Nº 2451 - Abril de 2006
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Afeganistão - Uma análise Geopolítica: Reflexões sobre questões da Paz e da Guerra
Tenente-coronel
Paulo Luís Antunes Baptista
“…mas preciso de saber o que é facto e o que é ficção mais do que preciso da certeza do mito. Só a verdade pode responder às perguntas que, durante anos, nem sequer me atrevi a formular ao meu coração. O Afeganistão dos nossos mitos existe realmente? Ainda somos afegãos? E se não sou afegã, o que sou?
Há um último lugar para visitar. Enquanto subo a íngreme encosta em direcção ao planalto de Paghman, o medo apodera-se de mim. Se os jardins mágicos de que o meu pai me falou nunca existiram, então uma parte de mim é igualmente uma mentira.
Encontro-me num planalto desolado. Não há pássaros a cantar. As árvores de fruto foram abatidas para lenha. Os canais de irrigação foram bombardeados e o solo outrora fértil é árido. Toda a minha vida transportei no coração uma imagem deste lugar. Toda a minha vida foi este o lugar onde mais desejei estar.
O solo está semeado de minas e dos escombros do seu antigo esplendor: os ladrilhos de mosaico azul, os cursos de água interrompidos e as fontes secas. Este mito, pelo menos, era verdadeiro: na minha imaginação, posso reconstruir o que deve ter sido outrora um jardim mágico…
Elevando-se sobre mim, imutáveis e eternas, estão as montanhas. Lá em baixo, no vale, uma cidade de torres e minaretes cintila ao sol do fim da tarde. Cabul jan - amada Cabul - estende-se como uma jóia aos meus pés. Sei agora que a sua beleza é uma ilusão: vista de perto, a cidade está em ruínas, tão dilacerada e desfeita como este jardim. Perdi a idade de ouro. Cheguei dema­siado tarde.
Demorei mais de vinte anos a chegar aqui. Enquanto viajava, o lugar que inspirou o mito foi destruído. Mas é só pelo mito - o mapa de histórias que a minha família desenhou para mim tantos anos antes - que sou capaz de reconhecer a beleza nestas ruínas.”

 

 
(Saira Shah, 2003, A filha do contador de histórias, pp. 53-54)
 
 
1.  Introdução
 
O presente texto foi elaborado no âmbito da parte lectiva do Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais, tendo visado uma reflexão sobre o caso do Afeganistão, tendo em conta os contributos teóricos transmitidos, quer nas cadeiras quer nos seminários integrantes do referido Mestrado.
 
A aplicação num caso concreto, dos conceitos discutidos e apreendidos durante as aulas, pareceu adequada e pertinente, permitindo não somente a sua integração num contexto complexo, mas também ilustrar a sua pertinência na análise de um caso real.
 
A escolha concreta do caso do Afeganistão prendeu-se com as seguintes razões:
• Em primeiro lugar, trata-se de um país conhecido pela sua grande oposição à colonização dos vários impérios, sendo por essa razão um foco de conflitualidade permanente.
 
• Devido à sua localização geográfica, importância económica e potencial factor de instabilidade e insegurança, sobretudo no que diz respeito ao transporte do petróleo e gás natural, à produção e tráfico de droga e ao fundamentalismo islâmico associado ao terrorismo internacional, os países vizinhos, bem como as super potências, foram estabelecendo estratégias próprias e antagónicas ao longo do tempo relativamente ao Afeganistão.
 
• No passado recente, a situação no Afeganistão tem reflectido as grandes evoluções geopolíticas e geo-estratégicas que se têm manifestado a nível global, desde a invasão soviética e correspondente conflitualidade no âmbito da Guerra Fria, até à actualidade, marcada por uma nova insta­bilidade global, com uma multiplicidade de conflitos intra-estatais, étnicos e religiosos, com particular destaque para o terrorismo internacional, revelado de uma forma brutal através dos atentados do 11 de Setembro de 2001, em que os Estados Unidos emergem, de forma mais categórica como única super potência global. Neste contexto, o próprio Afeganistão foi transformado no primeiro palco, pós 11 de Setembro, para o combate ao terrorismo internacional.
 
• Actualmente, o país apresenta-se como um exemplo em que se tenta efectuar uma reconstrução do país e da paz, em coexistência simultânea com a guerra em partes consideráveis do território. Assiste-se, neste contexto, a uma intervenção de grandes organizações internacionais, como a NATO, a ONU e diversas ONG, procurando não somente apoiar a transição para a paz, mas também introduzir o valor da democracia frequentemente associado à promoção da segurança e paz internas e internacionais, contudo não aceites facilmente pela globalidade da sociedade afegã.
 
• Realça-se o facto de Portugal participar activamente nas referidas intervenções internacionais, nomeadamente através da integração de forças militares do Exército e da Força Aérea nas Forças da ISAF (International Security Assistance Force), sob o comando e controlo da NATO.
 
O presente texto discute mais pormenorizadamente os aspectos atrás focados, bem como um conjunto considerado pertinente de conceitos e tópicos teóricos, aplicáveis neste caso concreto. Reflectirá especificamente, em primeiro lugar, sobre as condicionantes da situação existente e do consequente potencial de conflito ou crise associada, tanto tendo em conta os antecedentes históricos, como os factores económicos, políticos, étnicos e religiosos. Seguidamente, apresentar-se-á uma breve análise geoestratégica e geopolítica da situação existente no país. Será feita também uma reflexão sobre a legitimidade da intervenção da União Soviética e dos EUA no país, bem como sobre a situação dos direitos humanos e a reforma judicial em curso. Por fim, procurar-se-á realizar uma breve análise da situação de conflito actualmente existente no território, numa perspectiva das Relações Internacionais, abordando aspectos quer de natureza militar quer de promoção da paz. O Relatório terminará com a apresentação de algumas conclusões resultantes dos factos e das ideias anteriormente expostas.
 
O trabalho assenta, por um lado, numa revisão bibliográfica, incidindo sobre literatura e documentos, tanto sugeridos pelos docentes do Mestrado, como pesquisados e seleccionados pelo autor do Relatório, tendo em conta a sua pertinência para o tema. Por outro lado, procura apresentar uma reflexão pessoal e crítica acerca da temática discutida.
 
 
2.  Delimitação da Situação do Afeganistão - Conflitualidade nos últimos 25 anos
 
Correia (2002: 42-43) extraiu três critérios para caracterizar uma situação de conflito:
1.  Tratar-se de um afrontamento intencional, pressupondo uma vontade racional, sendo por isso um fenómeno humano e social;
2.  opondo seres humanos;
3.  e implicando o uso da coacção, violenta ou não, sugerindo patamares de conflito diversos.
 
Neste âmbito, o autor distingue quatro graus de conflito, onde o patamar da “não-guerra”, correspondendo a uma situação de crise, sem recurso a meios de coacção violentos é a situação menos gravosa e a “guerra violenta” o extremo oposto, sendo a tipificação do grau de conflito, dependente também da estratégia utilizada, das motivações subjacentes, bem como dos resultados do conflito, só determinável a posteriori (Correia, 2002: 43-44).
 
Segundo Lorena (2004:10), “hoje, depois de 23 anos de guerra ininterrupta, o Afeganistão está oficialmente em paz, ainda que várias guerras continuem a ser travadas nos seus 650 000 quilómetros quadrados de território, ensanduichado entre o Médio Oriente, a Ásia Central e o sub-continente indiano”.
Segundo Gaspar (2001), antes do conflito actualmente existente no território, houveram quatro guerras nos últimos vinte e cinco anos. Para iniciar a sua descrição, poderemos recuar à invasão soviética de Dezembro de 1979, decorrente do golpe comunista de 1978 e da luta entre as duas facções do partido comunista afegão. Este facto pode ser considerado um episódio da guerra-fria, tendo congregado contra essa invasão todas as forças nacio­nalistas afegãs, assim como a maioria dos países islâmicos e num quadro geopolítico mais alargado, provocado a aproximação dos Estados Unidos com a China e as alianças com o Paquistão, Egipto e a Arábia Saudita. Essa guerra terminaria oito anos depois, em 18 de Fevereiro de 1988 e marcaria o princípio da guerra civil no Afeganistão e o princípio do fim da União Soviética (Gaspar, 2001). A segunda guerra foi uma guerra ideológica, entre o regime comunista local e as forças da guerrilha afegã e as brigadas internacionais islâmicas organizadas na Al-Qaeda, as quais imprimiram ao conflito uma marca ideológica, como uma luta entre o comunismo e o fundamentalismo islâmico. A terceira guerra foi uma guerra civil entre as várias facções afegãs da Aliança do Norte1, que após a sua fragmentação levou a confrontos pelo poder entre senhores da guerra2 que detinham o seu próprio território e mantinham os seus apoios externos. A quarta guerra foi uma guerra religiosa, na medida em que o programa dos Taliban, se traduzia numa imposição de um regime radical assente numa versão arcaica e primitiva do religião islâmica e acentuada pela transformação do Afeganistão numa santuário dos movimentos pan-islâmicos ligados às redes da Al-Qaeda. Actualmente está em curso a última guerra que para os Estados Unidos é justificada como o primeiro passo contra o terrorismo internacional e que não se sabe quando acabará, dada a histórica incapacidade das Nações Unidas nos últimos anos em contrariar as divisões entre as facções afegãs e as interferências constantes dos seus aliados externos.
 
 
3.  Condicionantes da Situação Actual do Afeganistão
 
Para a compreensão de qualquer situação de conflito actual ou potencial bem como do pós-conflito é indispensável analisar um conjunto de factores que o condicionam, já que geralmente um conflito não se confina a uma ocorrência isolada, mas resulta de um complexo sistema de causas e determinantes interdependentes. Esta análise permite um enquadramento dos acontecimentos num contexto abrangente e uma identificação de uma multiplicidade de causalidades que, em conjunto, desenharam o mapa do conflito, sendo responsáveis pelo seu surgimento, pelo formato que tem adquirido bem como pelas perspectivas futuras que se podem adivinhar.
 
De acordo com Ross (2003) e Le Billon (2001) o surgimento de conflitos está associado prioritariamente a matérias-primas, espaços geográficos ex­tensos, história conflitual recente e oportunidade dos seguintes factores: baixa escolaridade, alta densidade populacional, degradação económica, factores étnicos e religiosos. Destacamos para a análise do presente caso, os contextos geográfico, histórico, económico, político, religioso, étnico e cultural.
 
3.1.     Contexto Geográfico
 
O Afeganistão é um país interior, situado na Ásia Central, geograficamente localizado no Hemisfério Norte, não tendo acesso ao mar e fazendo fronteira com o Irão (936 km), Turquemenistão (744 km), Uzbequistão (137 km), Tadjiquistão (1206 km), China (76 km) e Paquistão (2430 km) (ver mapa no Anexo 1). Tem um território de 652 090 km2, com altitudes que variam entre os 270 e os 7500 m. O clima é árido, com invernos muito frios e verões quentes nas depressões montanhosas, sendo as temperaturas extremas, variando entre os -30ºC e os +40ºC. Encontra-se dividido em 32 províncias que se subdividem em 329 distritos provinciais, sendo a sua capital Cabul (A Enciclopédia, 2004: 168-171).
 
A combinação de uma topografia áspera e rugosa, montanhas altas e extremas condições climatéricas, em simultâneo com o seu fraco desenvolvimento económico, serve não somente para isolar o país internacionalmente, mas também para tornar o seu povo inacessível para esforços de governação e controlo centralizado (Medler, 2005).
 
3.2.     Antecedentes Históricos
 
As primeiras referências à área actualmente conhecida como Afeganistão, encontram-se nas escrituras zoroastristas, feitas durante o reinado de Ciro, o Grande (530 a.C.). Os pequenos reinos tribais aí presentes opuseram-se tradicionalmente aos impérios colonizadores, o que também se verificou no reinado de Dário, o Grande (550-486 a.C.). A fundação do país bem como das cidades mais importantes (Cabul, Herat e Kandahar) é atribuída a Alexandre Magno (330-323 a.C.), que conquistou com o exército grego o Afeganistão e a Ásia Central tendo a seguir invadido a India. Os Gregos legaram uma civilização greco-budista que foi a única fusão histórica entre culturas europeias e asiáticas (Rashid, 2000). O Afeganistão era assim, na altura predominantemente budista, tendo sido convertido ao islamismo no contexto da sua expansão no Médio Oriente, associado aos movimentos dos exércitos árabes, a partir de meados do século VII (Rashid, 2000; Marsden, 2002).
 
No final do século X instalou-se a dinastia Gaznávida (de 997 a 1186), de turcos do norte, tendo suscitado um renascimento artístico e intelectual. Contudo, foi Gengiscão (1162-1227) que atravessou em 1219 o Afeganistão com as suas hordas de Mongóis e veio a destruir esta civilização, deixando atrás de si os Hazaras actuais, resultantes da mistura entre os Mongóis e as tribos locais. As devastações mongólicas intensificaram a fragmentação da região (Rashid, 2000; Marsden, 2002).
 
Foi só sob o domínio de Tamerlão (1336-1405), descendente de Gengiscão, que se conseguiu o controlo unificado do território, no âmbito de um novo império que se estendia da Rússia e da Pérsia à Turquia e à Índia. O reinado de Tamerlão, e de seus sucessores, notoriamente sangrento, tornaram Herat na capital, e é designado o período Timúrida tendo durado até 1506. A fusão entre a cultura central asiática e persa foi um grande legado para o futuro do Afeganistão (Marsden, 2002).
 
Após o desaparecimento da dinastia Timúrida, o Afeganistão foi dividido entre os impérios Mongol e Safávide, de origem persa. Os dois impérios combateram-se e tiveram que simultaneamente enfrentar revoltas de diversas tribos afegãs (Marsden, 2002).
 
Após a queda do Império Mongol, precipita-se a colonialização da Índia, levando a lutas entre Franceses, Ingleses e o Império Russo que procura uma saída para o Oceano Índico. É neste contexto, que se enquadram as três guerras Anglo-afegãs. A primeira guerra (1839-1842) foi um fracasso para o Reino Unido que tentou importar o seu estilo colonial no país, suscitando uma insurreição armada. A segunda guerra com o Reino Unido, que surgiu devido a um conflito de influências entre Ingleses e Russos no Afeganistão, terminava em 1879 com o tratado de Gandamak. Este permitiu aos Ingleses a instalação de uma delegação permanente em Cabul e a orientação da política externa afegã segundo os seus princípios. As contínuas tensões entre a Rússia e a Inglaterra resultam num conjunto de acordos celebrados em 1891 e 1895-1896 que fixaram as actuais fronteiras do norte do Afeganistão. A linha Durand, acordada em 1893, separava o território do Afeganistão da Índia britânica (actualmente Paquistão), dividindo a população pashtun a meio. Em 1907, a Rússia desentende-se com o Afeganistão e a Grã-bretanha passa a controlar todo o país sob a forma de protectorado. O emir Habib Allah ficou célebre pelo seu sucesso em manter a Grã-bretanha e a Rússia afastadas e preservar a independência e a neutralidade do Afeganistão mesmo durante a primeira Guerra Mundial. Após a sua morte em 1919 desencadeia-se a terceira guerra Anglo-afegã que termina com o Tratado de Rawalpindi em Agosto de 1919 reconhecendo a independência do Afeganistão (Marsden, 2002; Rashid, 2000; Ejército Español, 2003).
 
