiro, os problemas que a transferência provocou, a reorganização social e do Estado ou, ainda, a conquista da Guiana Francesa, no segundo é analisada a invasão comandada por Junot, no terceiro a invasão sob o comando de Soul, no quarto é tratada a invasão comandada por Massena e, finalmente, no quinto, ainda dentro da mesma agressão napoleónica, é dissecada com algum pormenor a obra de arquitectura militar normalmente designada como Linhas de Torres Vedras, nomeadamente a sua construção, ocupação e custo/eficácia.
 
Ao corpo do texto seguem-se vários e importantes apêndices que justificam muito daquilo que se foi dizendo no texto, como sejam, a Convenção Secreta de 1807 entre Portugal e a Grâ-Bretanha, a Memória Militar Sobre o Terreno ao Norte de Lisboa, do Major Neves da Costa, entregue em Maio de 1809, e os acrescentos e notas que o mesmo autor lhes fez em 1814, documento manuscrito e integralmente fac-similado, o Programa das Comemorações do Primeiro Centenário da Guerra Peninsular, a Relação das Obras de Fortificação das Linhas de Torres Vedras, e o Quadro das Obras com indicação da localização, cota do terreno e guarnição em Infantaria e Artilharia de cada uma delas.
 
A estes valiosos documentos que o Autor disponibiliza aos leitores, juntou-lhe também dezoito mapas, um ortofotomapa e dezanove plantas, do Instituto Geográfico do Exército, muito esclarecedores e difíceis de encontrar disponíveis para consulta dos interessados. Acresce ainda a tudo isto uma bibliografia que, não sendo exaustiva, contém 170 entradas, incluindo fontes manuscritas e endereços electrónicos sobre a matéria, o que pode ser uma boa ajuda aos que quiserem desenvolver os seus conhecimentos relativos a este período histórico.
 
Depois deste esboço sobre a organização, resta-me fazer alguns comentários sobre a forma e o conteúdo. Quanto à forma, parece-me claro que o Autor não consegue escapar à sua veia poética e, por isso, mesmo estando a escrever em prosa, ela não deixa de transparecer neste texto, desenvolvendo aspectos mais atractivos à sua sensibilidade mesmo quando a base documental que os apoia possa não ser de grande valor científico. Complementarmente, o Autor utiliza uma linguagem de fácil percepção ao grande público não especializado que, apoiado pelos excelentes apêndices, mapas, plantas e ortofotomapas, pode, assim, quase sentir-se no meio da acção descrita. O resultado final é, no entanto, muitíssimo agradável tornando a leitura fácil, lendo-se esta obra como se de um romance se tratasse.
 
Relativamente ao conteúdo, ele é o resultado de uma investigação intensiva cientificamente levada a cabo para um trabalho académico, como é uma tese de mestrado. Ora, é este facto que torna o romance de que falávamos no parágrafo anterior na obra académica e científica que ele também é. E assim, parafraseando o prefaciador da obra, o General Martins Barrento, eu diria que o conteúdo deste livro é em si mesmo “uma justa homenagem aos nossos compatriotas que sofreram a ocupação e a violenta repressão, ou que de armas na mão, combateram valorosamente os invasores, tendo dessa forma contribuído para os expulsar da Península, para os levar para lá dos Pirinéus. Uns e outros agarraram a esperança da Libertação e Independência do Reino, ainda que conseguidas com grandes sacrifícios”, homenagem que se justifica plenamente quando estamos a celebrar o 2º Centenário destes acontecimentos, enquanto atravessamos uma crise de identidade e de valores em muito semelhante à que, em 1807, os nossos antepassados viveram.
 
Esta obra pode contribuir para que, como então, os portugueses se revejam na sua própria História e sejam capazes de reencontrar hoje os valores que ao longo dela sempre demonstraram. É por tudo quanto acabo de referir que, muito sinceramente, dou os parabéns ao Autor. Mas não quero deixar de considerar extensivos esses parabéns à Editora Âncora, pela qualidade gráfica desta edição e, principalmente, pela coragem de se abalançar a editar obras de História Militar.
 
Tenente-general Alexandre de Sousa Pinto
Presidente da CPHM e Sócio Efectivo da Revista Militar
 
Nota da Redacção: A Revista Militar agradece ao autor o volume que foi ofertado para a Biblioteca.
 
 
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Alexandre de Sousa Pinto

Sócio efetivo da Revista Militar. Presidente da CPHM.

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