A primeira acção após a independência foi o reconhecimento do governo que surgiu da Revolução Russa, tendo sido enviadas missões igualmente à Europa e aos EUA para o estabelecimento de relações diplomáticas. Termi­naram assim as pretensões britânicas de colonizar o Afeganistão, tornando-se este facto uma importante fonte de orgulho afegão na invencibilidade do país (Marsden, 2002).
O rei Amanullah Khan (1923-1929) e seus sucessores tentaram em vão europeizar rapidamente o país, tendo tido a oposição dos chefes muçulmanos e das tribos conservadoras. Em 1964 foi instaurada, com Zahir Shah, a mo­narquia constitucional que resultou num período, simultaneamente de reformas e tolerância3, como de instabilidade política e crescente radicalismo. Nessa altura tinha bastante importância o PDPA (Partido Democrático do Povo Afegão) com duas facções, a Khalq (povo) de Taraki, com predomínio das etnias tadjique e hazara e que ambicionava uma revolução operária-camponesa, e a facção Parcham (bandeira) de Babrak Karmal, com predomínio pashtun e que pretendia a união popular com a participação da classe média, intelectuais e militares. Pouco depois, surgiu uma tendência política dos tradicionalistas islâmicos, sob liderança de Rabbani (tadjique), da Associação Islâmica (Jámiat-e Islami) e Hekmatyar (pashtun), chefe do Partido Islâmico (Herzb-e Islami) que pretendiam contrariar o carácter laico do PPDA. Em 1973 Mohammed Daud Khan, com o apoio do PPDA, efectua um golpe militar e instaura a república. A sua dependência dos militares pró-soviéticos predispõem-no contra os tradicionalistas islâmicos, adoptando medidas autoritárias também contra os liberais. Em Março de 1978 um novo golpe realizado por militares da facção Parcham do PPDA, leva à proclamação da República Democrática do Afeganistão, sob chefia de Mohammed Taraki, levando a um novo governo onde as duas facções do PPDA se integravam (Marsden, 2002; Ejército Español, 2003).
 
Devido à conflitualidade persistente no próprio governo, a Rússia que não queria perder a sua influência no país, invadiu o Afeganistão em 1979 e entregou o poder a Babrak Karmal. Contudo, a invasão russa com cerca de 70 000 homens levou a uma forte contestação mundial. As forças soviéticas permaneceram no Afeganistão até Fevereiro de 1989, como consequência tanto de factores internos, sobretudo relacionados com a Perestroika de Gorbatchev e o consequente colapso da URSS em 1991, como por força da guerrilha dos mujahidin4, apoiada pelos EUA, pelo Irão e pela Arábia Saudita (A Enciclopédia, 2004; Ejército Español, 2003; Marsden, 2002).
 
O então presidente pro-comunista Najibullah, manteve-se no poder até 1992, apesar da falta de apoio soviético e do apoio contínuo do Irão e da Arábia Saudita aos mujahidin. Em 1992 inicia-se uma guerra civil entre as várias facções mujahidin, resultando no aparecimento em 1995 no sul do Afeganistão do movimento taliban5. Estes guerrilheiros, formados nas escolas corânicas entre os refugiados no Paquistão, tinham como objectivo a criação de um governo islâmico unido no Afeganistão e contavam com apoios significativos entre a população, sobretudo na etnia pashtun. Os Taliban vieram a conquistar sucessivamente áreas do território, contra a resistência militar conhecida como Aliança do Norte, impondo um sistema islamista ortodoxo e autoritário (Ejército Español, 2003; Marsden, 2002).
 
Foi, contudo, na sequência do 11 de Setembro de 2001 e da recusa dos Taliban em entregar o chefe da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, considerado o responsável pelos atentados terroristas em Nova York, por parte dos EUA, que se iniciou a derrota deste movimento extremista. Assim, os EUA lançaram uma operação militar designada de “Justiça Infinita”, posteriormente denominada de “Liberdade Duradoura”, situação essa aproveitada pelas forças opositoras aos Taliban, reunidas na Aliança do Norte, que conseguiram em três meses estabelecer o domínio do país. Os Acordos de Bona, consagrados pela Resolução 1383 da ONU, de 06Dec01, reflectem o reconhecimento internacional do novo governo afegão. As Resoluções da ONU 1386, de 20Dec01, e 1444, de 27Nov02, determinam, para além disso, o emprego de uma Força Internacional de Assistência e Segurança (ISAF). Esta força, constituída maioritariamente por forças da NATO coexiste com uma força a sul, constituída por uma coligação entre os EUA e a Inglaterra (CFC-A)6, que continua a luta contra forças terroristas da Al-Qaeda, taliban e HIG (Hezb-E-Islami Gulbuddin) (Ejército Español, 2003; Marsden, 2002; Gresh et al., 2003).
 
3.3.     Factores Económicos
 
A compreensão das condicionantes económicas do conflito é fundamental, na medida em que os recursos existentes assumem actualmente uma posição primordial para a ocorrência de conflitos, tanto internos como externos (Collier e Hoffer, 2004). Estes autores consideram até que as questões étnicas e sociais fracturantes, são factores mais de mobilização do que motivações genuínas, já que a ambição principal dos actores é geralmente de ordem material. Neste contexto, a dimensão económica pode até ser entendida como parte integrante fundamental da nova geopolítica, especificamente como uma das três dimensões centrais (eco-política, demo-política e geopolítica), se vista como uma “interpretação do poder ao serviço da resolução dos grandes problemas da geografia económica” (Pezarat Correia, 2002: 289).
 
O Afeganistão é dos países mais pobres do mundo, com uma economia de subsistência baseada principalmente na agricultura, a qual contudo sofreu uma degradação, devido à destruição das estruturas de irrigação durante o conflito com a URSS, estando dependente da ajuda internacional para a restauração da base agrícola (Marsden, 2002).
 
Actualmente, o país encontra-se muito dependente de ajuda financeira externa para a sua recuperação pós-guerra, recebendo da Comunidade Internacional 8.2 biliões de dólares para a reconstrução entre 2004 e 2007 (Report of the UN Secretary-General to the General Assembly Security Council, 2004). A dimensão do apoio externo entre 2004 e 2010 reflecte-se na estimativa da proporção de 1:8 entre os rendimentos internos e o financia­mento externo (Suhrke, Harpviken e Strand, 2004: 9). Roy (2004: 17) aponta, neste contexto, para o paradoxo de uma nação tão ávida pela independência recorrer de uma forma tão sistemática a ajuda financeira externa, considerada indispensável por praticamente todos os regimes.
O país não possui recursos de matéria-prima importantes. Contudo, a sua posição geográfica poderia ser explorada economicamente para a passagem de gás natural e petróleo, por parte dos respectivos países produtores (Irão, Rússia, Arábia Saudita) e mercados mais interessados (Paquistão, Índia, China, EUA) (Nunes, 2003a; Nunes, 2003b).
 
O negócio da droga constitui um factor económico ilícito, responsável por uma economia clandestina, assente em crime e violência e simultaneamente seu catalizador. Contudo, constitui provavelmente o factor mais relevante na economia nacional, proporcionando receitas que se estimam superiores ao orçamento do Estado afegão (Roy, 2004). A economia afegã associada à droga foi estimada correspondendo a cerca de 60% do PIB em 2003 (Afghanistan Opium Survey, 2004, citado por UNAMA, 2005). Efectivamente, a destruição das bases e infra-estruturas agrícolas e civis ao longo das várias guerras, levou muitas vezes ao cultivo da papoila, como último e único recurso de subsistência para os agricultores (Medler, 2005). De acordo com Bosco (2005), o país produz 80% do ópio mundial7, permitindo um financiamento ilícito dos “senhores da guerra”. Considerando o vácuo de poder que se mantém em muitas áreas isoladas, devido às já referidas condições inóspitas do território, estes “senhores da guerra” acabam por dominar e controlar estas actividades, cobrando taxas aos traficantes e tornando-se o mais relevante elemento de poder (Medler, 2005: 278-280).
 
Neste contexto, as Nações Unidas temem que a economia do país seja completamente dominada pelo tráfico de droga, ameaçando os esforços de reconstrução, o estabelecimento de um Estado de direito, impedindo a tentativa séria de desarmamento, e ameaçando assim, a longo prazo, a paz e a estabilidade na região. Por outro lado, os esforços por parte do governo afegão não parecem ter sido ainda eficazes no combate a este flagelo, continuando a actividade de cultivo de papoila, o processamento de ópio em heroína e morfina bem como o tráfico das substâncias ilícitas (Report of the UN Secretary-General to the General Assembly Security Council, 2004: 11-12). Contudo, será difícil para o governo Afegão antagonizar realmente as pessoas envolvidas no cultivo da papoila, dada a dependência do país destes rendimentos (Medler, 2005: 278-280) e a falta de alternativas credíveis para os agricultores (UNAMA, 2005: 6) 8.
 
No presente caso, a situação económica do país, não foi o principal motivo do conflito violento mais recente entre os EUA e o regime taliban, mas tem motivado ou determinado alguns dos conflitos anteriores e resulta, certa­mente, num factor desestabilizador e de difícil conciliação com o objectivo da reconstrução da paz pós-conflito.
 
3.4.     Factores Políticos
 
Pretende-se, neste sub-capítulo, reflectir sobre um conjunto de aspectos políticos, institucionais e de governação que, actualmente, determinam as condições para a evolução futura do país, entre a paz e a guerra.
 
Após mais de vinte anos de guerra ou guerra civil, as instituições estatais são frágeis, não tendo o país muita experiência democrática. Neste contexto, os Afegãos têm percepções contraditórias em relação ao papel político que os partidos possam assumir para a estabilização da democracia e da sociedade, já que associam as palavras hizb (partido), harakat (movimento) e tehrik (caminho) a uma história violenta, tanto dos partidos da esquerda como islâmicos (International Crisis Group, 2005: 11). Desta forma, o sucesso da democracia, depende tanto do apoio internacional, como da confiança popular no sistema democrático, assim como também dos mecanismos legais, administrativos e constitucionais necessários para viabilizar um sistema multipartidário democrático (International Crisis Group, 2005: 4).
 
O voto considerado pela população nas zonas rurais é um acto sobretudo colectivo. Existem nestas zonas estruturas para-democráticas tradicionais, por alguns consideradas de parlamentos locais, as assim chamadas Jirgaque contudo não reflectem um verdadeiro espírito parlamentar. Todos podem participar na discussão, mas deve emergir um consenso, que geralmente reflecte o poder de alguns notáveis e representantes influentes da tribo, não implicando uma discussão ideológica (Roy, 2004: 56-57). A Loya Jirga (Grande Conselho), uma estrutura tradicional afegã que se iniciou em 1709, que inclui todas as pessoas influentes do país, representando todos os poderes (político, económico, militar e religioso) assim como todas as etnias e as duas facções do Islão (sunita e xiita), é usada para as decisões mais importantes, tendo em vista a tomada e implementação de decisões de carácter nacional, sendo uma extrapolação do modelo tribal e local da Jirga, continua a ser actualmente relevante no Afeganistão10.(Ejercito español, 2003:2-22 a 2-24; Roy, 2004: 57; Carriço, 2004: 1114).
 
O espectro político continua a ser, assim, fortemente determinado por estruturas étnicas, tribais e de clãs (Roy, 2004: 20-28). Neste contexto, o próprio Estado tem desenvolvido políticas de aliança com as grandes famílias locais, de todas as etnias, as quais podem sobreviver a diferenças ideológicas (Roy, 2004: 25). Actualmente, os Afegãos vêem os partidos e líderes políticos com desconfiança, já que depois da retirada soviética e durante a Guerra Civil as entidades políticas afegãs no poder ou na oposição funcionaram mais como facções armadas do que como partidos e as lealdades não eram baseadas em preocupações ideológicas ou programas partidários, mas em interesses regionais, étnicos ou pessoais (International Crisis Group, 2005: 3).
 
Como já referido anteriormente (3.3), os antigos “senhores da guerra” mantêm posições de poder em alguns territórios, onde têm instaurado regimes opressivos com exércitos privados e com uma base de apoio popular e são actualmente mais influentes no contexto do narcotráfico (Bosco, 2005; Medler, 2005). Contudo, este poder é relativamente fragmentado, limitado a deter­minadas regiões, tendo perdido relevância, na medida em que os conflitos bélicos têm desaparecido (Roy, 2004: 39-40).
 
Neste contexto, a actual administração do Afeganistão, liderada pelo presidente Hamid Karzai, eleito em Outubro de 2004, com clara maioria, apresenta-se como relativamente fraca, evidenciando claras dificuldades em integrar todas as facções ou em garantir a segurança no território nacional (International Crisis Group, 2004: 5-7; Report of the UN Secretary-General to the General Assembly Security Council, 2004: 6-8).
 
O aumento da violência por parte das forças insurgentes, nomeadamente pertencentes à rede da Al-Qaeda e do HIG (ver ponto 3.2.), antes das eleições parlamentares de 18 de Setembro 2005 (International Crisis Group, 2004), demonstra que a garantia da segurança em todo o território afegão é uma tarefa de difícil realização e que o processo de democratização enfrentará ainda muitos entraves.
 
Por outro lado, mantém-se a conflitualidade que opõe o Estado e a Comunidade Internacional, aos Taliban e ao que resta da estrutura da Al-Qaeda no país. Neste quadro, a Comunidade Internacional está interessada em reconstruir um Estado central estável, democrático e pró-ocidental, antes de mais para evitar o regresso dos Taliban e a transformação do país num santuário para o terrorismo (Roy, 2004: 37-38). A democratização e reconstrução do país, não é assim na realidade, um objectivo genuíno, mas antes um meio para atingir aquela finalidade, mantendo-se o Afeganistão dependente da boa vontade da Comunidade Internacional quer no apoio financeiro como também no aspecto da segurança11.
 
No âmbito da reforma do sector de segurança do Afeganistão, a Comunidade Internacional apoia o governo afegão, concretamente, através de acções de combate ao narcotráfico, na reforma judicial, no desarmamento, desmobilização e reintegração das antigas forças de guerrilha (DDR), e no treino das Forças Armadas e da polícia afegãs (UNAMA, 2005; Report of the UN Secretary-General to the General Assembly Security Council, 2004).
 
De qualquer modo, a realização de eleições parlamentares12, assim como o apoio da Comunidade Internacional, não constituem garantias para a democracia e paz no país, sendo necessário o desenvolvimento de uma verdadeira cultura pacífica de participação cívica e de oposição, bem como um combate efectivo aos “senhores da guerra” e aos novos “patrões da droga”. Por outro lado, será necessário criar reais alternativas à economia ilegal do narcotráfico que possam sustentar o desenvolvimento de um país destruído pela guerra, permitindo uma aposta nas infra-estruturas básicas, na cultura e educação da população.
 
3.5.     Contexto Socio-demográfico
 
Como o conflito e a paz são fenómenos humanos e sociais, a análise da base populacional é de relevância evidente para a compreensão da respectiva situação de um país.
 
Apesar de ainda não se ter efectuado um novo censo desde 1979, estimativas de 2004 apontam para uma população de cerca de 28,5 milhões de habitantes em Julho de 2004, com uma estrutura etária bastante jovem (44.7% com idades inferiores aos 14 anos e 52.9% entre os 15 e os 64 anos), rondando a idade média os 17.5 anos. A taxa de crescimento da população estima-se em 4.9% (sem considerar, contudo, os efeitos da guerra recente), a taxa de natalidade ronda os 47 nascimentos/1 000 habitantes, reflectindo uma taxa de fertilidade de 6.8 crianças/mulher, e a taxa de mortalidade os 21 falecimentos/1 000 habitantes, sendo a expectativa de vida, à nascença, de cerca de 42.5 anos.
 
A taxa líquida de migração estima-se em 23 migrantes/1 000 habitantes (http://www.cia.gov/cia/publications/factbook/geos/af.html;
 
 
fp/research/projects/southasia/afghanistanindex.pdf; in: Roy, 2004). Durante as conflitualidades dos últimos 25 anos, o país sofreu uma erradicação da elite educada, tendo muitos emigrado, formando uma vasta diáspora no estrangeiro, que ainda não mostra uma forte intenção de regressar ao país natal (Roy, 2004). Por outro lado, alguns dos retornados pertencentes a esta elite estão empregues em organizações internacionais ou no governo, recebendo elevados salários, pagos pelos países doadores, mas que poderão não permanecer no país, após a retirada da presença internacional (Rubin et al., 2005: 28). Os refugiados mais modestos são responsáveis por um movimento de retornados dos países vizinhos. De acordo com dados da UNHCR (citado por Rubin et al., 2005: 28), cerca de 3.5 milhões de refugiados regressaram ao Afeganistão desde 2002. Internamente há milhares de pessoas deslocadas no país, recentemente devido a limpezas étnicas das comunidades pashtun por parte da Aliança do Norte em 2001-2002 e que actualmente estão alojados em campos de deslocados na área de Kandahar. Contudo, no passado tem havido sempre disputas étnicas entre pashtuns e não-pashtuns, bem como violência pela posse de terra entre várias tribos em diversas províncias, sendo estes conflitos muitas vezes associados a períodos de guerra civil, com motivações políticas e não somente étnicas. Actualmente, o regresso dos refugiados e deslocados continua a gerar muitas disputas pela posse da terra e da água, reforçando a permanência do conflito inter-étnico (Rubin et al., 2005: 28-30).
 
Os níveis de educação e de saúde são actualmente muito frágeis, quer pela destruição das respectivas infra-estruturas, quer pela escassez de recursos humanos qualificados (Roy, 2004). Em 2000, durante o regime taliban, somente 32% das crianças afegãs com idade escolar frequentavam a escola e destes, só 3% eram raparigas. Em 2003, a UNICEF estima a percentagem de frequência escolar em 56%, um terço da qual representando raparigas. A taxa de literacia é actualmente de 36%, sendo 19% relativamente a mulheres (Rubin et al., 2005: 15). A UNICEF registou em 2002 a mais elevada taxa de mortalidade maternal no mundo, com 1.6%, uma taxa de mortalidade infantil de 16.5%, associada com uma taxa de 25.7% para crianças com idades inferiores aos cinco anos, ambas elas das mais elevadas do mundo (Rubin et al., 2005: 16-17).
 
3.6.     Contexto Religioso, Étnico e Cultural
 
Griffiths (1981, citado por Arantes Jr., 2002: 46) observou que os problemas mais críticos do país, durante o conflito internacional, “não eram as suas relações com as outras nações nem a sua religião; eram internos e diziam respeito à oposição entre a unidade nacional e a presença de minorias, entre tradicionalismo e modernização, entre métodos políticos de carácter sofisti­cado e velhas lealdades tribais”. O quadro étnico é complexo, sendo as etnias principais as seguintes (Roy, 2004; Arantes Jr., 2002; Marsden, 2002, ver mapa Anexo 2):
 
• Os Pashtuns (entre 45% e 51% da população) são a etnia mais numerosa e ocupam a área mais extensa, ao sul de Kandahar, possuindo uma língua própria, havendo tantos pashtuns no lado paquistanês da fron­teira, como no Afeganistão. Os pashtuns são bastante tradicionais e tribais, com códigos de conduta muito rígidos, entre os quais as estruturas locais Jirgas (ver ponto 3.4.) são particularmente visíveis.
 
• Os Tadjiques (sunitas, incluindo os Hymaks; 25-30% da população), os Uzebeques (7-10% da população), os Turcomenos (menos de 2% da população) ocupam uma ampla faixa no norte junto das fronteiras das repúblicas centro-asiáticas.
 
• Os Hazaras (xiitas; 10-15% da população) ocupam o centro do país e acentuam a complexidade do quadro afegão, quer pelas suas caracte­rísticas físicas quer pelo facto de serem uma minoria xiita13 num país maioritariamente sunita14, tendo sido, por isso marginalizados política e economicamente ao longo da história. Este grupo é bastante conser­vador, embora com códigos de conduta menos rígidos que os pashtuns.
 
• Grupos menores, ou populações nómadas, como os Quirguizes, os Balouches, os nouristanis, os pamiris, representam menos de 2% da população, por cada comunidade e espraiam-se pelas fronteiras inter­nacionais, testemunhos da arbitrariedade do antigo poder colonial.
 
 
As diferentes etnias convivem em Cabul, na qual tradicionalmente os Pashtuns controlavam o poder, sendo os Tadjiques a elite intelectual e os Hazaras os de condição mais humilde.
 
Segundo Roy (2004:26) a etnicidade é mais uma construção política que uma realidade antropológica, já que a etnia constitui raramente a identidade principal de um afegão, que coloca em primeiro plano as suas origens locais ou religiosas ou ainda a sua língua, que é bastante mais lata do que a etnia. Além disso, as hierarquias sociais e culturais são mais importantes que as hierarquias étnicas, tanto no interior dos grupos como no relacionamento entre os grupos. Também a pertença à tribo é mais determinante para os alinhamentos políticos do que a identidade étnica. A etnia não constitui assim o primeiro nível de lealdade e de pertença política, no entanto ela está correlacionada com outro tipo de factores determinantes, quer económicos quer políticos, quando se torna necessário negociar com o poder central e neste caso, surge claramente uma solidariedade étnica, um lobbying que transcende a tribo e o grupo.
 
Actualmente, as tensões entre os maiores grupos étnicos perturbam o ambiente de segurança no país. Assim, e apesar da Administração Karzai ter tentado garantir uma diversidade étnica no seio do governo, é evidente que a divisão de posições chave governamentais não é inteiramente represen­tativa, resultando num sentimento de não envolvimento das populações pashtun no futuro do país. A tensão étnica verifica-se também entre os tadjiques e os hazaras, especialmente em Cabul e noutros centros urbanos, onde aqueles são acusados de aproveitar as suas posições dominantes nos sectores da polícia e justiça, atingindo as populações Hazaras (Jane’s Intelligence Review, 2004: 39).
 
A língua mais falada é um dialecto persa, chamado Dari/Farsi (43%), seguido do Pashtun (42%), a língua da raiz turca (11%) e outros dialectos, num total de mais de setenta diferentes, sendo contudo as línguas oficiais o Pashtun e o Dari.
 
A religião tem assumido um papel muito relevante na sociedade e política afegãs, estando muito associada também às conflitualidades das últimas décadas. O islamismo sunita é a fé dominante, havendo duas minorias xiitas importantes: os já referidos hazaras e os ismaílis do Nordeste (Marsden, 2002). No entanto, não se pode considerar o Afeganistão como um estado islâmico. Por outro lado, o Islão pode ser visto como um factor de mobilização reactiva contra a presença estrangeira, tendo os mujahiddin 15 sunitas, contudo, um discurso mais anti-americano que propriamente islamista. Por seu lado, os xiitas, profundamente influenciados e divididos pela Revolução Islâmica do Irão, foram unificados tendo em vista uma oposição coesa ao bloco sunita (Roy, 2004:52-53).
 
É neste quadro que se verifica a emergência súbita dos Taliban, enquanto movimento religioso e étnico, com ambições políticas, em 1994, que se deve, de acordo com Arantes, Jr. (2002: 54), “ao patrocínio paquistanês, à relutância das facções em combatê-los e à exasperação popular com o fracasso dos Mujahidin na tarefa da assegurar a paz e melhores condições de vida”. Antes de 1994, o Afeganistão estava num Estado de virtual desintegração, estando o país dividido em feudos de “senhores da guerra”, os quais “tinham combatido, mudado de lado e voltado a combater numa desconcertante série de alianças, traições e de carnificinas” (Rashid, 2000: 43). Concretamente, quando Najibullah foi derrubado em 1992 pelos Mujahidin que tomaram Cabul, seguiu-se uma guerra civil, que se pode explicar pelo facto do poder central ter recaído, pela primeira vez em 300 anos, não para as facções pashtun, mas para as forças tadjiques, melhor organizadas e mais unidas, por Burhanuddin Rabbani e seu comandante militar Ahmad Xá Massud, e para as forças uzebeques do Norte, comandadas pelo General Dostum.
 
Para Roy (2004, 53-54) os Taliban não devem ser vistos como islamistas, no sentido de terem como objectivo em primeiro lugar a revolução islâmica, mas antes como um movimento neo-fundamentalista, efectivamente preo­cupados com a sharia 16, num quadro de liberdade económica, e não tanto com a constituição de um verdadeiro Estado islâmico. Surgem de um cruzamento de duas correntes:
 
• a rede das madrassas, apoiadas pelo Paquistão e financiadas pela Arábia Saudita que introduziram a doutrina islamista wahhabista 17;
 
• a reafirmação de uma identidade pashtun em bases mais religiosas do que étnico-nacionais.
 
 
2.7.       Outras Condicionantes
               
 
Existe ainda um conjunto de outros factores que actualmente condicionam a situação política e as relações internacionais do Estado afegão, onde se inserem factores como as alterações climáticas, a evolução tecnológica, os efeitos da globalização e, sobretudo numa perspectiva de latente conflitualidade, o terrorismo à escala global.
 
Assim, as alterações climáticas resultantes do efeito de estufa apontam para condições climatéricas cada vez mais extremas e que na Ásia Central e do Sul deixam antever problemas associados a secas cada vez mais frequentes e prolongada (Gresh et al, 2003: 58-59), resultando num quadro em que a actividade agrícola terá que enfrentar dificuldades acrescidas, exigindo adaptações ao nível do cultivo e colocando em perigo a própria agricultura como base de sustentação da economia nacional. Neste contexto, Kupchinsky (2005) aponta para a escassez da água como um importante motivo de conflitos futuros, afectando sobretudo regiões, onde a pressão populacional tende a aumentar, como no caso da Índia e China, países próximos do Afeganistão. O autor destaca ainda o perigo de países com uma intervenção governamental fraca e mal coordenada sofrerem mais as consequências nefastas da escassez da água, como evidenciado para o caso do Afeganistão. Este problema tenderá a acentuar-se com a provável desertificação de grandes regiões da Ásia central e do Sul, devido às já referidas mudanças climatéricas.
 
Por outro lado, o país não poderá ficar alheio ao progresso tecnológico, sob pena de hipotecar ainda mais o desenvolvimento económico futuro. Contudo, só será uma oportunidade real para o país na medida em que consiga introduzir um nível de educação e formação suficientemente avan­çado, dependendo de um esforço de longo-prazo, muito provavelmente só atingível com substancial apoio internacional. Trata-se, aliás, de um dos factores fundamentais que estão associados à capacidade de um país se integrar positivamente na globalização, tanto a nível económico como social e cultural, em detrimento de uma subjugação dos recursos do país ao jogo dos poderes dominantes.
 
Neste contexto, a globalização, entendida por Santos (2001:32), como “...fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” que resulta simultaneamente num “...vasto campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemónicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro...” (idem:33), representa claramente outro factor fundamental para a compreensão da situação actual do Afeganistão, sendo os interesses nacionais cada vez mais ligados a interesses não somente regionais, mas também globais, como será também discutido no próximo capítulo.
 
O terrorismo internacional, que também pode ser visto como um fenómeno da globalização, é, sem dúvida, um dos aspectos mais relevantes na compreensão das conflitualidades recentes e das preocupações actuais da Comunidade Internacional. Como visto anteriormente, as ligações entre os Taliban e a rede terrorista global de Bin Laden, a Al-Qaeda, motivada pelo fundamentalismo islâmico e simultaneamente por um sentimento de anti-americanismo, porventura resultante de uma globalização percebida como excessivamente hegemónica, baseada nos padrões da cultura america­na-ocidental, economicamente exploradora e pouco respeitadora das especificidades dos países culturalmente diferentes, foram uma das causas do último conflito no Afeganistão, sendo o combate às estruturas que ainda se mantêm no país um dos principais objectivos das intervenções da Comunidade Internacional.
 
 
4.  Análise Geopolítica e Geoestratégica
 
Segundo o Dicionário das Relações Internacionais (Sousa, 2005), e fazendo referência a Boniface, Kjellen e Haushofer, entende-se por Geopolítica “o método explicativo que relaciona os factores de poder do Estado com a política internacional e o meio geográfico”, combinando a ciência política com a geografia, na medida em que estuda as relações entre a política externa e o quadro geográfico no qual ela se exerce. Geoestratégia, por outro lado, surge, de acordo com o mesmo Dicionário, como elemento ou parte da Geopolítica, “da qual se distingue fundamentalmente, quer pela sua especialização no estudo dos problemas ligados à relação entre a geografia e o uso da coacção em situações de conflito, quer pelo seu método próprio, afim do método estratégico.”
Nesta perspectiva, procurar-se-á, neste capítulo, analisar de uma forma sucinta quais as avaliações geopolíticas e geoestratégicas e a sua consequente evolução, efectuadas pelos diferentes actores no quadro específico do Afeganistão, desde a invasão da URSS até à actualidade. Refirimo-nos especificamente aos Estados Unidos da América, à Rússia, ao Paquistão, ao Irão, à Índia, à China, e aos países vizinhos da Ásia Central (Turquemenistão, Uzbequistão e Tadjisquistão), bem como à União Europeia.
 
A estabilidade do Afeganistão esteve sempre intimamente ligada à acção dos outros actores estratégicos, quer no século XIX quando o poder sobre o país foi disputado entre a Inglaterra e a Rússia, quer durante a guerra fria com a invasão da URSS, quer mais recentemente com o 11/9. Este acontecimento teve indiscutivelmente uma importância estratégica, na medida em que os EUA voltaram a entrar no Afeganistão, provocando mudanças na arquitectura política e de segurança na região. Neste quadro, o facto dos países vizinhos do Afeganistão não pertencerem a uma organização de segurança comum, torna a região ainda mais instável.
 
Em primeiro lugar, lembra-se a posição estratégica que o Afeganistão assume na Ásia de Sul, fazendo a ligação entre a Ásia Central, a Ásia de Sul e o Médio Oriente. Como referido anteriormente, esta posição geográfica é relevante para a exploração e para o comércio de alguns recursos económicos, sobretudo o petróleo e o gás natural, mas confere simultaneamente uma posição de destaque para o controlo de movimentos ilegais, como o tráfico de drogas, armas e a expansão do terrorismo numa área geográfica, onde o movimento islamista tem bases importantes.
 
Em segundo lugar, importa referir que no Afeganistão se reflectem os efeitos dos dois acontecimentos recentes, designados por Tomé (2004, 2005) de “detonadores” no novo recorte geopolítico mundial, na medida em que produziram profundas mutações no sistema internacional. Este autor refere-se concretamente ao fim da Guerra-fria de que resulta o fim do confronto bipolar e ao 11 de Setembro, que justifica, na perspectiva dos EUA, a guerra contra o terrorismo (Tomé, 2004, 2005).
 
Os EUA aproveitaram efectivamente estes dois acontecimentos para expandirem o seu alcance estratégico (Tomé, 2004:223) e são actualmente a única superpotência internacional em todos os domínios do poder, tanto a nível militar, político e estratégico, como em termos económicos, tecnológicos, científicos e culturais, sendo esta hegemonia ainda acentuada pela implosão da URSS. Neste quadro, que Tomé (2004) denomina de uni-multipolar, os EUA apresentam-se como a única potência capaz de intervir onde, quando e como quiser, fixando os seus próprios limites em termos de actuação, em função dos seus próprios interesses e ideais18. A sua estratégia passa por não permitir que surja outra potência de igual poderio e por instaurar uma verdadeira pax americana mundial actuando como reguladora da ordem mundial, podendo até substituir-se aos organismos internacionais e mecanismos multilaterais (Tomé, 2005:10). O apoio dos EUA aos mujahiddin durante a ocupação soviética enquadrava-se num cenário de domínio de grandes áreas de influência por parte do bloco soviético e dos EUA no contexto da Guerra Fria, tendo o Afeganistão perdido interesse estratégico após a retirada soviética e a implosão da URSS. Com esta modificação radical do xadrez geopolítico e geoestratégico mundial, mudaram também as prioridades da superpotência americana, centrando-se posteriormente mais nos problemas da proliferação nuclear no Sul da Ásia (Arantes, Jr. 2002:50). Outra mudança substancial ocorreu com o 11 de Setembro de 2001, após o qual os EUA adoptaram uma nova estratégia de segurança nacional, onde anunciaram o combate às novas ameaças com acções preventivas e preemptivas19 e através de coligações de vontade20 (Tomé, 2004). Estas acções poderiam assim ocorrer em todo o mundo, legitimando a intervenção militar americana a nível internacional, com base na defesa da segurança nacional, tendo sido a ameaça terrorista identificada como global. A actuação americana no Afeganistão, enquadrada nesta nova estratégia, pode ser interpretada como simultaneamente punitiva, preventiva e preemptiva, na medida em que pretendia punir o regime taliban pelo seu apoio dado a Osama Bin Laden e à organização Al-Qaeda, preventiva porque os EUA visam estabelecer-se na região com carácter duradouro, tendo em vista o controlo do terrorismo islâmico, e também preemptiva, já que após o 11 de Setembro de 2001 o governo americano se considerou iminente e directamente ameaçado num quadro de legítima defesa, para intervir militarmente contra os seus supostos inimigos. A política internacional dos EUA pode ser vista como representante do Realismo político nas Relações Internacionais21, já que as posições assumidas perante determinados Estados e eventos em determinadas alturas são decididas, de forma independente de posições internacionais anteriores ou simultâneas face a assuntos e actores semelhantes, não havendo uma estratégia assente em princípios claros e estáticos, orientadores da política externa. No caso do Afeganistão, é interessante realçar o apoio dos EUA dado aos combatentes islamistas mujahiddin contra as forças soviéticas, que contrasta com a sua luta actual contra os movimentos fundamentalistas islâmicos no mesmo país.
 
A Rússia e antiga URSS, na altura a segunda superpotência mundial, tinha também interesses geoestratégicos associados à Guerra Fria, procurando assegurar a influência soviética no continente sul-asiático, já que a URSS se sentiu ameaçada pelos movimentos islâmicos, pela possibilidade dos EUA estabelecerem uma presença militar no Afeganistão, se as condições o permitissem, bem como por uma crescente aproximação entre Washington e Pequim (Marsden, 2002:45-46). Durante a época taliban, a Rússia defendeu nos organismos internacionais sanções contra esse regime, já que via esse movimento como centro de uma rede de grupos islâmicos que poria em risco a segurança da Rússia na Tchechénia, no Daguestão e na Ásia Central (através do movimento islâmico do Uzebequistão). Na região, a Rússia assume uma posição ambígua, ambicionando ser, por um lado, protector da Ásia Central dos fundamentalismos islâmicos, e no Afeganistão protector dos Tadjiques face aos Pashtuns e Uzebeques (Rubin et al, 2001:26-27). Depois do 11 de Setembro de 2001, a Rússia pretendeu ter um papel importante no futuro do Afeganistão, tanto em termos económicos como de segurança, apesar de não ter tido grande sucesso, pelo que actualmente é um actor de pouca visibilidade, mantendo no entanto preocupações relativas aos seus grupos protegidos, referidos anteriormente. A prioridade actual da liderança da Rússia parece ser a sua relação com a Europa, pelo que a perda de influência temporária no Afeganistão se configura aceitável (Suhrke et al., 2004:54).
 
O Paquistão é o país com mais e mais profundas ligações ao Afeganistão. Após a invasão da URSS perdeu um pouco a sua influência neste país, tendo sido contudo recuperada com a sua retirada (Rubin et al., 2001). O interesse geoestratégico do Paquistão no Afeganistão explica-se, por um lado, pelo facto de um movimento dos pashtuns, maioritários no Afeganistão, e uma minoria importante no Paquistão, ter ambicionado, sobretudo entre 1949 e 1967, a criação de um Estado independente que se chamaria Pashtunistão (Ejército Español, 2003)22. Por outro lado, o posicionamento forte da Índia na Ásia Central, nomeadamente através da sua colaboração antiga com a Rússia (foi um apoiante chave do denominado regime comunista do Afeganistão - 1978/1992) e relacionamento emergente com o Irão, reflectindo-se também no Afeganistão pós-taliban23, constitui uma ameaça na perspectiva paquistanesa, dado o antagonismo crónico entre os dois países, fundamentalmente devido à questão de Caxemira24. Desde 1994, o governo paquistanês apoiou o regime dos Taliban, com apoio militar, treino e recrutamento de estudantes das madrassas nos dois países (Rubin et al., 2001). Depois do 11 de Setembro de 2001, o General Musharaf, presidente do Paquistão, tornou-se o aliado central dos EUA na sua guerra contra o terrorismo, reforçando assim a sua posição doméstica, mas sobretudo a sua legitimidade internacional. Contudo, esta mudança estratégica de Musharaf, que reflecte uma atitude de realismo político (ver nota de rodapé nº 20), é amplamente contestada por partes importantes das instituições daquele país, nomeadamente no serviço de informações (Inter Services Intelligence), no Exército e nalguns partidos religiosos, os quais alegadamente apoiam a Al’ Qaeda, os líderes taliban e os activistas islamistas no Paquistão (Suhrke et al., 2004:53). O problema de fundo é no entanto que os Taliban dispõem sempre de um santuário no Paquistão, porque não houve verdadeiramente a definição de uma nova política para o Afeganistão, apesar da linha oficialmente assumida (Roy, 2004).
 
A política do Irão em relação ao Afeganistão tem mudado ao longo do tempo, tendo sido ditada por uma combinação de solidariedade com os xiitas, preocupação com o acesso à Ásia Central, com a posição estratégica dos EUA na região, bem como pela rivalidade com a Arábia Saudita. O governo do Irão tem assumido um confronto com o regime dos Taliban enquanto maior fornecedor de armas da United Front for the Salvation of Afghanistan 25, continuando a combater o narcotráfico que desestabiliza a região. Existe ainda um conflito entre os dois países relativo às águas do rio Helmand (Rubin et. al, 2001:26). Para Roy (2004:62-63), os dois objectivos principais que regem a política do Irão em relação ao Afeganistão, são a protecção da minoria xiita e a intenção de proteger a sua fronteira por uma espécie de zona tampão, impedindo uma presença militar estrangeira e o tráfico de droga. Apesar do Irão ter uma hostilidade visceral em relação aos EUA, os dois países têm, no Afeganistão, os mesmos inimigos, os Taliban, apresentando outra faceta do realismo político neste quadro específico26. Contudo, para o Irão, o Afeganistão não constitui nenhuma prioridade na sua política externa (Roy, 2004:64).
 
A China desempenhou um papel importante, no entanto desconhecido, como um fornecedor de armas aos mujahidin durante a ocupação soviética do Afeganistão, tendo cooperado até à sua retirada com os EUA, Paquistão e Arábia Saudita. Após o 11 de Setembro de 2001 a sua posição relativamente ao Afeganistão tem sido extremamente cautelosa mantendo uma presença menor basicamente comercial.
 
As três repúblicas da Ásia Central que fazem fronteira com o Afeganistão a norte são o Tadjiquistão, o Turquemenistão e o Uzebequistão. Estas repúblicas, que emergiram do colapso da União Soviética, têm sofrido graves crises sociais e económicas, assim como grandes desastres ambientais que afectaram a saúde da sua população, sendo dessa forma, aparentemente fácil a propagação da religião e fundamentalismo islâmico27. Alguns observadores, no entanto, consideram que um forte movimento islâmico não terá hipóteses de se instalar na região, dada a diversidade de grupos étnicos, tribais e familiares resultantes da política de migrações internas de Estaline (Marsden, 2002:177-178). Além disso, a Ásia Central foi sujeita a mudanças sociais e culturais importantes no período da União Soviética, reflectindo-se numa secularização da sociedade e na relativa igualdade entre os sexos, contrastando com a situação que se verificou no Afeganistão, caracterizada pelo seu isolamento e pela fragmentação do poder central.
 
De entre estas repúblicas, o Uzebequistão emerge actualmente como o principal aliado dos EUA, sendo também aquele que tem a maior população, se apresenta como economicamente mais importante, tendo herdado infra-estruturas militares significativas, aquando da intervenção soviética no Afeganistão (Suhrke et al. 2004:54). Por outro lado, existe no seu seio uma ameaça islâmica fundamentalista, o denominado Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIL), cuja missão inicial era opor-se ao ditador pró-soviético Islam Karimov, tendo evoluído posteriormente no sentido de uma aliança com o líder taliban, Mullah Omar, levando a uma fusão com a Al-Qaeda e assumindo uma postura anti-ocidental e anti-americana (Tomé, 2004:157), aumentando assim a amea­ça do terrorismo islâmico na região.
 
O Turquemenistão orienta a sua política externa sobretudo pelas suas necessidades económicas, nomeadamente no que diz respeito à construção de condutas que permitam o acesso do seu gás e petróleo aos mercados exteriores, assim se explicando a sua prudência demonstrada face ao regime taliban (Marsden, 2002). O Tadjiquistão tem mantido uma relação compli­cada com o Afeganistão, devido à sua guerra civil que provocou o deslocamento de cerca de 100 000 tadjiques para o Afeganistão nos finais de 1992, inicio de 1993. O Tadjiquistão apoiou a Aliança do Norte, basicamente devido ao facto de os Taliban terem maltratado a minoria tadjique. Ultimamente o governo Karzai tem procurado estabelecer relações mais próximas com este vizinho do Norte para capitalizar os benefícios económicos potenciais associados ao comércio (US Department of State, 2005:10).
 
É de destacar, que a cooperação regional entre os vizinhos do Afeganistão, é efectivamente difícil, já que existe uma multiplicidade de interesses, que se reflectem quer na política externa quer nas questões de segurança, e muitos dos quais não estão directamente relacionados com o Afeganistão, consti­tuindo ainda diferenças de culturas políticas e de sistemas administrativos um obstáculo a esta cooperação (Suhrke et al, 2004:54).
 
Por último, a União Europeia é importante realçar devido à participação militar de vários países deste bloco, incluindo Portugal, no âmbito da NATO e da ISAF, tendo simultaneamente em conta a relevância que se lhe atribui geopoliticamente. Contrariamente à questão do Iraque, há um consenso da comunidade Europeia sobre o Afeganistão. Assim, a intervenção militar foi considerada justificada porque o Afeganistão era realmente reconhecido como o santuário da Al-Qaeda que continua a ter uma forte presença na área, além do facto de haver um risco real do regresso do regime taliban (Roy, 2004: 64-65). Por outro lado, a própria União Europeia vê-se actualmente mais ameaçada pelo terrorismo internacional anti-ocidental, especialmente após os ataques de 11 de Março de 2004 em Madrid, pelo que a reconstrução e estabelecimento de uma autoridade central forte no Afeganistão poderá contribuir para um maior controlo desta ameaça.
 
É interessante observar que o Realismo político molda as posições geoestratégicas de vários Estados no seu relacionamento com o Afeganistão, o que fica perfeitamente visível através de uma análise behaviorista28 que permite contrapor o discurso político aos dados e factos da política internacional, evidenciando contradições e mudanças, dependentes das alterações circunstanciais, em detrimento de princípios aparentemente assumidos como seria de esperar numa perspectiva idealista29. Neste sentido, a real postura geopolítica pode, efectivamente, só ser compreendida posteriormente, já que as condicionantes futuras não podem ser antecipadas, o que limita este tipo de análise, tornando-a simultaneamente mais objectiva ou realista do que efectuar previsões assentes num discurso de intenções e supostas linhas orientadores da geopolítica de cada país.
 
Um dos problemas da postura realista assenta na sua visão porventura excessivamente individualista e de curto prazo e numa atitude de pessimismo e cepticismo acerca da condição humana. Sendo o Estado soberano o actor dominante, o mesmo não tem em conta o sistema de forças, agentes, interesses e problemas internacionais, que num novo quadro conceptual, numa visão transnacionalista, construtivista e tendencialmente mais idealista esta­riam presentes na altura da tomada de qualquer decisão, sendo esta, deste modo, menos unilateral e mais consensual, numa construção conjunta da realidade da política internacional. Esta lacuna da visão realista ficou bem clara na política efectiva dos EUA perante o Afeganistão nas últimas décadas. Assim, apoiaram os mujahiddin, inclusivamente o movimento de Osama Bin Laden, na luta contra a URSS, numa perspectiva de Guerra-fria, combate ao comunismo e supostamente de defesa da democracia ocidental. Desta forma, apoiaram na realidade forças anti-ocidentais e anti-americanas, fundamentalistas religiosos e pouco democráticos, que após a Guerra Fria se tornaram no principal inimigo deste ocidente democrático e destes EUA, acabando aqueles, perversamente, por combatê-los com as suas próprias armas. Este paradoxo ilustra bem a perspectiva ambígua, míope e contraproducente que uma política realista pode representar.
 
 
5.  Guerras Justas? 30
 
A reflexão sobre o conceito de Guerra Justa assenta na análise da legitimidade da guerra numa perspectiva de Direito Internacional31. Este é sem dúvida de mais difícil aplicação do que o Direito Interno, que é a essência do Estado soberano e que, tendo fontes e regras perfeitamente identificadas, lhe permite ser de mais fácil aplicação relativamente ao Direito Internacional. O facto de no caso do Direito Internacional, o Estado ser simultaneamente o autor e o destinatário das suas regras, torna muitas vezes complexa a sua aplicabilidade e legitimação. O Direito Internacional contemporâneo tem como pedra basilar a Carta das Nações Unidas, datada de 1945, tendo sido a partir daí e pela primeira vez na História, estabelecido o princípio geral da proibição da guerra, i.e. da ameaça ou do uso da força nas relações internacionais (Art.2º/Nº4), que passou a admitir apenas duas excepções: o direito natural da legítima defesa (art. 51º da Carta da ONU) e a das sanções aplicadas por via militar, após decisão do Conselho de Segurança, nos termos do cap. VII da Carta (arts. 39º e seg.) (Amaral, 2005:10; Teles, 2003:154).
 
A Teoria da Guerra Justa distingue-se, segundo Walzer (1977), por uma argumentação dupla. Por um lado, defende que a guerra se justifica por vezes, sendo no entanto esta proposta rejeitada pelos pacifistas. Por outro lado, sugere que qualquer acção bélica está sempre sujeita à crítica moral, sendo esta última proposta atacada pelos realistas. Há assim criticas a esta teoria, pois segundo alguns, quem defende a guerra justa está no fundo a moraliza-la, tornando o combate mais fácil, retirando-lhe o estigma que deveria estar sempre associado à violência provocada pela guerra. Contudo, a designação do termo guerra justa não deve ser entendida literalmente, pois significaria neste contexto “justificável, defensável ou moralmente necessária”. A outra crítica à guerra justa é que esta centra a sua atenção nas questões que a poderão justificar e não nas verdadeiras razões e causas da guerra (Walzer, 2004: 12-13).
 
O Report of the Secretary-General’s High-level Panel on Threats, Challenges and Change (2004), que define a estratégia a ser seguida pelas nações para uma segurança colectiva no século XXI, sublinha relativamente ao uso da força, que além dos critérios legais é necessário respeitar cinco critérios de legitimidade: a gravidade da ameaça, o objectivo do uso da força ser só o de colocar um fim à ameaça, ser o último recurso, ser proporcional e, por último, ser avaliado o balanço das consequências.
 
No caso do Afeganistão, propomo-nos analisar se e até que ponto se poderá falar em guerra justa, concretamente no caso da invasão da URSS em 1979, e mais recentemente nas represálias armadas levadas a cabo pelos EUA, devido à suspeição de o regime taliban proteger e dar guarida aos responsáveis da rede Al-Qaeda pelos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.
 
Relativamente à invasão do Afeganistão por parte da URSS, ela acontece decorrente da violenta cisão no Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA). Em 1978, Daoud foi derrubado e assassinado num golpe militar, orquestrado pelo PDPA, com possível apoio da URSS, e posterior­mente substituído por Taraki. A URSS tirou partido da ascensão deste partido ao poder, numa altura em que Moscovo temia que os islamistas no Afeganistão pudessem explorar qualquer ambivalência do regime do PDPA. Neste quadro concederam, num acordo com o governo de Cabul assinado em Dezembro de 1978, a possibilidade do seu apoio em caso de necessidade. A invasão do Afeganistão pelas forças soviéticas, iniciou-se assim em Dezembro de 1979, tendo resultado na morte do presidente Amin (que entretanto também substituíra Taraki, assassinado em Setembro de 1979), tendo sido colocado no poder um membro moderado do PDPA, Babrak Karmal (Marsden, 2002:44-46).
 
Esta sequência de acontecimentos, analisada no contexto da Guerra-fria, provocou alterações no sistema geoestratégico internacional, dado que, como já foi explicado, naquele enquadramento, qualquer movimento ou acto de uma das superpotências exigia uma resposta imediata e clara que mantivesse a relação de forças e de influência.
 
Alguns analistas, especialmente durante a guerra-fria, alegaram que o problema interno do Afeganistão era um assunto do âmbito do Estado soberano, o qual teria legitimidade para estabelecer acordos bilaterais com países amigos, tendo em vista a resolução do seu problema particular.
 
Importa contudo salientar, que o acto da invasão do Afeganistão por parte da URSS, foi indiscutivelmente uma violação do estipulado no Art.2º/Nº4 da Carta das Nações Unidas. Esse acto, foi inclusive fortemente condenado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, assim como por grande parte dos países islâmicos, entre os quais na primeira linha o Irão, o Paquistão, a Arábia Saudita e igualmente o Iraque (embora na altura próximo da URSS). Os EUA, em particular, reagiram vigorosamente, já que essa invasão punha um fim definitivo à détente 32 que caracterizou a década de 1970 (Boniface, 1997: 83)33. Neste sentido, pode-se entender que qualquer perturbação do equilíbrio existente entre as duas superpotências no âmbito da Guerra-fria (também ela passível de ser vista como uma forma de guerra)34, careceria também de legitimidade internacional.
 
Interessará discutir, em segundo lugar, a legitimidade das represálias armadas levadas a cabo pelos EUA como resposta à protecção conferida pelo Afeganistão taliban à rede terrorista de Osama Bin Laden. A administração Bush interpretou os ataques do 11 de Setembro como um acto de guerra contra os EUA, para o qual a retaliação militar foi julgada como a resposta mais apropriada. Esta interpretação definiu o Afeganistão como país a envolver nessa guerra em virtude de o governo taliban ter protegido e apoiado a Al-Qaeda, correspondendo nesta atitude a um “Estado Pária” 35. Walzer (2005:4) apoiou também esta posição, na medida em que considerou que o regime taliban forneceu à Al-Qaeda todas as vantagens da soberania, sobretudo uma base territorial para a preparação dos seus ataques. Contudo, esta visão não é consensual, na medida em que há quem defenda que os actos do 11 de Setembro deveriam ser conceptualizados em termos de “indivíduos contra indivíduos” e não numa perspectiva de “Estado contra Estado”, na medida em que nem os atacantes nem as vítimas eram repre­sentativos de um Estado (Archibugi e Young, 2002). Neste contexto poder-se-ia mais adequadamente falar em crimes e não em actos de guerra, com a correspondente resposta a ser dada pelos tribunais e não pelas Forças Armadas.
 
Teles (2003:155), por outro lado, considera que o recurso à força em legítima defesa, sendo proporcional aos seus objectivos, seria no caso do Afeganistão a detenção das pessoas alegadamente responsáveis pelos ataques terroristas do 11 de Setembro e a destruição de objectivos militares, entre os quais infra-estruturas, campos de treino e outras instalações utilizadas por terroristas. Desta forma Teles (2003:155) conclui que os actos para além destes objectivos poderão ser considerados como ilícitos, mesmo enquadrados na legítima defesa.
 
Como já visto anteriormente, apenas no caso de uma autorização colectiva por parte do Conselho de Segurança, poderiam ser tomadas medidas coercivas que envolvessem o uso da força armada, devendo apenas ser utilizadas no caso de ameaças ou rupturas da paz ou actos de agressão e com finalidade de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. No entanto, as resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança após os ataques do 11 de Setembro36 não autorizavam explicitamente o uso da força em sua resposta. Comum às resoluções acima referidas é, por outro lado, o reconhecimento ao direito inerente à legítima defesa (consagrado no artº 51 da Carta da ONU), individual ou colectiva, mas este facto não justifica necessariamente a autorização de uma acção militar contra o Afeganistão. Para considerar que havia lugar à legítima defesa, seria necessário definir o acto em questão como um ataque armado contra os EUA, o que foi o entendimento quer dos EUA quer da NATO que, pela primeira vez da sua história, invocaram o seu artº 5º que permite aos Estados membros desta organização, auxiliar outro Estado membro vítima de um ataque armado, vindo do exterior. Contudo não foi este o entendimento das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança não qualificou os actos terroristas como ataques armados mas sim somente como ameaças à paz e segurança internacionais, não autorizando explici­tamente o recurso à força. Por seu lado, o Congresso dos EUA tinha já autorizado, a 18 de Setembro, o presidente norte-americano a recorrer à força militar em auto-defesa preventiva e tinha invocado, numa carta dirigida ao Conselho de Segurança a 07 de Outubro de 2001 (data em que começaram os ataques ao Afeganistão), o acima referido artº 51 da Carta da ONU como justificativo da acção militar contra o Afeganistão (Teles, 2003:154-155).
 
Segundo Amaral (2005), há decisões do Conselho de Segurança da ONU que constituem verdadeira lei, tendo dado como exemplo a Resolução Nº 1386 (2001) que considerou como legitimando a retaliação americana contra os Taliban no Afeganistão, após o 11 de Setembro de 2001. Na verdade esta resolução autorizou a criação da International Security Assistance Force (ISAF), com poderes para recorrer a quaisquer meios para manter a segurança em Cabul, já não no âmbito do combate ao terrorismo, mas no estabele­ci­mento de uma autoridade interina no Afeganistão. Realmente poderá haver outro tipo de argumentação, como no caso atrás referido, que considere que existe uma legitimação da guerra quando há posteriormente uma autorização das Nações Unidas para manter a segurança, solicitar a reconstrução do país ou apoiar o governo entretanto constituído etc. Por outro lado, como lembra Teles (2003), houve até noutras ocasiões de retaliação perante actos terroristas37 a rejeição explícita do argumento da legítima defesa por parte do Conselho de Segurança, o que não aconteceu no caso do Afeganistão, reforçando a interpretação da legitimidade da intervenção americana. Na definição apresentada por Leandro (2005:127:154) e dadas as características enunciadas desta acção armada, poder-se-ia catalogá-la como legitimável, já que não se enquadra nas legítimas, mas também não se pode considerar como ilegítima.
 
Globalmente, podemos afirmar que a legitimidade das represálias armadas levadas a cabo pelos EUA contra o Afeganistão não é fácil de determinar. É verdade que houve um ataque contra os EUA, mas é difícil de defini-lo como “ataque armado”. Em segundo lugar também é discutível a justificação do ataque a um país e não à organização ou aos elementos efectivamente responsáveis pelo ataque, mesmo se esse país tivesse protegido a referida organi­zação. Adicionalmente não houve nenhuma resolução do Conselho de Segurança que autorizasse a intervenção americana no Afeganistão e assim legitimasse a intervenção americana.
 
Por outro lado, os EUA invocaram o direito à legitima defesa, também aceite pela NATO e pela União Europeia e nunca explicitamente contestado pelas Nações Unidas, que até aprovaram posteriormente uma resolução que autorizou o emprego de uma força mandatada pelas Nações Unidas (ISAF) para apoiar a manutenção da segurança em Cabul e posteriormente noutra áreas.
 
As dúvidas relativas à interpretação do artº 51 têm também de ser entendidas, face à nova realidade actualmente existente, que é manifestamente diversa relativamente à época da redacção da Carta das Nações Unidas. Neste contexto, parece assim legitimo admitir uma interpretação mais lata da Carta das Nações Unidas, considerando que houve um ataque armado e que são legítimas as represálias contra o Afeganistão. No entanto, esta legitimidade pode levantar outras questões relacionadas, que serão objecto de análise no capítulo seguinte.
 
 
6.  Análise da Situação do País numa Perspectiva de Relações Internacionais
 
Neste capítulo pretende-se abordar uma série de assuntos considerados pertinentes numa discussão mais pormenorizada, embora não exaustiva, sobre temáticas específicas de guerra e da paz relativas ao Afeganistão. Porventura alguns destes temas terão sido já abordados anteriormente, mere­cendo no entanto uma maior atenção agora, sem que se ambicione a identifi­cação de conclusões ou soluções definitivas.
 
6.1.     Questões Militares
 
A campanha contra o Afeganistão foi rápida e eficaz devido essencialmente à flagrante superioridade militar dos EUA. Foi inclusivamente um cenário onde as Forças Armadas dos EUA puderam testar e ensaiar as mais recentes tecnologias militares e novos equipamentos e sistemas de armas. Segundo Ramalho (2003:158-159), a campanha militar poderia caracterizar-se em cinco aspectos distintos: o esforço de obtenção de informações, quer pelas Forças Especiais (HUMINT) no terreno, quer por meios electrónicos (ELINT) antes e durante a operação, as características dos bombardeamentos aéreos, o emprego das Forças de Operações Especiais, a estabilização do novo regime afegão e, por último, o carácter prolongado e permanente da guerra contra o terrorismo, onde quer que ele se encontre no globo. De facto a estratégia americana no combate ao terrorismo internacional, quer no caso do Afeganistão, quer mais visivelmente no caso do Iraque, é claramente de cariz unilateral, embora efectue coligações de oportunidade, colocando de uma forma geral, dificuldades políticas à União Europeia, incapaz de com­preender globalmente as opções americanas. Conforme realça Ramalho (2003), uma perspectiva exclusivamente militar para o combate ao terrorismo global será certamente insuficiente, podendo levar a um processo interminável e a uma possível escalada ao cyber-terrorismo e às armas de destruição maciça. Somente uma estratégia militar bem articulada, orientada por objectivos políticos em que sejam possíveis compromissos entre as partes, poderá criar oportunidades para a paz ou para a estabilidade internacional.
 
 
Collier (2004) afirma que as situações de pós-conflito têm um risco elevado de reversão para o conflito, se for efectuado um elevado investimento militar, na medida em que o governo dá sinais das suas intenções perante as forças opositoras, podendo estas percepcionar o investimento militar como uma ameaça ao acordo de paz entretanto estabelecido38. Por outro lado este investimento militar renovado poderia ser utilizado com efeitos mais benéficos em outros sectores da economia. Apesar do autor ter demonstrado o atrás referido, recorrendo a modelos matemáticos, algumas dessas relações são discutíveis pois, no caso do Afeganistão, os autores consultados sobre o conflito, são unânimes em considerar que a segurança é fundamental para o desenvolvimento, tanto económico como político, quer através da anulação das ameaças dos grupos insurgentes (Taliban, HIG, etc), como através da reforma do sector da segurança (já referido anteriormente), o que implica claramente investimentos militares. Jeffrey Sachs, considerado pela revista “Time”, uma das 100 pessoas mais influentes do mundo e autor do livro “The end of poverty”, refere que os EUA estão a investir 250 vezes mais na guerra do que na paz, que apenas cinco países (Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda e Luxemburgo) aplicam mais de 0,7 por cento do seu produto interno bruto em ajuda externa e que com medidas práticas, simples e provadas se poderia pôr termo à pobreza extrema que é aquela que mata (Sachs, 2005:7-10). A erradicação da pobreza e fome extrema é, aliás, definida como um objectivo prioritário por parte das Nações Unidas (United Nations, 2000b). Maltez (2002:30) define bem a eterna questão que contrapõe a segurança e a economia, afirmando que “…não basta a hipocrisia da segurança. Política é segurança e bem-estar, mas não é apenas segurança e bem- estar”.... e que “talvez os economistas ainda não tenham percebido que os problemas económicos, apesar de apenas se resolverem com medidas económicas, como ensina o FMI, não se resolvem apenas com medidas económicas, como ensina o bom senso”.
 
Uma questão que mesmo os mais leigos têm a ousadia de suscitar, é se o terrorismo pode ser combatido da forma que os EUA e a comunidade internacional parecem ter adoptado. O “Terrorismo de novo tipo” tão bem caracterizado por Tomé (2004:177-186), é dotado de meios invulgares, poderosos e letais, contra o qual a dissuasão não funciona, revelando-se pouco eficazes os meios e as capacidades convencionais de segurança, de defesa e de combate. Neste contexto, não poderemos afirmar que o combate ao terrorismo seja uma guerra, na medida em que esta pressupõe, segundo Raymond Aron e Bouthoul, um conflito armado entre unidades políticas, ou entre Estados, utilizando meios e formas regulamentadas pelo Direito Internacional (Claude Rousseau). As actividades terroristas por seu lado, “evitam cuidadosamente todo o contacto com as Forças Armadas, orientando-se sempre para alvos indefesos ou mal defendidos, …(não cumprindo os seus agentes) qualquer das normas do Direito Internacional, relativamente, quer a prisioneiros, quer a procedimentos bélicos, quer à discriminação entre combatentes, procurando mesmo, intencionalmente, atingir civis indefesos e neutros” (in Dicionário das Relações Internacionais; Sousa, 2005:94). Face ao conceito de guerra assimétrica39 é questionável a forma de combater esta nova tipologia de ameaças pelos EUA, baseada na guerra convencional e na sua esmagadora superioridade tecnológica40. Se, como muitos pensam, o terrorismo tiver como causas principais graves problemas económicos e políticos nas sociedades muçulmanas, mas também e mais acentuadamente nas últimas décadas, um profundo «ressentimento islâmico» relativamente à validade universal dos valores políticos ocidentais, então terão que ser utilizadas outras formas para o conter (Almeida, 2004). Neste contexto, é legítimo considerar que no caso das invasões americanas ao Afeganistão e Iraque haja outros objectivos, nomeadamente económicos e geo-estratégicos, sendo o combate ao terro­rismo uma justificação emocional perante a sua população e a comunidade internacional.
 
O combate ao terrorismo deverá envolver os próprios países islâmicos, já que nem todo o terrorismo é islâmico e nem todos os islâmicos são terroristas, pelo que deverão ser os próprios Estados, em conjunto e individualmente, a isolar e combater os focos de terrorismo, aos quais são sujeitos. Paralelamente, deverão haver, por parte dos países mais ricos, programas de desenvolvi­mento e combate à pobreza, no sentido de tentar erradicar uma das razões de radicalização de parte da população recrutada para as actividades terroristas. É assim discutível o conceito de “choque das civilizações”, como sugerido por Huntington41, já que os conflitos são, na realidade, de origem política e não civilizacional, devendo abandonar-se a ideia de que as várias civilizações não se possam aproximar e entender, apesar deste novo fenómeno de terrorismo islâmico, invocar por vezes este propósito, no contexto de uma “guerra santa” sugerida contra os “infiéis”, embora estes sejam por vezes mal definidos (incluem-se até muçulmanos de outras facções).
 
É também com expectativa que a comunidade internacional e os próprios afegãos esperam pela anunciada expansão da missão da ISAF para 2006, anunciada a 8 de Dezembro de 2005 em Bruxelas, após uma reunião de 26 Ministros dos Negócios Estrangeiros da países da NATO. As preocupações surgem, na medida em que as províncias do sul do Afeganistão têm aí os principais focos de resistência taliban, sendo necessário seguramente outro tipo de actuação militar, nomeadamente na implementação de regras de empenhamento capazes de lidar com a nova situação. Conjugada com esta preocupação, podem também referir-se as associadas à diminuição das tropas americanas, o seu emprego sob o comando da ISAF, mas também a previsível dificuldade dos países da NATO em projectar para o teatro de operações o número de militares necessário, dada a resistência das opiniões públicas dos vários países. Pode ainda referir-se, que a operacionalidade das forças da ISAF tem sido limitada face aos “caveats” apresentados pelos diferentes contin­gentes, mas que no futuro, com um grau de atrição e conflitualidade superiores, terão muito maior impacto.
 
6.2.     Questões da paz
 
No capítulo da guerra justa foram sugeridas algumas questões, na altura não aprofundadas, que vão agora ser analisadas embora de forma abreviada. Assim, apesar do ataque ao regime taliban e às forças que cometeram os ataques do 11 de Setembro (Al-Qaeda) poder ser considerado, no sentido lato, de legítima defesa, esta legitimidade pode ser posta em causa, numa retrospectiva actual, pós-conflito (que terminaria com a derrota do regime taliban42), na medida em que os EUA têm demonstrado que os seus objectivos são de âmbito mais alargado. Isto é, a legitimidade de uma força desencadear uma guerra pode ser também avaliada à luz do seu comportamento na altura da paz, confirmando ou não os objectivos invocados para a legitimação da guerra. Concretamente, no presente caso, os EUA tem permanecido no território durante um período alargado, não se preocupando com os efeitos colaterais das suas operações, acrescido com o facto da sua colaboração militar com os Senhores da Guerra, apesar do envolvimento efectivo destes em violações dos direitos humanos e no tráfico de droga, assim como com outros grupos armados, equipados de forma ad-hoc para empenhamentos em objectivos específicos em consonância com as forças militares norte-ameri­canas43. Os Senhores da Guerra, apoiados e legitimados politicamente pelos EUA, preferem reforçar a sua base de poder local do que ser colocados numa posição de destaque no governo, oferecida pelo presidente Karzai (Suhrke et al., 2004:45). Estes factos conflituam com os objectivos da governação afegã, na medida em que, segundo o estabelecido nos acordos de Bona, todos os grupos armados deveriam estar sob a autoridade do governo afegão (Rubin et. al, 2005:54).
 
Interessará ainda referir dentro deste contexto, qual a percepção da população afegã relativamente às forças norte-americanas. Assim, se inicialmente a população afegã, especialmente do sul e do leste, correspondentes às zonas maioritariamente pashtun, não tinha uma memória agradável dos Taliban, favorecendo desta forma a acção dos EUA, esta foi gradualmente mudando a sua atitude. Assim, na perspectiva de um cidadão comum da área pashtun, a presença das forças dos EUA, com a qual se depara num contexto de revistas insensíveis a habitações, de descargas aéreas mortais, ou ainda de operações militares com danos colaterais (infligindo baixas em crianças, mulheres e noutros indivíduos não insurgentes ou terroristas), poderá ser ela própria actualmente, a maior ameaça à segurança44. Todos os factos relatados têm verdadeiramente tornado a actuação dos EUA gradualmente impopular, na medida em que é notória a percepção da população, de que embora as forças da coligação façam parte de um envolvimento internacional de apoio a um Afeganistão pacífico e unido, há paradoxalmente a sensação de que a grande preocupação das forças norte-americanas, a sua tarefa principal seja a de prosseguir a sua guerra contra os Taliban e a Al Qaeda e não a de facilitar um processo político de construção de paz (Suhrke et al., 2004:46).
 
Para Teles (2003:155) é duvidoso que exista uma legítima defesa preventiva, na medida em que os EUA, num procedimento discutível, lutam contra o terrorismo nos locais onde ele nasce, para poder assim precaver ataques futuros. Apesar de toda esta argumentação, é também legítimo concluir que uma saída brusca das Forças Armadas internacionais do Afeganistão poderia levar a novas guerras civis internas, sendo no entanto necessário repensar a sua actuação, nomeadamente a das Forças da Coligação, no sul e leste do país.
Outra discussão que poderá ser realizada paralelamente à legitimidade da intervenção estrangeira no Afeganistão (uma questão de jus ad bellum) é a aplicação do direito humanitário (jus in bello) dado que este se deve aplicar assim que a guerra é uma realidade, por forma a proteger as pessoas que sofrem os seus efeitos, nomeadamente a população civil. Segundo Teles (2003:155) existem um mínimo de regras elementares do Direito Internacional Humanitário que devem ser respeitadas no caso de uma intervenção militar num Estado estrangeiro e contidas essencialmente nas Convenções de Genebra e nos seus Protocolos Adicionais. Assim encontram-se proibidos, nos conflitos armados, por exemplo, ataques indiscriminados, ataques a civis, armas de destruição maciça que possam causar danos desnecessários, indiscriminados ou um sofrimento excessivo e a recusa do estatuto de prisioneiro de guerra. Teles (2003:155) afirma que as forças americanas têm tido uma actuação duvidosa, nomeadamente em relação ao tratamento conferido aos membros dos Taliban e da Al- Qaeda nas prisões quer do Afeganistão quer em Guantanamo, ao uso desproporcionado e excessivo da força, provocando um elevado número de vítimas civis e ao recurso a bombas cluster, que devido às suas características se confundem com pacotes de ajuda humanitária e se transformam praticamente em minas anti-pessoal.
 
A questão dos prisioneiros de guerra e a aplicação das convenções de Genebra na guerra contra o terrorismo tem sido alvo de uma enorme polémica. Segundo Albuquerque (2003:156-157) os prisioneiros de guerra têm direito a beneficiar de todas as garantias previstas na 3ª convenção de Genebra, tendo os combatentes capturados, que não tenham direito ao estatuto de prisioneiro de guerra, protecção conferida pela quarta Convenção de Genebra enquanto “pessoas protegidas”. A administração norte-americana argumenta de maneira diferente, nomeadamente Rumsfeld (citado por Albuquerque, 2003) afirmou que as pessoas capturadas são ilegais e não legais, caracterizando-as como detidos e não prisioneiros, sendo os membros da Al-Qaeda terroristas, não usando uniformes, armas à vista, nem apresentando um sinal distintivo fixo que se reconheça à distância, comportando-se de uma forma diferente das Forças Armadas. O presidente George Bush sugeriu ainda que as Convenções de Genebra não se aplicam à guerra contra o terrorismo, pois de outra forma os combatentes capturados não poderiam ser interrogados pela alegada prática de crimes. De acordo com Albuquerque (2003), a reinterpretação das Convenções de Genebra de 1949 e a decisão de não conceder o estatuto de prisioneiros de guerra aos combatentes taliban e da Al-Qaeda pode ser extremamente perigosa e colocar em risco os soldados de todo o mundo e especialmente os soldados americanos capturados em combate, voltando-se assim o feitiço contra o feiticeiro (Albuquerque, 2003:157). Há todavia muitos que pensam que os prisioneiros capturados durante operações contra o terrorismo, colocam questões delicadas, pois se libertados poderão pôr em causa a segurança internacional e se lhes for aplicado o estatuto de prisioneiros de guerra, não podem ser interrogados, não se podendo perceber assim o que preparavam, o tipo de redes que os havia levado até ao Afeganistão, etc. (Applebaum, 2005:7-10). De facto, estas novas situações são sensíveis, po­dendo ser observadas segundo perspectivas opostas, mas importa garantir indiscutivelmente os direitos de defesa destes detidos, nomeadamente saber através de um tribunal qual o seu estatuto e a sua implicação real no terrorismo.
Outra questão interessante existente de forma visível no Afeganistão, é a problemática associada ao movimento dos refugiados e deslocados cau­sados pelas guerras, que se reflecte ainda após o restabelecimento da paz, na medida em que alterando-se a estrutura étnica e sócio-cultural das populações nas diversas regiões, surgem novos conflitos aquando do recolocamento destes grupos, provocando uma tensão associada a questões legais relacio­nadas com a propriedade. Registam-se também frequentemente, abusos dos direitos humanos nos campos de refugiados, associados à natural fragilidade da posição legal e social dos refugiados nos locais de acolhimento. No Afeganistão, como já referido no capítulo 3.5.), verificaram-se grandes movimentações deste tipo, cujos reflexos actuais se repercutem na actual situação de paz, tornando-a inclusivamente pouco estável. Outro fenómeno importante no Afeganistão relacionado com o movimento de refugiados é a possibilidade efectiva de recrutamento e endoutrinamento islâmico nas madrassas, essencialmente nos campos de refugiados do Paquistão. Esta realidade foi bastante evidente, no período em que os Taliban tentaram o poder em todo o território do Afeganistão e no qual a base de recrutamento de combatentes prove­nientes das madrassas (existentes nas proximidades dos campos de refu­giados), foi fundamental (Rashid, 2000; Marsden, 2002). Pode afirmar-se que a própria estrutura socio-demográfica sofreu mudanças profundas, o que conjugado com guerras persistentes e governos e políticas diferenciadas, de acordo com interesses étnicos, económicos, culturais e religiosos (sobretudo a nível de interpretações diferenciadas do corão e da sua relevância política), torna o país sempre diferente de cada vez que é olhado. Para quem observa a realidade do exterior, dificilmente entende os esquemas, os jogos de lealdades feitos e desfeitos, as contradições e os mal-entendidos, apesar de indiscutivelmente o Afeganistão manter uma alma própria45.
 
Uma questão nova que tem sido também colocada neste conflito no Afeganistão é a cooperação civil-militar e concretamente a criação de Provincial Reconstruction Teams (PRT) que tem sido um teste aos novos desafios criados às forças militares nas operações de paz46. Esta mistura de funções militares, económicas e políticas provocou reacções fortes por parte dos outros actores, nomeadamente as ONG, pela confusão de papéis, apesar de parecer ser uma solução engenhosa para o Afeganistão, dada a fragmentação do país e a falta de segurança em muitas áreas, contrariando o círculo vicioso, no qual a falta de segurança e de reconstrução se reforçam mutuamente (Rubin et. al, 2005:56). Este mal estar entre as organizações humanitárias civis e as forças militares estão bem expressas por Nobre (2005:204-205), o qual questiona a coexistência das instituições humanitárias com as forças militares e de segurança e a sua “ …novíssima, nobilíssima, mas questionável motivação «humanitária» …”. Na sua opinião, se é verdade que nalguns casos a presença militar garante uma melhoria clara na segurança e capacidade logística (transporte e comunicações) há também comportamentos dúbios de comando e coorde­nação, provocando grandes dificuldades às instituições humanitárias inde­pendentes, nomeadamente quanto à sua segurança, credibilidade, independência e neutralidade. Outro facto apontado foi a questão dos financiamentos públicos e institucionais neste novo processo “humanitário”, no qual, as acções humanitárias dos Estados, através das suas forças militares, serviços de emergência civil e empresas multinacionais seriam beneficiadas. Também aqui se conclui um novo paradigma, que é a necessidade de todos os actores terem de coexistir, numa nova realidade, não sendo relevante saber quais os “bons” e quais os “maus”, na medida em que o fundamental é o apoio à própria população ou ao país que é auxiliado e não as questões corporativas entre as instituições. Mas é um facto, que no caso do Afeganistão tem havido um aumento de ataques ao pessoal da ajuda humanitária, tornando realmente esta actividade bastante perigosa.
 
Relativamente aos direitos humanos, é evidente que a situação não é boa apesar dos esforços recentes, pois não se muda rapidamente a cultura instalada. Segundo um relatório da Human Rights Watch (citado por Lorena, 2004) estão documentados uma série de abusos levados a cabo por senhores da guerra ou com a sua conivência, dos quais ressaltam as ofensas criminosas violentas, os ataques governamentais a membros de instituições políticas ou mediáticas e violações dos direitos humanos de mulheres e raparigas, com as consequentes repercussões ao nível da segurança, liberdade de expressão e actividade política47. Segundo Lorena (2004:10) o facto de haver financia­mentos, operações conjuntas e confraternização com os senhores da guerra, transmite mensagens contraditórias sobre os objectivos e intenções da coligação. Além disso, segundo Rubin (2005:20) há frequentes homicídios de detidos, detenções arbitrárias, tortura e maltratos aos detidos, por parte das forças da coligação, para as quais não há recurso legal, pelo menos no quadro legal existente no Afeganistão. Outros exemplos de violação dos direitos humanos são os ataques perpetrados pela Al-Qaeda e pelos Taliban, os quais conduzem ataques regulares e actos terroristas aos agentes do governo, especialmente contra a polícia. A protecção dos direitos de propriedade têm sido também criticados, dada a frágil estrutura judicial existente, havendo, segundo (Rubin et. al, 2005: 21) a percepção por parte dos afegãos que a protecção dos direitos da propriedade actualmente piorou relativamente à época dos Taliban, cujos tribunais eram mais imparciais e efectivos e os seus comandantes menos corruptos, apesar de por vezes serem mais violentos (Rubin et. al, 2005:21). Apesar de tudo, um perito independente das Nações Unidas (Report of the UN Secretary-General, 2005a:9) num relatório sobre os direitos humanos no Afeganistão, refere a melhoria da situação e os progressos por parte do governo, nomeadamente a libertação dos prisioneiros de Shiberghan da prisão de Pol-i-Charkhi em Cabul, mas realça a necessidade de serem incrementados esforços para o cumprimento dos standards interna­cionais. De qualquer maneira, apesar dos esforços e melhorias, há uma ligação estreita entre as passadas e as actuais violações de direitos humanos e as vulnerabilidades na imposição da lei e dos sistemas judiciais, os quais necessitam de uma melhor coordenação entre si. Não se pode duvidar no entanto que a situação dos direitos humanos, com a presença das Nações Unidas e da comunidade internacional e com a construção do edifício estatal afegão com normas democráticas, tenha melhorado, nomeadamente o das mulheres e o dos refugiados.
 
Após o fim da guerra-fria e a queda do muro de Berlim e agora após o 11/9, o mundo mudou. Apesar dos conflitos interestatais terem entrado em declínio, a violência não diminuiu, pelo contrário, a pobreza extrema nos países do sul, as pandemias, a implosão étnica em muitos Estados, a terrível violência do terrorismo, as novíssimas guerras, levam-nos a concluir que a violência e a guerra não acabará. Claro que há hoje em dia, quem advogue que está provado que as guerras não têm resolvido os problemas. Moita (2005:127) concluiu mesmo que, feita uma análise das operações militares convencionais dos últimos vinte e cinco anos, o poderio militar, mesmo se desproporcionado, não garante a obtenção dos objectivos políticos. Obviamente que cada vez mais a humanidade terá outros meios que não a guerra para resolver conflitos, mas esta foi sempre utilizada como um meio pelo poder político para atingir os seus fins. Terá sempre de ser o poder político e a sociedade civil a garantir formas pacíficas de resolver os conflitos. Como Galtung sugere (citado por Pureza, 2001:13-14) terá de haver uma cultura da paz que transforme os conflitos de forma criativa e não violenta, isto é, abordá-los de forma construtiva.
 
É hoje universalmente reconhecido que “a democracia é um ideal baseado em valores comuns às pessoas de todas as partes do mundo, independente­mente das diferenças culturais, políticas ou económicas” (Maltez, 2002:58), confirmado pela Declaração do Milénio da Assembleia Geral da ONU, de 8 de Setembro de 2000, onde se consagrou o princípio da promoção da democracia e do fortalecimento do Estado de Direito (United Nations, 2000a). Neste contexto, a guerra poderá ter como efeito real a instauração da democracia, o que no caso do Afeganistão parece possível, enquanto efeito colateral positivo, já que o regime taliban, combatido através da guerra no contexto da luta contra o terrorismo, foi muito criticado pela sua actuação autoritária, ditatorial, violenta e violando claramente os direitos humanos mais elementares (Rashid, 2000).
 
Contudo, para efectivamente implementar a democracia no Afeganistão, estabelecer um estado de paz e efectivar a reconstrução do país após a guerra, terá que ser desenvolvido um esforço de longo prazo, integrando as seguintes medidas, identificadas pelas Nações Unidas (United Nations, 2005b):
 
• A presença prolongada das forças internacionais, por forma a dissuadir as forças terroristas, insurgentes e diversas facções, enquanto as insti­tuições de segurança afegãs não estiverem a funcionar em pleno.
 
• A necessidade de um acréscimo de profissionais nos vários sectores, que ajudem nas tarefas de reconstrução, nomeadamente policias, professores, administradores públicos, juizes, engenheiros além de operários e trabalhadores qualificados.
 
• A criação efectiva de instituições chave do Estado, tais como, a polícia e o exército nacional afegãos e o sistema de justiça.
 
• A necessidade do Estado ser sustentável para manter as instituições a funcionar, nomeadamente a capacidade de gerar fundos.
 
• A necessidade de uma ligação entre a reconstrução pós-conflito (regresso dos refugiados, reintegração das antigas milícias, desmantelamento de grupos armados, fortalecimento do programa de combate à droga) e o crescimento económico que permita à população especialmente das áreas rurais abandonar a dependência da economia da droga e da lei predatória dos comandantes locais.
 
• A necessidade da melhoria da cooperação regional, na medida em que após 30 anos de guerra se instituiu a percepção de ameaças mútuas que ainda afectam as relações entre os países da região.48
 
• Por fim a necessidade de um envolvimento de toda a comunidade internacional, por forma a atingir os objectivos das próximas etapas do processo de estabilização, que está longe de estar concluído.
 
 
Na sequência dos acordos de Bona de 2001, a conferência de Londres, denominada “Compact for Afghanistan” realizada a 30 de Janeiro de 2006 com os países doadores, responsáveis afegãos e Nações Unidas, cria novas expectativas relativamente a um desenvolvimento positivo do país, nos aspectos da segurança, governança, desenvolvimento económico e luta contra o narcotráfico. Para que isso aconteça, é necessário que haja um empenhamento e acompanhamento internacional da situação, por forma a que o país evolua na direcção correcta e seja implementado um verdadeiro Estado de Direito, no qual os cidadãos sejam respeitados na sua plenitude.
 
 
7.  Conclusões
 
Pode concluir-se que globalmente foram atingidos os objectivos principais inicialmente definidos para este trabalho, na medida em que foram aplicados um conjunto apreciável de conceitos teóricos relacionados com as Novas Relações Internacionais, num país que tem passado por uma série de conflitos e está actualmente num processo de reconstrução e de reconquista da paz.
 
Podemos considerar que os conceitos teóricos mais desenvolvidos, dizem respeito à análise geopolítica e geoestratégica, baseada numa contextualização mais detalhada das várias dimensões e condicionantes que afectam a situação vivida no Afeganistão e que moldam o conflito e a construção da paz, das quais se destacam o enquadramento histórico, económico e político, bem como os factores socio-demográficos, étnicos e culturais. De particular interesse neste trabalho, foi também a discussão da legitimidade da intervenção da URSS e dos EUA, num contexto de problematização do conceito da “Guerra Justa”. Foi ainda possível reflectir sobre um conjunto de temas interligados referentes a questões particulares da guerra e da paz, das quais destacamos o combate ao terrorismo, a legitimidade da actuação pós-conflito do país invasor, assim como questões relacionadas com a aplicação do Direito Humanitário, a problemática dos deslocados e refugiados e a implementação da democracia e reconstrução do país após o conflito.
 
Assim, considera-se que embora de forma genérica, se conseguiu extrair um conjunto pertinente de temáticas centrais para o caso em questão, de um modo que permitiu simultaneamente demonstrar a aplicabilidade dos con­ceitos, procurando sempre o máximo rigor na definição dos mesmos, mas também a dificuldade da sua aplicação em contextos reais que se apresentam muito complexos e que nem sempre permitem uma simples classificação ou avaliação dos fenómenos.
 
Um exemplo desta dificuldade é a discussão da legitimidade da invasão dos EUA no Afeganistão em 2001 que não permite conclusões definitivas e consensuais.
 
Outro exemplo é a complexa análise geoestratégica dos países envolvidos nos conflitos, por exemplo dos EUA ou do Paquistão, que demonstram a verdadeira dimensão das relações internacionais actuais, orientando-se fundamentalmente por um realismo político, sendo assim, menos previsíveis e dependentes de múltiplos factores, podendo resultar em actuações paradoxais e até perversas.
 
Também o combate ao terrorismo é um tema que dificilmente se combate num contexto de guerra, apesar de actualmente alguns autores, políticos e os próprios terroristas reclamarem a existência de uma “guerra das civilizações”.
 
Por fim, a própria discussão da legitimidade da guerra e da necessidade da intervenção militar que, numa reflexão teórica, poderá levar a posições idealistas considerando a actuação militar ultrapassada e até perniciosa, dado não resolver efectivamente os conflitos em causa, apresenta-se como algo distante da realidade. Efectivamente, esta realidade caracteriza-se pela existência de conflitos de interesses e pelo recurso à violência, sendo assim, mesmo num contexto de reconstrução pós-bélica, necessário investir em forças de segurança e militares que confiram um quadro de estabilidade essencial para a manutenção da paz e do Estado de Direito e para um verdadeiro desenvolvimento social, cultural e económico.
 
Na sequência desta ideia, foi focada também neste trabalho, a questão controversa da implantação da democracia como modelo ocidental imposto a países sem essa tradição e com condicionantes culturais, sociais e económicas que dificultam a realização desta intenção, podendo resultar em democracias de fachada, onde possa haver organismos e procedimentos oficiais que correspondem ao referido modelo, mas suportados por intérpretes, actores e práticas efectivamente anti-democráticos.
 
Todos estes aspectos, discutidos num contexto real, demonstram que os conceitos teóricos podem ser interpretados de várias perspectivas, confe­rindo-lhes alguma ambivalência, reflectindo também o estado e a evolução das novas relações internacionais, onde conceitos clássicos devem ser confrontados com novas realidades num mundo caracterizado por múltiplos fenómenos suscitados pela globalização.
 
 
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Abreviaturas
 
CFC-A  - Combined Forces Command - Afghanistan
CS     - Conselho de Segurança
DDR    - Disarmament, Demobilization and Reintegration
ELINT  - Electronic Intelligence
EUA    - Estados Unidos da América
HIG    - Hezb-E-Islami Gulbuddin
HUMINT - Human Intelligence
ISAF   - International Security Assistance Afghanistan
MIU    - Movimento Islâmico do Uzebequistão
NATO   - North Atlantic Treaty Organization
ONG    - Organizações Não-Governamentais
ONU    - Organização das Nações Unidas
PDPA   - Partido Democrático do Povo do Afeganistão
PIB    - Produto Interno Bruto
PRT    - Provincial reconstruction Team
UNAMA  - United Nations Mission to Afghanistan
UNHCR  - United Nations High Commissioner for Refugees
UNICEF - United Nations Children’s Fund
URSS   - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
 
 
Anexos
 

 
 
ANEXO 1. Mapa do Afeganistão no contexto regional
 
 
 

ANEXO 2. Distribuição das etnias no territorio afegão
 
 
 
__________________
 
*      Tenente-Coronel de Infantaria. Mestrando em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa. Actualmente presta serviço na Cruz Vermelha Portuguesa.
 
 
 
__________________
 
 1 “…era um grupo predominantemente composto por facções tadjiques, uzebeques e hazares” (Carriço, 2004: 1114).
 2 A designação “warlords” ou “senhores da guerra”, segundo uma definição do Unites States Institute of Peace (2003:3) é um termo bastante contestado, mas que se pode definir como sendo indivíduos que exercem uma combinação de poder militar, político e económico, fora de um quadro legal ou constitucional.
 3 A nova constituição estipulava a adopção de um parlamento bicameral, eleições livres, imprensa independente, formação de partidos políticos, igualdade política entre homens e mulheres e um sistema jurídico secular (Marsden, 2002; Arantes, Jr. 2002).
 4 Em árabe significa: “combatente ou guerreiro do jihad”; nome dado aos guerrilheiros que combateram a invasão soviética no Afeganistão (Pohly e Durán, 2001).
 5 “estudante de religião”, geralmente associado aos alunos das madrassas, que são escolas corânicas (Pohly e Durán, 2001); facção islâmica ultrafundamentalista (Ramonet et al., 2003).
 6 As forças da coligação denominada Combined Forces Command - Afghanistan ou CFC-A, está na linha da frente daquilo que os EUA denominam “global war on terrorism” (GWOT).
 7 A Swiss Peace (2004) estima este valor até em 85% da produção de ópio mundial.
 8 Medler (2005) considera inclusivamente que nenhum político eleito terá a coragem de antagonizar as pessoas envolvidas no cultivo da papoila.
 9 “Conselho de anciãos tribais ou da tribo inteira para discutir questões políticas e legais” (Rashid, 2002: 293).
10 Assim a Loya Jirga foi convocada em 2002 para nomear a administração de transição e em 2003 a Loya Jirga constitucional para elaborar uma nova constituição para o país (Ejercito español, 2003:2-23, 2-24).
11 Existem dois tipos de forças militares internacionais no Afeganistão. A sul as Forças da Coligação, lideradas pelos EUA (CFC-A), onde as Opposition Militant Forces (Al Q’aeda, Taliban e HIG, entre outros grupos insurgentes) são realmente activas, e a Norte e Oeste as forças da ISAF (International Security Assistence Force), actualmente liderada pela NATO e mandatada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas através das Resoluções 1386 de 20Dec01 e 1444 de 27Nov02 (Swiss Peace, 2004).
12 As Wolesi Jirga and Provincial Council Elections in Afghanistan realizaram-se a 18 de setembro de 2005.
13 do árabe “xî’a” (“grupo separado”), representam uma minoria no seio do Islão (16%) e concentram-se no Iraque, no Irão, no Iémen e no Líbano e, mais reduzidamente, no Paquistão e na Índia. Sustentam que só Ali (o quarto califa) é verdadeiro sucessor de Maomé. (Pohly e Duran, 2001).
14 do árabe “sunna” (“via”, “regra”) representam a maioria esmagadora da comunidade islâmica (83%); a seguir ao Corão, a Suna é a grande fonte da legislação islâmica. Na sua base estão as palavras e os actos de Maomé (Pohly e Duran, 2001).
15 Em árabe: “combatente ou guerreiro do Jihad”, nome dado aos guerrilheiros que lutaram contra a invasão soviética no Afeganistão (Pohly e Duran, 2001). Inclui assim, todos os que se refugiaram quer no Paquistão (3.2 milhões), quer no Irão (2.9 milhões) e que se associaram à luta dentro do Afeganistão numa base de movimentos incursionistas, a partir daqueles dois países, ou aqueles que optaram por permanecer no Afeganistão durante a guerra, fugindo muitas vezes para o refúgio das montanhas com as suas famílias, organizando o ataque a partir dali (Marsden, 2002: 48).
16 O cânone da lei islâmica (Rashid, 2002).
17 O Wahhabismo refere-se ao nome do seu fundador, Muhammad Ibn al-Wahhab (1703-1791), sendo uma doutrina muçulmana de extremo rigor adoptada por uma seita puritana, no século XVIII na Arábia Saudita, onde acabou por se tornar dominante. É um movimento no sentido de reconduzir o Islão às suas raízes e de impor a aplicação pratica dos ensinamentos transmitidos pelo profeta Maomé (Pohly e Duran, 2001).
18 A designação uni-multipolar desta nova configuração do sistema internacional reflecte por outro lado o facto de não ser somente unipolar. Assim, os EUA coexistem com outros poderes regionais internacionalmente relevantes como a China, a União Europeia ou a Rússia, que não querem coagir pela força, apesar da sua enorme superioridade militar. Do ponto de vista geoeconómico há potências com poder semelhante, como a União Europeia, o Japão e a China. Além disso a complexidade do mundo actual e os seus novos problemas (terrorismo, armas de destruição massiva etc.) exigem a cooperação internacional e finalmente há também razões internas, nomeadamente da sua opinião pública, que condicionariam a actuação hegemónica e unilateral dos EUA (Tomé, 2005:10-11).
19 “A noção de «prevenção» no discurso estratégico, faz referência ou à gestão de crises e conflitos ou ao pre-posicionamento de forças perante uma eventual ameaça.” Por outro lado, “a noção de «acção preemptiva» tem sido utilizada no quadro da legítima defesa para designar um acto militar antecipatório perante uma ameaça directa e iminente.” (Tomé, 2004:249)
20 Na estratégia dos EUA, unilateralismo e multilateralismo coexistem, através da fórmula “multilateralismo quando é possível, unilateralismo quando é necessário” (Almeida, J.M. de, 2003, citado por Tomé, 2004:212). Nesta perspectiva, “as missões determinam as coligações”, na medida em que os EUA tomam a iniciativa e quem quiser, adere às “coligações de vontade” (Tomé, 2004: 213).
21 O realismo, segundo Morgenthau (1948), rege-se pelo interesse do Estado, sendo a política, como a sociedade em geral governada por leis objectivas que têm as suas raízes na natureza humana, que não é essencialmente boa. Os princípios morais universais não podem ser aplicadas às acções dos Estados e devem ser consideradas em função das circunstâncias concretas do tempo e do lugar (in Dicionário das Relações Internacionais; Sousa, 2005).
22 O Afeganistão foi o único país a votar contra a admissão do Paquistão nas Nações Unidas com o pretexto que faltava acordar a auto-determinação dos pashtuns paquistaneses (Roy, 2004).
23 Nos últimos 2 anos, o governo da Índia estabeleceu-se no Afeganistão quer diplomatica­mente (com 4 consulados e uma grande embaixada em Cabul) quer através de actividades de reconstrução, muitas das quais na cintura pashtun, perto da fronteira com o Paquistão, entre as quais projectos de construção de barragens nos rios Kunar e Kabul que desaguam no Paquistão e são fontes importantes de água para a sua agricultura (Suhrke et al., 2004).
24 A razão do conflito entre a Índia e o Paquistão prende-se com o facto do soberano do Estado de Caxemira, maioritariamente muçulmano, ter pedido a ligação com a União Indiana na altura da independência em 1947. Este diferendo esteve na origem dos conflitos Indo-paquistaneses de 1948 e 1965. A divisão que actualmente existe no antigo principado deixou a Índia no Vale de Jhelum, enquanto que o Paquistão ficou a administrar o Norte montanhoso de “Azad Kashmir” (Boniface, 1997:149).
25 Os Taliban constituem para o Irão uma ameaça significativa, na medida em que representam um fundamentalismo sunita, anti-xiita, apoiado pela Arábia Saudita.
26 O Irão não se opôs fortemente à intervenção americana no Afeganistão, tendo os xiitas afegãos apoiado até Karzai e os Americanos (Roy, 2004:64).
27 A Arábia Saudita tem explorado este fenómeno, particularmente no vale de Ferghana, entre o Quirgizistão, o Uzbequistão e o Tadjiquistão onde os movimentos radicais têm operado durante décadas (Rubin et al, 2001; Marsden, 2002).
28 Entende-se por Behaviorismo a “abordagem ao estudo da ciência política e de outras ciências sociais que centra a sua análise nas acções e interacções entre unidades, através do uso de métodos científicos de observação…Considera que apenas o comportamento observado e observável é relevante para o trabalho científico” (Dicionário das Relações Internacionais; Sousa, 2005:26-27).
29 Entende-se por Idealismo a “teoria da relações internacionais que põe a tónica na importância nas normas morais e legais, e na importância das organizações internacionais, em oposição à teoria realista que enfatiza o poder, o interesse nacional e a soberana independência do Estado…Esta concepção das relações internacionais põe o acento tónico na interdependência e na cooperação… (e está associada à) dinâmica de modernização desencadeada pela revolução industrial …(que) suscitou necessidades e solicitações novas nas nossas sociedades e fez aparecer sistemas de valores fundamentados no bem estar económico e social. Outras forças - supranacionais, transnacionais, subnacionais e multinacionais - tomaram lugar na cena internacional limitando, em numerosos casos, a margem de manobra dos Estados.” (Dicionário das Relações Internacionais; Sousa, 2005:99).
30 Na elaboração deste capítulo e questões da paz com ele relacionadas, agradece-se a colaboração de Assis (2005) e Teles (2005) pelas discussões sobre Direito Internacional e Guerra Justa.
31 O pai do Direito Internacional foi o holandês Hugo Grócio com o seu célebre tratado “De jure belli ac pacis” (1625) sobre o direito da guerra e da paz, sendo a Paz de Vestefália em 1648 o primeiro acontecimento que criou as condições efectivas para a aplicação do Direito Internacional entre Estados Europeus (Amaral, 2005: 10-11).
32 Em português, distensão, relaxamento ou diminuição da tensão. A década de 1970 é caracterizada pela ascensão e queda da détente…. a sua queda aparece …. em 1979 com a invasão soviética no Afeganistão (Dicionário das Relações Internacionais; Sousa, 2005:63-64).
33 Como medidas de retaliação os EUA não ratificaram os acordos SALT II, dificultaram as condições de exportação para a URSS e boicotaram os Jogos Olímpicos de Moscovo.
34 A Guerra-fria é um exemplo paradigmático da “guerra sem violência”, onde se atinge um estado de “preparação, manobra e prontidão de meios militares, mas em que não se chega à confrontação; é o caso típico da dissuasão por meios militares…” (Correia, 2002:43).
35 Nestes Estados “o terrorismo é apoiado, instigado e instrumentalizado pelos governos em função dos seus objectivos políticos na arena regional e internacional… (havendo) uma espécie de aliança entre os actores estatais e os terroristas” (Tomé, 2004:195).
36 As resoluções nº 1368, de 12 de Setembro 2001; nº 1373, de 28 de Setembro 2001, e nº 1377, de 12 de Novembro 2001, apelam para a cooperação transnacional entre todos os Estados Membros para deter e investigar a actividade criminal e terrorista transnacional.
37 No caso do bombardeamento da sede da OLP, na Tunísia, por aviões israelitas, por alegadamente aquele Estado ter protegido terroristas que tinham atacado Israel, houve uma condenação por parte do CS através da resolução 573 (1985).
38 A arquitectura de segurança no Afeganistão, resulta numa certa confusão no terreno, pois além da distribuição das forças da ISAF e da Coligação operarem em áreas diferentes, há também um sector de segurança informal composto por numerosas milícias e agências de segurança, empregando Afegãos e estrangeiros. As forças da Coligação além do apoio a milícias que armam e utilizam para o combate, alugam empresas militares e de segurança (Dynacorps, Global Risks, etc.) para várias tarefas entre as quais, segurança ao presidente Karzai, eleições, segurança à construção de estradas, destruição da papoila etc. (Rubin et al., 2005:37).
39 “A assimetria reside na oposição de dois adversários que dispõem de meios e capacidades totalmente desequilibradas” e quando o mais fraco recusa as regras de combate impostas pelo adversário mais poderoso, utilizando meios tecnologicamente simples, diferentes e inovadores ao nível dos instrumentos, de uma forma totalmente inesperada e num local imprevisível (Tomé, 2004:169).
40 Carriço (2204:1118) fala de uma “benção híbrida” relativamente às forças da coligação americana (CFC-A) e à sua luta contra o terrorismo; se por um lado controla a tensão entre facções garantindo algum poder ao governo central e possibilitando o controlo da influência externa, por outro limita o governo central cooperando com os líderes regionais nas operações militares, comprometendo a estabilidade do país a longo prazo.
41 Num artigo de 1993, na revista Foreign Affairs, Samuel Huntington levantou a hipótese de que “no novo mundo os conflitos não terão essencialmente como origem a ideologia ou a economia. As grandes causas da divisão da humanidade e as principais fontes de conflito serão culturais (…). O choque das civilizações dominará a política mundial” (citado em Boniface, 1997:61).
42 Os acordos de Bona foram redigidos como se a guerra contra o regime taliban e os seus aliados tivesse terminado com a sua derrota definitiva, o que não veio a acontecer, levando os EUA a continuar a sua guerra especialmente no sul e leste do Afeganistão, tendo sido esta a razão principal pela qual a ISAF não se expandiu, por oposição do Departamento de defesa dos EUA que não pretendia uma força com um mandato de “peace keeping” conflituando operacionalmente com as forças militares norte-americanas (Rubin et al., 2005:55).
43 A política Norte-Americana de apoio aos senhores da guerra, ganhou consistência e visibilidade, quando um porta voz do exército dos EUA, a 7 de Fevereiro de 2004, referiu que as forças militares norte-americanas tinham começado a treinar e a equipar uma nova força de milícia afegã para colaborar em operações contra os Taliban e a Al Qaeda. Essas forças, distintas das Afghan National Army planeadas, foi caracterizada como uma força temporária, numa altura em que o presidente Karzai, as Nações Unidas e a comunidade internacional de doadores, se encontravam a tentar acelerar o processo de desmobilização das forças de milícia afegãs, tendo em vista as eleições presidencias (Suhrke et al., 2004:46).
44 Há actualmente múltiplos relatos de agências humanitárias referindo vários acordos entre várias comunidades e grupos taliban permitindo a actuação destes últimos (Suhrke et al., 2004:44).
45 Este tema foi muito bem retratado por Saira Shah, no seu romance “The storyteller’s daughter” (Shah, 2005) no qual a autora Afegã, vivendo em Inglaterra desde sempre, encontra um Afeganistão tão diferente daquele que lhe foi transmitido pelos contadores de histórias da sua família, mas simultaneamente reconhecendo-o de alguma forma.
46 Criadas em Novembro de 2002 pelas forças americanas da coligação, consistiam inicialmente em cerca de cem homens, combinando forças combatentes, pessoal de assistência militar e experts civis, com tarefas que consistiam em coordenação de apoios, avaliação de necessidades, ligação com os comandantes regionais, implementação dos apoios e fornecer segurança.
47 Os abusos descritos foram ordenados, cometidos ou permitidos por responsáveis governamentais que não teriam chegado ao poder sem a intervenção da comunidade internacional e têm a complacência dos EUA, dos governos de outros membros da coligação e de parte do próprio governo transitório (Lorena, 2004:10)
48 Desde a declaração de relações de boa vizinhança de Cabul de 2002, várias iniciativas foram feitas nomeadamente a nível económico, mas para uma reconstrução mais rápida do país é necessário intensificar as relações com os países vizinhos, sendo essencial para isso, a intervenção da comunidade internacional (Report of the UN Secretary-General to the General Assembly Security Council, 2005b).
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2006-06-06
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REVISTA MILITAR @ 2024
by CMG Armando Dias Correia